quinta-feira, 18 de novembro de 2010

À Janela









São quatro horas da manhã. Ouço o canto dos primeiros pássaros rompendo a densa escuridão, anunciando o amanhecer.

Abandonam suas núpcias, alvoroçados, espantando os últimos sinais da preguiça familiar. Convocam, em corais simultâneos e desengonçados, o colorido que descobre a superfície daquela cidade que avisto pela janela.

A rua ainda está vazia. O silêncio só é cortado pelo canto dos pássaros, por alguns taxistas já em seus respectivos pontos, a espera de quem trabalha longe e que pode pagar para não atolar em lotações, e pelos comerciantes começando a preparar suas lojas. Nessas lojas, às seis da manhã, os pesados portões descerram, convidando os funcionários a marcarem seus pontos no serviço diário.

Logo o movimento cotidiano abafará o melódico coral dos pássaros. Desarmônicas e desafinadas notas – que não são as musicais, e sim cifras monetárias – marcam o descompasso de um pregão ao ar livre, mesmo sabendo que já não é mais tão livre assim.

O som estridente do contato das inúmeras solas de sapato com as calçadas nuas, cobertas por algumas folhas secas, imita as marteladas em pregos retorcidos, resistentes, teimosos, tortos, mas frágeis por serem de antemão partidos, quebrados.

Esse pregão descompensado das notas monetárias preenche o vazio de vidas seqüestradas, recolhe o suor em funis de ópio, prega os passos na ilusão do movimento contínuo.

Eu ainda não preguei os olhos. Insisto em observar fantasmas brincalhões filtrando a paisagem que se ilumina à janela. O sol vai nascendo com suas tímidas silhuetas, contornos desbotados, vagarosos, corpo lento, sonolento.

Labaredas fictícias eclodem em imagens ausentes de mim. O que vejo é a tela de meus olhos. Esfrego meu rosto com furiosa obstinação. As pálpebras pesam. Uma fina neblina desperta a visão esfumaçada dos fantasmas febris e fixa a nitidez da miragem bordada de sentidos.

Como pode? De repente vou para outro lugar...

Decolo no avião. Passageiros e toda a tripulação confiam em minha competência e habilidade com a aeronave. Encontro túrgidas nuvens, vistosos úteros. De ímpeto, furo-as bem no centro, no umbigo de uma vida outra antepassada em futuros próximos.

Estou sobrevoando as minguantes rechonchudas, e assisto ao esvaziamento daqueles inflamados corpos ocos, feitos de água, translúcidos, ovelhas sem pele, velhas.

Furadas, derramam a seiva fecunda das bolsas estouradas, paridas.

Bolsas de valores.

O pregão fura a bolsa roubada pelo menino que tem o estômago furado. Sem bolsa, o desvalor, revaloriza-se.

Caio em queda livre. Aquele gigantesco corpo mecânico evaporou, dissipou-se. O avião era feito de água como as nuvens. As nuvens, antes condensadas, desfizeram-se em liquefação. A lataria, antes sólida, sublimou-se.

Enquanto caio, náuseas invadem minha restrita audição. Ouço uma voz ofegante, desconcertante. Estou seguro em seus fonemas, embalado em notas – nem musicais nem monetárias. Anotações firmes, traços aos quais me identifico, existência.

Continuo caindo. Ultrapassei o chão. Não há nada que ampare minha queda. Tento balançar os braços, agitar as pernas numa desesperada tentativa de planar, boiar no mar, flutuar como outrora ouvira o canto dos pássaros.

Caindo, caindo... Penso em segundos reprimidos, com aperto abafado, inacabado, minha vida que insiste em passar sem mim. Presença de um vazio, da ausência consolidada e volumosa, bordando fiapos de sentidos e sensações. Trabalho, esposa, filhos, minhas escolhas em queda livre. Queda presa, desprezada. Livre prenda, predador, pregada. Pegadas sem pés. Rastros indizíveis, dizimados, apalpados pelo tempo insólito.

Queda! Livre! Liberdade!

Permaneço em queda, em velocidade constante, sem aceleração. Inércia! Mas nessa inércia, meu corpo começa a se apagar. O atrito do ar desprende a camada mais externa de minha pele. Estou desintegrando suavemente. Indolor. Tenho a sensação de poder, atravessando barreiras, indo de encontro ao nada, ao sem fundo. Túnel escasso que traga o infinito.

Estou cada vez mais transparente, matéria fina, ambiente fino, granfino. Sem parente, sem dente, sozinho. Ser único, contente, exuberante, existente.

Desintegrei. Meu corpo foi reduzido a um pensamento. Mas um pensamento acelerado, ganhando velocidade, despencando. A rapidez é tanta que virei uma bola de fogo perdida em explosão, incerteza enforcada, trem bala, foguete desordenado...

Choquei-me vertiginosamente com algo mole, consistente.

Cheguei finalmente ao fundo?

(...)

Parece merda!

(...)

São dez horas da manhã. Que aflição!

Acho que peguei no sono ouvindo o canto dos pássaros.

Preciso trabalhar! Estou atrasado!

(...)

E a cidade - pela janela do seu quarto, na correria afinada e tumultuada, no bater das solas de sapato - seguia com nítida clareza, a verdade órfã e ritmada da eterna rotação e translação dos homens.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

3 comentários:

Liz disse...

Alex,

Mais uma vez, me reconheci em suas letras... e desta, elas me arrancaram uma boa gargalhada no final, ao me trazerem a realidade tão “macia” de nossas responsabilidades. Se houvesse uma trilha sonora, provavelmente, seria Monte Castelo.
Amei seu texto!

Beijo!

Unknown disse...

O imaginário me é tão confortante que impulsiona na escrita, nessas palavras agridoces do Alex, um escudo para maquiar a realidade. Pois o que é tão próximo ao real é tão distante da inscrição do desejo... por isso sigo lendo esse blog e me admirando com a sutileza e perspicácia desas descrições cotidianas.
Bjo

Maria Clara disse...

Boa metafora, rs
Bjoks