sábado, 25 de setembro de 2010

Constituição da Pulsão.

Como postulou Freud, a pulsão é um conceito limite entre o somático e o psíquico. As primeiras experiências de prazer e de desprazer como intervenção do desejo do Outro, ainda não reguladas pelos processos de subjetivação, promovem um retorno, visando satisfação, do que constitui a dimensão recalcada das pulsões, como discurso do Outro. O corpo é mapeado e contornado em zonas erógenas pela linguagem do Outro. Essa lógica pulsional, pela qual o objeto natural já é perdido, organiza-se nas zonas erógenas, pelas bordas significantes. Então, nessa lógica da pulsão, circunscrita como repetição, sem a possibilidade a priori de simbolização, produz fixações da libido e regula, pela linguagem, as posições de adesividade do gozo para um sujeito.

A pulsão não é nem voz passiva nem voz ativa. Em relação à pulsão escópica, como desejo ao Outro, não é nem ser visto nem ver. A pulsão é da ordem da voz reflexiva, pois o que se opera é uma conjunção/disjunção da atividade e da passividade, ou seja, um "fazer-se ver", fazer-se cagar (o sujeito fazendo a demanda do Outro retornar sobre ele). Trata-se de um fazer-se objeto do Outro, uma atividade que faz a passividade, estrutural voz reflexiva da lógica pulsional.

A sexualidade, como pulsão parcial, inscreve-se na constituição da linguagem. A pulsão de morte, esse para além do princípio do prazer, paradoxalmente, constitui-se na linguagem, mas como exterioridade da linguagem. A pulsão de morte sustenta uma ex-timidade com a linguagem, pois silenciosa em seu vazio radical, está para além da linguagem, objetando-a em seu mutismo absoluto, irredutível, impossível de simbolizar, mas não sem nela estar. Força disruptiva, desfaz os laços sociais, dessubjetiva o sujeito, ponto no qual o significante não faz função, furo no real incontornável. Já a pulsão parcial, pulsão sexual, pulsão da linguagem, é o contorno significante do falo como representante da falta-a-ser, como suporte da falta, emergência do sujeito desejante.

As pulsões parciais são delineadas pelo recalque dos significantes do Outro que circunscrevem as bordas erógenas da linguagem, tecendo o furo de um objeto perdido desde sempre. Esse objeto que se constitui como resíduo da operação significante, conceituado por Lacan de objeto a, presentifica-se como ausência radical, fantasmático, falta estrutural, como mais-de-gozo. Já a pulsão de morte carreia o impossível gozo total para o sujeito, nomeado por Freud como masoquismo originário, deixando antever uma anterioridade lógica dessa pulsão à própria constituição significante da falta.

Repetindo, pois não é sem isso, a pulsão de morte se constitui num paradoxo, pois é aquilo que não cessa de se inscrever, dissolvendo o ideal-do-eu, mas que se constui na linguagem. A pulsão de morte se presentifica na linguagem mas num para além da linguagem, numa ex-timidade, pois embora a linguagem seja sua operadora, rejeita-a, projetando o mito de uma anterioridade da linguagem.

A pulsão de morte é a linguagem do pré-linguístico? Mas se Lacan já disse que não há metalinguagem? Como fica?

A pulsão de morte é o silencioso, incontornável do simbólico, furo irredutível do real, refratária à linguagem. As pulsões parciais, pulsões da linguagem, constituindo a sexualidade, inscrevem-se na dimensão fálica que sustenta a báscula que tanto pende para o simbólico quando para o imaginário. As pulsões sexuais são do "falasser", do ser falante, "falosser", do falo que suporta a falta da fala, do desejo, mas também "falecer", pois o barulho significante na gramática sexual das pulsões parciais está sempre ameaçado pela dissolução silenciosa da pulsão de morte.

texto escrito por Alex Azevedo.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Ver s.o.s.

Um suspiro calado, desavergonhado, lânguido, expressando a falta indizível.

Maçãs frias de manhãs enevoadas, habitantes de olhares sorrateiros, flutuantes, amores fixos.

Pedestais ensolarados, sombras projetadas no chão por onde a vida escorre.

Correr para o infindável seio da brevidade, transições atravessadas pela ira do atemporal.

Tempo oral, falas vazias, têmporas, pedras úmidas acariciadas pelo vapor.

Vá Pôr! A mãe diz ao filho, mas numa passividade rebelde, diz põe! Impõe! Indispõe.

Descolore o veio sem ritmo, corrompe ideais perdidos, sedimenta caudolosos vernizes.

Quando a vida esvai, escasseia segmentos, ex-vai, ex-foi, ex-pulsa, expõe.

Um suspiro tagarela, envergonhado, contraído, silencia para o todo da palavra.

escrito por Alex Azevedo

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Resistência como transferência.

Foi antes de conceituar a transferência, que Freud descobriu a resistência em análise. Uma espécie de um nada querer saber sobre a causa do seu sofrimento. Apesar do sintoma, que se instala no intuito de tamponar a angústia, ter se constituído no retorno do recalcado, esse mesmo sintoma é composto pela matéria prima do conteúdo reprimido. Então o analisando tem uma relação ambivalente com o sintoma. O sintoma contem o recalque, no sentido de contenção, de barreira, mas o sintoma também contém o recalcado, no sentido de estar no seu conteúdo. Freud descobriu primeiro a resistência em análise, contra esse material reprimido, mas percebeu que é justamente essa resistência, que desloca um saber para o outro, que constitui a transferência. Então, para Freud, resistência é sinônimo de transferência.
A transferência é uma suposição de saber endereçada ao analista. O analisando, sob transferência, deposita um saber sobre si no analista, um ideal-do-eu, sendo o que sabe sobre o sujeito, está no próprio discurso do inconsciente, porém apresentado como falta, como não-sabido. Mas essa é a lógica de uma análise, o analisando aponta esse lugar de saber para o analista, com uma demanda de amor, mas o analista embora acolha, não ocupa esse lugar apontado pelo analisando.
O analista, em sua ausência como sujeito, ausência essa que sinaliza a disponibilidade do analista para escutar o outro, presencia isso que você sublinhou o tempo todo, justamente porque sem isso, não haveria análise, consequentemente, não haveria analista. Entendo que uma análise se autoriza desde o momento posterior de entrada em análise, ou seja, quando o sujeito encaminhado por alguém ou identificado por algo do analista, como seu nome, sua fisionomia, sua voz, seu jeito de falar... procura-o para falar. A transferência já se estabelece até mesmo antes do primeiro contato, quando já não vem com o aval de transferência daquela pessoa que o sujeito elege para indicar um analista. É sempre do lado do analisando, que chega demandando um amor à verdade, um suposto saber ao analista, que aponta esse lugar que o analista ocupa. É a transferência que autoriza a função do analista. O analista, antes mesmo desse lugar de semblante da falta, de semblante do objeto, fica numa posição de depositário do saber, saber este que se presentifica como discurso do inconsciente como não sabido, como não-saber, mas endereçado ao analista como o "representante" desse saber inconsciente. O analista é fabricado pelo discurso do analisando como um depósito desse saber não sabido que é nada mais nada menos que o sujeito do inconsciente que está lá deitado no divã. Então, se há analista, não é a poltrona que dá esse lugar, mas só é autorizado pela e na transferência.
Um exemplo de minha experiência, para ilustrar a questão transferência/resistência, é de uma analisanda que em determinado instante, afirma que fala como uma criança, repetindo palavras infantis, pois associa sem parar um assunto no outro, enquanto eu quase não digo nada. Essa analisanda diz que está na análise para ter um espaço no qual pode falar exatamente como uma criança, podendo se ocupar dessas palavras infantis. Esse é o lugar que ela me coloca em transferência, como aquele ao qual endereça um suposto saber em testemunhar essa sua fala infantil. Só que essa fala nomeada de infantil, devido às incessantes associações, reservada à sua análise, é o que lhe causa maior repugnância de ouvir, é seu objeto fóbico, sua resistência à análise. Então, embora o lugar que essa analisanda me coloca seja de escutar sua "fala infantil", em transferência, é justamente essa fala que a repugna ouvir, sem a objetividade do "adulto" tão "cara" a essa analisanda, é sua própria resistência à análise. Eis a ambivalência do sintoma transferida para o lugar do analista.
Para concluir, agora sobre a questão da interrupção de uma análise como ato analítico, escutei um outro analisando que embora produzisse muito em análise, associando suas significâncias, não conseguia pagar suas sessões de análise. Um dia ele disse que sentia vergonha de não poder pagar do mesmo jeito que se viu inferior quando foi a um consultório médico de favor e se colocou inferiorizado na sala de espera, ao lado de sujeitos ricos. Escutei que essa fala, endereçada a mim como analista, afirmava que sem pagar, a análise dele jamais andaria, estava condenada a andar em farrapos como se sentiu no tal consultório médico. A "riqueza" do dom fálico não opera sem o artifício da simbolização com o pagamento, e esse analisando estava capturado como objeto nesse esgarçamento de uma dívida cada vez maior, inegociável, uma dívida real. Então, como ato analítico, comuniquei a interrupção dessa análise. Ele sempre prometia pagar, pelo dinheiro de uma herança (do simbólico?), e nunca conseguia (real?), ficando cada vez com mais dívidas. Embora ele associasse bem em análise, na ética do bem-dizer, nessas condições, a análise dele estava indo pelo buraco abaixo, pois se presentificava um excesso de gozo, um deslimite que o próprio processo analítico estava alimentando. Foi necessário uma interrupção como corte, como subtração desse excesso que a ausência do pagamento não permitia falar, não permitia simbolizar na falta, faltando sua própria enunciação. Piorando cada vez mais, reforçando seu sintoma, pois atualizava, nessa repetição, sua encenação de inferioridade da infância, sem recursos para simbolizá-la, pois sem dinheiro para pagar pela falta, pelo simbólico, seguia apenas acumulando dívidas impagáveis, dívidas impossíveis de simbolizar.
Nossos analisandos nos ensinam muito, muito mesmo. São eles que reinventam a psicanálise. Freud sistematizou como teoria, mas foram suas histéricas que inventaram o discurso psicanalítico, afirmando que a psicanálise, como teoria, estará sempre inacabada.


Texto escrito por Alex Azevedo.

Análise/Supervisão.

Para introduzir a questão que tentarei colocar, Lacan diz que a metalinguagem, ou seja, os diálogos, a intersubjetividade, circunscrita à análise, é da ordem do impossível, pois não há nada além do discurso do sujeito (analisante), não há nada além da linguagem como estrutura do inconsciente. O único discurso que se presentifica em transferência, é o discurso do analisante.
Por exemplo, como psicanalista, fiz uma determinada pontuação quando um analisando disse: "Fico envergonhado em falar isso, mas me disseram que eu terminei meu namoro por sua causa". Então, em transferência, esse analisando me endereça uma demanda de amor transferencial. O analista não responde a uma demanda de amor, embora seja somente essa demanda do inconsciente que constitui e autoriza a função do analista, que autoriza o lugar da transferência. Depois, esse mesmo analisando diz: "às vezes penso que eu não tenho opinião própria, pois são os outros que falam o que devo fazer, mas eu sei que se eu venho aqui, fiz uma escolha minha". Nesse instante eu pontuo que embora me diga que os outros falam o que deve fazer, quando ele faz e fala sobre isso (o que os outros cobram), quem está falando e fazendo, é exclusivamente ele. Faço essa intervenção no momento em que ele fala uma frase, afirmando que é uma frase de outra pessoa, pois afirma que não tem opinião própria. Eu pontuo dessa maneira: "Mas quem está falando?" Ele diz: "Eu". Neste momento eu encerro a sessão.
Mas a questão que eu fiquei foi a seguinte: Quando fiz tal intervenção, havia escutado a tal demanda de amor: "Fico envergonhado em falar isso, mas me disseram que eu terminei meu namoro por sua causa"? Por isso, após a sessão, fiquei pensando de qual lugar fiz essa intervenção. Será que foi uma resistência em suportar essa demanda de amor? Quando eu pontuo que quando ele diz o que os outros falam, é ele que está falando, pode ser uma pontuação do lugar de uma resistência minha em escutar essa demanda de amor.
Mas enfim, algo me convocou no discurso desse analisando, o que talvez me causou como sujeito e não como analista. Mas sendo minha questão, é questão para simbolizar em transferência na minha análise pessoal, no divã do meu analista. Mas para além de ter restado como uma questão para mim, na minha dúvida se essa pontuação ocorreu do lugar de minha resistência em escutar aquela suposta demanda de amor, eu não posso discernir se minha pontuação, para além do que restou como questão para mim, foi da ordem de um ato analítico, tendo alguma eficácia clínica, no sentido de deslocamentos simbólicos. O que é angustiante num processo de análise, e nisso eu incluo como angustiante para o próprio analista, é que é impossível prever e antecipar os efeitos de uma intervenção no analisando. Para ambos tal ressignificação é obscura, sendo apreendida na ordem de uma surpresa, de um espanto.
Embora tal intervenção que eu fiz como analista tenha me convocado como um sujeito, e isso às vezes é intransmissível, não posso controlar os efeitos de tal intervenção para o analisando. Esses efeitos, para o analisando, só serão escutados num a posteriori, num só-depois, sendo impossível, incontrolável, prevê-los em relação ao discurso do analisando. Por isso numa supervisão, devido à Lei da castração e à ética do desejo, o analista não tem recursos para relatar o que ocorreu durante uma sessão de análise como história cronológica, o analista só pode falar, numa supervisão, sobre as questões que foram causadas nele, que lhe afetaram na escuta do analisando. Então, a supervisão é uma vertente da análise pessoal desse analista. O supervisor escuta a escuta do analista. Os efeitos para o analisando, das pontuações do analista, são obscuros e às vezes alheios ao que foi causado no analista.
Numa análise só se trata de texto, e não de contexto. É o texto do analisando que conta. E quando é o texto do analista que é afetado, ele deve, em sua análise pessoal, falar dessas questões para separá-las do texto do analisando, e assim poder continuar escutando.
Será que o que me levou a resistir ao escutar esse analisando, foi justamente essa convocação, no meu inconsciente, e não no desse analisando, que me tomou não como analista mas como sujeito? Escutei como sujeito, e não como analista? É somente a transferência que autoriza a função do analista, e só há analista como um sintoma do discurso do analisando, pois é somente o analisando, endereçando um suposto saber, que constitui o lugar do analista.
Mas a pontuação que eu fiz, mesmo achando que escutei como sujeito, pode ter causado algum efeito para esse analisando como uma pontuação do lugar de um analista, e não do lugar de um sujeito. Para o analisando, dependendo da situação, não importa muito como ficou para mim a minha escuta, importa como a minha escuta ficou para o analisando. E isso só vou "saber" ao longo das próximas sessões. Acho que é disso que se trata uma supervisão, falar do desejo de analista para outro analista, também como transferência de trabalho, e reenviá-lo para o lugar da análise do analista.
Talvez essa minha escuta que chamei de uma escuta do lugar do sujeito seja algo que compareceu apenas na minha análise, na análise do analista, em transferência com meu analista. Em relação a esse analisando, só houve escuta do lugar do analista, pois é somente nesse lugar, de transferência, que um analisando escuta as pontuações do analista.
A teoria psicanalítica é transmitida sob transferência, tanto numa análise quanto numa supervisão. Falar desse lugar de causa sobre um analisando para um outro psicanalista (supervisor), essas pontuações operadas desse lugar, convocando o desejo do analista, constitui um ensino, pois consiste em algo que irrompe na experiência, articulado com os textos freudianos fundadores. E é aí, somente nesse ponto, que a diária reinvenção da psicanálise se opera.

Texto escrito por Alex Azevedo.