domingo, 28 de agosto de 2011

O Esquecimento entre a Consciência e o Inconsciente.


Neste presente artigo, focarei a relação existente entre a consciência e o inconsciente, articulando-a com a questão do esquecimento.

Em psicanálise, o esquecimento ganhou uma nova perspectiva. As tradicionais bases biológicas saíram de cena para que as causas inconscientes subissem ao palco do sujeito humano.

Há uma frase dita por Freud que foi considerada como a terceira grande ferida na vaidade do conhecimento e do poder dos homens: - A consciência não é a senhora em sua própria casa! Historicamente, a primeira ferida no orgulho da humanidade foi a revolução de Copérnico, astrônomo que descobriu que a Terra não é o centro do universo, mas sim o Sol. A Terra, planeta supostamente grandioso em torno do qual os outros míseros planetinhas giravam, foi rebaixada à categoria de mais um planetinha em órbita no sistema solar - sem nada especial em relação aos demais.

A segunda ferida derivou das pesquisas de Darwin sobre a evolução das espécies, gerando enorme abalo nas teorias cristãs sobre a gênese. Enquanto o criacionismo atribuía um surgimento divino aos homens, herdeiros de Adão e Eva - criações diretamente das mãos de Deus -, já o evolucionismo de Darwin impôs a descoberta que o homem não descende de Deus, mas sim dos símios, ou seja, de macacos e de chimpanzés.

Para ilustrar essa questão trazida por Darwin, recordo-me de um livro do Umberto Eco, “Em Nome da Rosa”, que foi adaptado para o cinema, abordando, dentre outros temas, o tabu das proximidades do homem com os animais. Na Idade Média, o riso era condenado pelo clero secular como heresia, pois rir transformava a fisionomia humana em animal. Ao rir, o homem abandonava a sua característica divina - de ser à imagem e semelhança de Deus -, tornando-se idêntico aos macacos. No filme, um livro da poética de Aristóteles, uma comédia que versava sobre as virtudes do riso, perdeu-se na abadia. Esse acontecimento gerou uma série de assassinatos internamente à igreja, alardeando o guardião da biblioteca do mosteiro, um monge cego para o qual a perda desse livro poderia acarretar a contaminação da nobreza humana com a deformidade e a bestialidade dos animais irracionais. A identidade humana, modelada pelas mãos de Deus, seria abalada pelo riso, que significava inferioridade e degradação. Por isso, a revelação darwiniana ocasionou um forte abalo nas estruturas narcísicas da sociedade.

Como curiosidade, enquanto o riso foi condenado e proibido na Idade Média, atualmente houve uma inversão. Nos dias de hoje, o riso passou a ser recomendado como necessidade vital, remédio contra o mal. A tristeza, no nosso mundo, é que passou a ser a grande vilã. Ninguém mais tem o direito de estar triste. Atualmente, é a tristeza que é condenável. Mas é interessante notar que o ato de sorrir e o de chorar são bem parecidos fisicamente, mexendo com a mesma quantidade de músculos. Tem pessoas sobre as quais não sabemos identificar quando estão rindo ou chorando. Mas o essencial é que tanto rir quanto chorar são afetos tipicamente humanos.

Já na teoria freudiana, associada à terceira ferida narcísica, foi descoberto que a razão perdeu a posição central. O inconsciente é o verdadeiro comandante, legítimo senhor na casa da consciência. Tudo aquilo que escapa à consciência, fonte de impulsos repetitivos, mesmo que realizados com resistência e censura, é determinado pela lógica do inconsciente.

A consciência, diferentemente da expressão conhecida como “tomar consciência”, ou “conscientizar-se”, é uma instância psíquica regulada pelo que Freud chama de princípio da realidade. Essa realidade, que responde por uma ficção particular e coletiva para garantir o laço-social, funciona como uma peneira que separa o conteúdo que deve ou não deve ser inscrito na consciência. O problema - ou solução - é que essa operação de filtragem da consciência, que é o lugar das fantasias do ego, sempre deixa alguma falha, fracassando em conter a totalidade dos impulsos indesejáveis.

O “esquecimento” - que não é um esquecimento qualquer - consiste nessa operação de falha, quando o que deveria continuar no inconsciente vem à tona, insistindo em comparecer. Quando isso ocorre, o ego dispara um mecanismo de defesa conhecido em psicanálise pelo nome de “recalque”. O recalque é aquilo que sempre retorna, exigindo ganhar um contorno, um lugar existente, um valor na vida do sujeito. Mas o sujeito nada quer saber do seu material recalcado. O que ele quer é não se haver com seus desejos inconscientes. Só que são esses desejos inconscientes, esquecidos, o que há de mais íntimo e determinante na vida de cada pessoa. Por mais que tentemos esconder, camuflar, censurar e resistir, o recalque sempre retorna, buscando meios diversos para ser exteriorizado.

Quando o inconsciente se manifesta, a tendência é de não reconhecermos seus impulsos como advindos de nossa mais íntima realidade psíquica. O psicanalista Lacan chama esse lugar em que os desejos recalcados estão inscritos, de grande Outro. Esse Outro não é nem alguém, nem alguma coisa, mas sim o discurso do inconsciente. O sujeito está dividido entre o seu querer consciente, e o material reprimido do seu desejo inconsciente. E é sempre ao falar, que o sujeito manifesta a linguagem inconsciente. Nos tropeços, equívocos e lapsos, quando o sujeito fala uma coisa querendo ter falado outra, é que o inconsciente, conteúdo que mais lhe concerne intimamente, mas que justamente por isso está mais esquecido, acaba vindo à tona com força total.

Freud, sobre essa questão, exemplifica com o caso de um presidente de um órgão público, responsável por abrir uma sessão, que constata a presença dos membros e diz o contrário do que pretendia dizer, declarando que a sessão estava encerrada, em vez de aberta.

Conscientemente ele teria que abrir a sessão, mas inconscientemente desejava encerrá-la. Por isso, a linguagem do seu inconsciente escapou da vigilância do ego, invertendo o que ele queria dizer.

O que está mais esquecido, é exatamente o que há de mais importante na vida de alguém. Sempre que um sujeito esquece, não é à toa. É claro que existem causas orgânicas para os esquecimentos, como lesões fisiológicas. Porém, na maioria das vezes, o que esquecemos está subordinado a uma causa psíquica. Aquilo que mais diz respeito a nós mesmos, mas que nos ameaça a identidade social, acaba se transformando no material recalcado do inconsciente.

Para ilustrar essa dinâmica do recalque, Freud dá o exemplo de uma pessoa assistindo a alguma conferência num auditório, tumultuando tudo, ao invés de ficar em silêncio. Se essa pessoa é convidada a se retirar por seguranças, para restabelecer a paz no recinto, ela, mesmo do lado de fora, pode ficar socando as portas. O que invade o auditório já não é mais a presença da pessoa, mas o som produzido pelas pancadas e pelos gritos de revolta da pessoa no lado de fora. O auditório está para a consciência, assim como a pessoa que foi expulsa, gritando e batendo do lado de fora, está para o retorno do recalcado.

É nesse sentido que o retorno do recalcado, o discurso do Outro, que é o inconsciente, impõe à consciência medidas urgentes de defesa contra o que ela não é capaz de assimilar. A consciência interpreta o material recalcado como oriundo de eventos traumáticos, associando-o a impulsos hostis e indesejáveis. É por isso que Freud compreende que quanto mais um desejo familiar retorna do inconsciente, mais o ego fica estranhamente inquieto. Porém, é justamente essa estranheza que retorna do inconsciente, o que há de mais familiar para um sujeito.

É nesse ponto que a função do “sintoma” é convocada para suprir as necessidades de um ego fragilizado. Quanto mais o recalque pressiona para voltar, mais o ego regride às origens dos primeiros eventos traumáticos responsáveis pelo recalque, que são principalmente originados na infância do sujeito - fase na qual as instâncias psíquicas vão se constituindo intimamente.

Freud diz que o ego é o maior dos sintomas, pois ele tenta bloquear esses impulsos do inconsciente. Só que o sintoma é uma espécie de calosidade feita pelo excesso do recalque que é derramado no ponto em que a defesa falha. Ao mesmo tempo em que o sintoma tenta conter o recalque, para não invadir a consciência, o sintoma é feito pela própria matéria-prima do recalcado.

O conceito de sintoma em psicanálise nada tem a ver com o que a medicina entende por sintoma. Em psicanálise, o sintoma é um mal necessário, pois organiza a realidade do sujeito em sua vida pessoal e social. O sintoma obsessivo-compulsivo, por exemplo, como aquele de sempre voltar ao mesmo lugar para verificar algo, ou lavar as mãos diversas vezes, ou mesmo girar a maçaneta e a chave de uma porta repetidamente, causa um grande incômodo para o sujeito, mas é exatamente isso que evita que esse sujeito entre em contato direto com o seu desejo inconsciente - associado a um impulso hostil, a um evento traumático que acaba se mantendo afastado da memória afetiva do sujeito. É quando esse sintoma desconfortável começa a falhar que o sujeito se sente exposto às suas verdades inconscientes que o determinam, mas sobre as quais ele nada quer saber.

O inconsciente não é uma continuidade em relação à consciência. Não tem ligação com aquilo que alguns chamam de “subconsciente”, que está abaixo da consciência. Para a psicanálise, o inconsciente é uma instância psíquica individual, que tem suas leis e sua própria lógica.

Para concluir, o esquecimento em psicanálise nunca é por acaso. O esquecimento, conhecido como “recalque”, quando não é por lesão orgânica, está associado ao retorno dos impulsos inconscientes que insistem na livre expressão, rejeitada pela consciência. Num tratamento psicanalítico, o conteúdo inconsciente vai gradativamente ganhando espaço, sendo assimilado e reconhecido até chegar à elaboração psíquica com os recursos simbólicos do paciente. Em alguns casos, o material recalcado que não ganha expressão, também pode ser convertido no aspecto de lesões corporais, tendo como causa a atividade do psiquismo. Afinal, o inconsciente busca expressão. Caso os conteúdos recalcados não sejam realizados simbolicamente, na expressão da fala do sujeito, ele retorna no corpo, ganhando expressão orgânica.


ARTIGO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Amor em Outra.














Ela me pegou pela mão. Puxou-me com delicadeza para a área gramada - um extenso espaço entre os prédios da faculdade. Notando o meu semblante infantil, tripudiou de minha inexperiência com um sorriso malicioso. Quis agarrar-me a ela. Seu corpo desvaneceu. Pensei tê-la perdido. Enquanto eu permanecia na borda do canteiro, hesitante, ela reapareceu dançando entre as árvores. Com um chamado doce, posicionando levemente a palma da mão nos lábios contraídos, exalou aquele sopro aromático que me tirou da inércia extasiada. Fui com ela.

Exercendo uma vocação nínfica, saltando e cantando, seduzindo sem se aproximar, afastando para tocar, convidou-me para vê-la em ato. Novamente me pegou pela mão e me levou até um fino banquinho armado entre dois troncos espessos. Pediu-me para que sentasse na grama, aos seus pés. beliscou-me o queixo devagar. Fiquei lá, inebriado pelo que nela ainda não vivia, por uma promessa ondulando no ar. Ela me fez recuar. Ainda sentado eu a vi dar um impulso, segurando nas cordas do que talvez fora um balanço. Apoiando-se nos troncos, deu um salto certeiro. Ficou de pé sobre o banquinho.

Cantou, cantou, cantou... Insinuava se esconder, deixando entrever apenas o mínimo do seu corpo. Tinha prazer em me enganar. Mas talvez se escondesse de si, não de mim. Quanto menos eu a via, mais eu a sentia, mais eu a possuía. As partes do seu corpo que se alternavam, mostrando-me na fantasia o que não podia ser visto - ela toda - causavam em mim um medo súbito, regado pela estridente paixão que se acercava de minha pele infantil. Já era um homem, crescido, mas não adulto. Sentia-me inocente diante do feitiço feminino. No jogo da presença e ausência, não havia opção, fatalmente perderia. Não havia mais nada a ser visto além dela - seu corpo nu, apesar de bem vestido.

Não tive outra reação além de contemplá-la. Aquilo me invadia, me tensionava, me atraía. Estava submetido à mágica aparição que desaparecia num piscar de olhos, para se deslocar e reaparecer em outro lugar - meus afetos e desafetos. Ela bailava, esvaía, ricocheteava e eu, reprimia. Ela articulada, gozando de minha demora em despertar. Eu embasbacado, de queixo caído, engessado, vendo-a levitar.

Canções, interpretações, um repertório sem fim. Dançava para uma platéia de cegos, reduzida ao único afeto que a mobilizava mais e mais: O meu assombro. Ao resvalar no meu olhar tímido, erógeno e pueril, ela se enterneceu. Subitamente estancou os passos da dança, aos quais se entregara. Inclinou-se para melhor me enquadrar em sua visão bucólica, e voltou a se sentar no banquinho entre as árvores. Contemplou a paisagem da baía. O espetáculo do pôr do sol, que concentrava multidões - gazeadores de aula - para lhe assistir, ainda demoraria. Tínhamos muito tempo sozinhos.

Ela esticou os braços, espreguiçando-os, e laçou os dois troncos por trás, simultaneamente, com os pulsos ligeiramente amolecidos e preguiçosos. Jogou o corpo como se fosse se balançar, e espichou as pernas nuas, cruzando os pés na altura dos tornozelos. Esses sutis movimentos retraíram sua pequena saia de seda, concedendo um pouco mais a visão de suas bem modeladas coxas ao desejo fugaz que se expandia em luzes contidas pelo gramado orvalhado.

O vento mudou de direção. Roubou algumas folhas que giraram em redemoinho. Seus cabelos esvoaçaram, livres. Ela me contava algumas histórias. Era sua vida confidenciada ao estranho imaturo. Não estava preparado para ouvi-las. Quanto mais falava, mais me permitia ser levado com as folhas aos ventos. Repetia a violência radiante da natureza. Eu queria ouvir tudo. Não queria perder nada, nenhuma palavra que me era segredada. Uma força desconhecida, um desejo, me impelia a ficar, a beber e saborear suas histórias de mulher com meus ouvidos de moleque.

Após muito me maltratar, entregando-me ao deleite em sua companhia, saiu em disparada. Despediu-se rapidamente. Disse, virando-se para trás, em direção a minha distante presença cada vez menor, que voltaria. Quem sabe um esbarrão aqui ou acolá? Mas ela não mais voltou. Não mais nos vimos. Só a sua lembrança - o que dela me pertencia - um pouco embaçada e iludida, admito!, insistiu em não se despedir. Minha memória, responsável por esculpir belezas indescritíveis em sua ausência, cravou um prego solitário e agônico na madeira de lei do meu coração.

Muito tempo se passou. Eu abandonara a peraltice envergonhada com a qual eu a conhecera. Um pouco mais adulto, por que não? Já estava terminando a faculdade. Ela ressurgiu. Parecia um pouco mais criança. Já eu, adulto. Nossos lugares se inverteram. Aqueles anos foram suficientes para que me tornasse homem, embora pouco tivesse envelhecido. Nos esbarramos, como prenunciou antes de partir. Ficamos frente a frente. Nos encaramos. Depois sorrimos. Nos demos as mãos. Eu estava confiante. Mesmo que a idade cronológica denunciasse realidade diversa, eu estava mais velho do que ela.

Com a condição que se impôs, namoramos. Aquele calor de todo início de relação... Independente do amadurecimento, regredíamos. Viramos dois adolescentes, como se fosse a primeira paixão. E era, apesar de já sermos experientes. Quando, desamparada, ela procurou o conforto e a segurança em meu peito, fora inesquecível. A primeira vez que meu corpo servira de aconchego para seus medos e privações. Mas era tão difícil nos entregarmos totalmente, dizermos que nos amávamos... Nós dois. Só Deus sabe o quanto ficamos tímidos para expressar as três palavrinhas mágicas: "Eu te amo". Criávamos mil artifícios para dizê-las sem que disséssemos nada. Ou talvez sem dizer nada, era aí que mais dizíamos.

Quando conseguimos falar, quando não tivemos mais medo de nos machucarmos, quando o passado já não mais se apresentou como fantasmas a serem comparados com a atualidade, pudemos nos entregar plenamente. Nada mais existia ao nosso redor. Só nós dois. Seguimos assim, nos amando, por um longo tempo. Mas a fatalidade de que éramos dois, e não um, bateu à porta com a ira de quem descumprira o mandamento da descontinuidade entre as criaturas. Os desejos assimétricos, que antes nos uniram, revelaram-se maquiavélicos. Uma prudência que nada mais se animava para reinventar. Desmorecemos. Fomos nos apagando, nos perdendo.

Até que a luz sumiu definitivamente. E, no escuro, só podia me apalpar. Senti-la em mim. Após o rompimento, ainda nos vimos mais algumas vezes. Tentamos reacender a chama. Tentamos resgatar a paixão. E ela, a paixão, deu as caras em alguns instantes, não vou negar!, mas quanto mais eu a tocava, menos a sentia. Ela não estava mais nela. Ela se transferiu para mim, internalizou-se. "Ela não estava mais nela", que coisa estranha!, mas era verdade. Talvez tenha se desmaterializado. Ganhou vida própria, independente de um corpo. Estava em mim. Só em mim. Só, em mim.

Na minha ânsia em encontrar alguma justificação para o injustificável, pensei no latim - uma língua morta. Assim como o meu amor já não mais habitava o corpo do meu amor - a saudade que eu sentia dela não se realizava em sua presença - o latim já não mais existia no próprio latim. O latim se disseminara como uma entidade invisível, fertilizando a maioria dos idiomas vivos do nosso velho e novo mundos. Era isso! Ela e o latim. Duas entidades mortas que criavam vida, a raiz do vocabulário latino, da gramática do amor que jamais apontaria para um lugar comum, pois estaria sempre em outro lugar - distante ou perto, não importa mais.

Tentamos nos ver mais e mais. Tentativas frustradas. Quanto mais a via, menos ela existia para mim. Quanto menos a via, mais seu afeto se fortalecia dentro de mim. Eu a amava em silêncio. Eu a amava em sua ausência. Eu a odiava em sua presença. Como eu não queria apagá-la de minha vida - pois ela já estava mergulhada em mim - não mais a vi. Deixei que seu fluido me dominasse. Ela é o latim. Uma língua morta. Mas responsável por fecundar as riquezas do francês, do espanhol, do português, do italiano... Eu a amo. Eu não a amo. Eu só a amo quando não estou com ela. Uma condenação. Eu só a vejo... em outra. Eu só a sinto... em outra. Ela mesma... nunca mais.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 6 de agosto de 2011

A Sós.














Quase toda a noite, caminhava pelas ruas desertas até a casa dele. Só se encontravam lá. Às escondidas. Ela se questionava sobre essa condição. Pressionava-o. Achava que ele não queria apresentá-la aos amigos, que se envergonhasse dela por alguma razão. Ele reagia, com ponderada virilidade, às suas exigências para arrancá-lo da alcova. Ela queria que a relação ganhasse visibilidade máxima. Torná-la pública era o seu objetivo. Achava que só assim confirmaria que ela a amava, a assumia.

Ele ficava irredutível. Contra-argumentava. Dizia que ela era tão importante que ele a queria com exclusividade. Não desejava compartilhá-la com olhares estrangeiros. Ele falava, falava e ela acabava cedendo. Deixava-se convencer. Não porque confiasse no poder de persuasão dele, mas não resistia àquela voz roufenha e melodiosa. Ela detestava confessar isso, mas sentia calores indecorosos sempre que se via tomada brutalmente de forma intrépida, passageira e, acima de tudo, clandestina, por aquele homem.

O encaixe, perfeito. Amavam-se como nenhum outro amante fora capaz. Resolviam suas rusgas quando ambas as línguas verbalizavam libidos inauditas. O resfolegar sinfônico das carnes. Naquele instante, inexistiam. Realização da nostálgica unidade perdida. Apesar de jamais terem renunciado suas diferenças, eram elas, em sua força demoníaca, que executavam o re-ligare em sua dimensão mais fluida.

Juntos, sentia-se completa. Na inevitável separação após cada noite de amor, sentia-se desamparada, carente, aflita pela promessa do que sabia ser impossível: Assumir seu amor publicamente. Quando não estava na casa do namorado, ela evocava o seu nome, trazia-o para perto de si, atribuindo-lhe uma das memórias mais belas. Embora se esforçasse para tê-lo, emoldurando-o com begônias e tulipas de sua imaginação, ela só conseguia se agarrar à devastadora ausência. E sua questão insistia, não calava, repetia: "Por que ele não me apresenta para os amigos?". "Por que eu tenho que ir sempre à casa dele?". "Só lá podemos nos encontrar?".

O tempo passava, e essa situação não mudava. Mantinha-se melancolicamente idêntica. Sempre. Invariavelmente. Mesmo não aceitando, irritada, magoada, ela seguia, durante certa hora da noite, o mesmo trajeto solitário até a casa do namorado. Pensava em desistir, endereçar-lhe impropérios, xingá-lo, vociferar, terminar o namoro. Mas uma estranha familiaridade a impulsionava para o destino cruel. Resignava-se, até gostava quando o corpo nu daquele homem apaixonante desfilava pelos seus sentidos, como louca aparição, saborosa alucinação. Ela não sabia como ele era na sua ausência. Também não se falavam ao telefone. Mas tinha certeza que seu pacato semblante sofria metamorfose inigualável ao se dar conta que a mulher amada estava presente, ao seu lado.

Numa noite, enquanto o esperava no banho, ela, sentada na beirada do colchão, encaracolava suas sedosas madeixas com o indicador. Enrolava os cabelos em movimentos espiralados até esticar a raiz, levantando quase totalmente o braço, bem acima da cabeça. Depois, num ato desavergonhado, deixava-os cair resolutos, modelando os cachos que se insinuavam, salientes, na direção em que o amado se banhava. Ao sair do banho, ele a flagrou em seu sedutor ritual, e hipnotizado pela faceirice da mulher, abraçou-a por trás num gesto impulsivo. Aturdida, sem esperar aquela reação, num gemido súbito de gozo, involuntária e reflexiva ação, lançou o cotovelo para trás com toda a força, contorcendo de prazer.

Ouviu um estrondo. Imediatamente olhou em direção ao barulho. Estava lá. Seu Adônis, nu, fatalmente estendido no chão, desfalecido. Apavorada, ligou para o pronto-socorro. Enquanto a ambulância não chegava, ela se ajoelhou, também nua, envolveu aquele corpo que já lhe presenteara com tantos orgasmos, inclinou a cabeça sobre seu peito e se pôs a chorar. Um choro fluido, livre, como jamais pôde chorar.

Na sala de espera da emergência, a notícia. Ele estava bem. Ela lhe atingira com uma invejável pontaria, na têmpora direita, o que lhe causou o desmaio. O médico lhe conduziu ao encontro do amado. No leito, os pais do rapaz lhe esperavam. Era a primeira vez que tinha seus "sogros" à sua frente. Enquanto ele dormia - efeito de sedativos - ela sorria de felicidade por oficializar - mesmo em inusitada situação - o namoro publicamente.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.