quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A Despedida.









A Despedida.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

O maquinista apitara mais uma vez. Seria a última oportunidade de adeus antes do embarque. O alvoroço se intensificou na estação de Keleti, em Budapeste. Acenos, lágrimas, sorrisos, despedidas, um vozerio sem fim. Enquanto Edit enlaçou István com um abraço aflito e cheio de saudade, seus dois filhos se enroscaram em suas pernas, chorando copiosamente, e imploraram para que o pai não partisse.

István, contendo-se, ainda derramou algumas lágrimas antes de respirar fundo, abaixar para pegar suas malas, sorrir confiante e se virar para embarcar. Ao subir a escadinha da locomotiva, foi severamente revistado. Após a constrangedora inspeção, entregou o bilhete para o fiscal que, por sua vez, indicou-lhe o seu assento. Em seguida, ajeitou suas malas para que coubessem no bagageiro e se acomodou ao lado da janela.

Pegou um lenço do bolso para desembaçar o vidro. O frio lá de fora contrastava com o ar quente inalado e expelido pelos passageiros. Uma espessa fumaça branca, em abundância, matizou o azul do céu. O gigante de ferro se pôs a trilhar seu caminho. István tentou esconder a emoção ao ver seus filhos correndo atrás do trem.

Sua esposa, cada vez menor pela distância, com uma das mãos no rosto, disfarçando o inchaço dos olhos e a vermelhidão do nariz, apenas acenava ao longe e gritava os nomes dos filhos para que voltassem. Visivelmente abatido, István ergueu a mão e mexeu os dedos, como se apenas os abrisse e os fechasse timidamente. Tal gesto jamais seria percebido por quem fosse que estivesse do outro lado da janela.

Seu peito apertava quanto mais se afastava. Vislumbrava melhores condições na Inglaterra. A guerra já consumira a maior parte do continente europeu. Ser cidadão húngaro só levava ao pior. Invasões após invasões. Dominações após dominações.

Como se já não bastasse perder sua língua materna para o império austríaco em outras épocas, agora corria o risco de perder sua própria família para o nacional-socialismo alemão. Estava obstinado em não permitir tamanha tragédia. Embora não fosse judeu, já havia perdido amizades valiosas para o obsceno antissemitismo. Nada pôde fazer para salvá-las, mas estava em suas mãos dar uma vida mais digna à sua família.

As condições eram péssimas até para os não-judeus. Tudo ia de mal a pior. Ouvira que na Inglaterra ainda havia algo de próspero naqueles tempos malditos. Sabia que algumas personalidades, inclusive as perseguidas, de diferentes nações, encontraram asilo político e econômico por lá. Deixaria sua esposa e filhos apenas por algumas semanas, pelo menos até descobrir uma maneira de se estabelecer financeiramente. Mandaria dinheiro antes de voltar para buscá-los.

Eles não passariam por necessidades por algum tempo. Havia uma boa economia que juntara debaixo do colchão, dinheiro vivo. Não acreditava nos banqueiros. O trabalho no setor agrícola, antes que a crise despencasse de vez, tinha lhe rendido alguma coisa. Esse dinheiro seria suficiente até o seu regresso. Seus conhecidos também não os deixariam passar fome durante sua ausência.

Enquanto István pensava em todas as suas responsabilidades, o trem parou numa estação desconhecida. Oficiais da SS entraram batendo com força seus coturnos no chão, como se marcassem território. Um deles arrancou um sujeito de um assento aos murros e pontapés.

Alguém cochichou ao fundo que judeus viajavam clandestinamente, com identidades falsas. Depois daquele, outro também foi jogado do trem com violência, maltratado, pisoteado, assassinado na frente de todos. Quando os soldados apanharam o terceiro, István, movido pelo remorso de nada ter feito para proteger seus amigos judeus, levantou-se, saltou no pescoço de um oficial, agarrou-o pela farda e lhe desferiu um soco na cara.

O companheiro do oficial do serviço secreto, sem que a origem de István importasse, sacou a pistola e disparou, acertando, com precisão cirúrgica, a testa do húngaro. Os demais passageiros, menos indiferentes do que apáticos, mantiveram-se em seus assentos.

Um dos soldados agarrou o corpo de István com desdém, cuspiu em seu rosto e o jogou no trilho, deixando que o gigante de ferro terminasse o serviço - desfigurasse-o, tornando-o irreconhecível. Após identificarem o terceiro judeu, os oficiais se retiraram, levando-os para um gabinete anexo à estação.

O trem seguiu viajem como se tudo aquilo jamais tivesse acontecido. Semanas e meses se passaram sem que Edit e seus dois filhos tivessem notícias de István. Seus parentes a tranquilizavam, dizendo que os correios extraviavam muitas correspondências em época de guerra e que em breve ele estaria de volta.

Mas após dois anos sem que nada soubesse do marido e passando por terríveis necessidades, Edit cedeu aos galanteios de Moritz, um oficial alemão. Um ano depois, ela e os filhos se mudaram para uma agradável casinha no interior de Berlim. Moritz cuidava dos filhos de Edit como se fossem seus. Com os cuidados do oficial da SS, a família jamais passou por mais nenhum aperto.

Moritz prometera encontrar István. Mas, depois de muito tempo sem nenhuma pista do seu paradeiro, nem mais no nome dele a nova família alemã tocara. István fora esquecido para que a vida retomasse seu curso normal. Com o atencioso mantenedor alemão e uma nova casa em outro país, Edit reencontrou a paz indispensável para recomeçar ao lado dos filhos.


Conto Escrito por Alex Azevedo Dias.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Um Doce Encontro.


















Um Doce Encontro.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Diariamente, ao entardecer, ela passava pela calçada de mosaicos tortos. Artistas anônimos, mestres calceteiros, desenharam ondulações com as irregulares pedrinhas portuguesas. Talvez a maioria deles já não mais exista, mas deixaram suas marcas nas calçadas brasileiras, herdeiras que são da última flor do Lácio. Das ondas do mar de Copacabana às partituras de Noel Rosa em Vila Isabel. O mosaico do calçadão da praia de Icaraí, em Niterói, lembra os naipes das cartas de baralho, muito semelhante às calçadas lisboetas.

Pontualmente, às seis horas da tarde, aquela jovem cruzava a rua Augusta. Eu a via desde a Praça do Rossio até atravessar o trilho do histórico bonde amarelo da Praça do Comércio. A primeira vez em que a vi, eu contemplava a algazarra dos vendedores ambulantes e artistas de rua da janela do hotel em que estava hospedado. Da multidão homogênea, ela apareceu. Todos os holofotes imaginários a destacaram, enquanto a massa de transeuntes desaparecera por completo de minha vista. Vestido branco, rendado, deixando as coxas à mostra, sapatos de salto-alto, sutiã levemente visível pela alça do vestido que lhe escorregava pelo ombro. De seus cabelos longos e discretamente ondulados à maneira como balançava a cintura e brincava de esconde-esconde, cobrindo e descobrindo as costas e o colo com sua mexida de cabelo, uma saudade do Rio me tocou a alma.

Estava em Portugal a trabalho, Precisava fechar um negócio lucrativo para o restaurante paulista com o qual tinha sociedade. Iguarias lusitanas eram o meu alvo. A rua Augusta, homenagem a D. José I, o Augusto, dentre outros tipos de comércios, tem um mercado gastronômico de primeiríssima qualidade. Além da formalidade dos cafés, com suas mesas distribuídas ao longo do calçamento, os artesãos da culinária - populares preciosidades - também, e principalmente, merecem honrarias. A rua Augusta é fechada ao trânsito. Faz lembrar a rua Quinze de Novembro em Curitiba. Escrevo estas linhas daqui, de Portugal. Hoje, não mais à procura dos artistas da boa mesa, mas por outro motivo. Um motivo vital. Motivo que me impulsionou a transferir residência de São Paulo para a terrinha dos alfacinhas lusitanos.

Não sei se os lisboetas ainda consomem tanto alface, mas na época da invasão moura, talvez esse fosse um dos únicos alimentos do povo de Lisboa. Por isso o tal título pejorativo que perdura até hoje dos cidadãos lisboetas: alfacinhas. Tenho saudade da minha terra natal. Tenho saudade do Rio, de São Paulo, de Curitiba... Tenho saudade do Brasil. Mas nenhuma saudade é capaz de me tirar desta cidade. Eu amo uma mulher e amo um país. Gosto de Portugal, mas não é amor. E o meu amor pelo Brasil em nada se compara ao amor pela mulher. O amor pela mulher é mais forte e me impede de voltar para lá, para além mar.

Acho que nunca mais cruzarei a imensidão do Atlântico. Pois o sentimento que tenho pela mulher dos cabelos encaracolados - tão carioca no jeito e tão portuguesa na origem - é mais oceânico do que o mar. Tirando o samba que se ouve em cada esquina, a rua Augusta de Lisboa tem alguma coisa da rua do Ouvidor do meu saudoso Rio de Janeiro. Talvez os bares, a arquitetura, uma certa musicalidade entoada pelos tocadores de harmônica, pessoas se divertindo, comprando, cantando, bebendo, enfim... sendo felizes.

Certa vez, como quem não quer nada, peguei um bondinho turístico bem na hora em que a jovem, que já estava no meu coração sem que soubesse, passaria por lá. Quando a vi chegar à Praça do Comércio, saltei do bonde e me aproximei. Tomei coragem, respirei fundo e ensaiei um cumprimento, uma saudação, um alô de apresentação. Mas recuei envergonhado. Levava uma sacola com pasteizinhos de nata e alguns folhetos informativos sobre o folclore gastronômico da cidade. Eu me sentia mal vestido. Peças amarrotadas. Estava suado pelo tempo de andança pelas ruas de Lisboa. Usava uma boina e havia deixado a barba áspera, por fazer, e exibia um bigode cultivado há semanas. Tirando a parte do bigode que, para mim, mesmo forçando a barra, é um símbolo viril de outros tempos, eu me sentia sujo e feio. Com um pé fincado no chão, fiz que ia e que vinha duas vezes, hesitando o primeiro encontro.

Quando eu me dei por mim, lá estava ela, estatelada à minha frente, me olhando espantada. Eu parei, constrangido e a olhei, franzindo as sobrancelhas com ar patético. Ela ficou séria por mais alguns segundos até, incontrolavelmente, cair na gargalhada. Com cara de bobo, para não parecer ainda mais bobo, ri de mim mesmo. Aquela situação vexatória fora o momento mais empolgante pelo qual passei em todo aquele tempo em Portugal. Ela ria de mim. Eu ria com ela. Nosso primeiro contato. Nossa primeira risada juntos. Contrariando minha expectativa em correr com os braços abertos até ela, eu apenas suspendi a boina com a mão direita, cumprimentando-a, e corri para o sentido contrário, sem olhar para trás.

Cheguei ao meu hotel com incontida felicidade. Sempre achei a palavra "radiante" meio afrescalhada, mas tal palavra era a mais apropriada para representar minha alegria: Eu estava radiante, era isso! Mas o sentimento de euforia logo cedeu lugar a certo arrependimento por não ter ficado e conversado com ela. Por dois dias eu não a vi. Nossos horários não coincidiram. Fiz vários contatos importantes com doceiros e confeiteiros, mas o meu coração estava amargo, temendo não mais vê-la.

No terceiro dia sem vê-la, meu coração novamente açucarou. Estava tomando um cafezinho sentado a uma mesa exterior de uma cafeteria local, quando a vi se aproximar e me perguntar se eu gostaria de sua companhia. O rubor esquentou minhas bochechas. Meio afônico, eu a convidei para se sentar. Então, iniciamos nossa primeira de muitas conversas:

- O que foi aquilo na Praça outro dia? - Falou a jovem segurando o riso e tampando a boca com uma das mãos.

- Eu... é... Queria te dar um "oi".

- Só um "oi"?

- Também queria perguntar o seu nome.

- Só o meu nome?

- É... pode ser... Não sei...

- Não fique inibido. Estou brincando com você. Meu nome é Márcia. E o seu?

- Eu me chamo Fael.

- Você não é daqui, né Fael? Você fala como um brasileiro. Você é brasileiro?

- Sim. Sou do Rio. Mas moro em São Paulo. Sou sócio de um restaurante lá.

- Hum... Que interessante. Tenho tanta vontade de conhecer o Rio...

- E por que não vai?

- Porque nunca tive alguém que eu gostasse o suficiente para me fazer companhia e me apresentar a cidade.

Nesse instante, eu apenas sorri, visivelmente envergonhado. Sem saber como agir, coincidentemente, um vendedor de flores passou entre as mesas e me ofereceu uma. Sei que no Rio, comprar uma rosa para a mulher que está com você equivale, pejorativamente, ao chamado "consolo" para mulheres da vida. Mas como eu estava numa cultura diferente, e os vendedores de flores não são maltrapilhos com muitos do Rio, têm postura e elegância, resolvi arriscar. Escolhi uma, paguei e a coloquei entre as mãos, como se a fizesse um galanteio. Márcia sorriu e aceitou o presente.

- Mas que gentil, esse gajo...

- Não vou negar, estou tímido. Me desculpe se eu a ofendi com essa flor.

- Não, não. Muito pelo contrário. Eu a achei linda. Amo flores.

- Que bom, que bom. Bem... é... se quiser... algum dia... eu... é... te levo para conhecer o Brasil. Quer?

- Uauuu! Claro que eu quero. Pensei que você não me convidaria nunca.

- Você fala muito bem o português brasileiro. Tem certeza que nunca foi ao meu país?

- Sim, Nunca fui. Mas amo as músicas e as novelas brasileiras. Eu assisto a todas. Adoro MPB. Caetano. Conhece?

- Claro! Gosto muito também.

- Como não o conheceria, né? Boba que sou. Você deve ser até vizinho dele, né?

- Não, não. Nunca o vi, para falar a verdade.

- O Brasil é muito grande... Fui boba novamente por achar que o seu país é do tamaninho do meu. Portugal cabe na palma da mão.

- Mas é lindo!

- É, isso é sim.

-...

- Posso fazer uma coisa?

- Pode. O quê?

Antes mesmo de perguntar sobre que coisa ela queria fazer, Márcia se levantou, debruçou-se sobra a mesa, pegou o meu rosto com as duas mãos, suavemente, e me deu o mais açucarado beijo na boca. Naquele instante, eu descobri o que procurava em Portugal. Era o doce mais perfeito de todos. Inigualável. Nenhuma iguaria, sofisticada ou popular, chegava aos pés daquele beijo. Eu sentia a língua de Márcia. Sentia seu sabor. Eu nasci para aquele beijo. Meu paladar jamais sentira tamanha formosura. O verdadeiro manjar dos deuses. Estava no Olimpo. Não o Olimpo grego, nem o português, nem o brasileiro, caso existam, mas o Olimpo do amor.

Ela deveria se chamar Dulce, pelo açúcar e não Márcia. Mas eu gostava de Márcia. Amava aquela Márcia. No dia seguinte, ela me levou para conhecer os pontos turísticos de Lisboa. Foi um passeio incrível. Terminamos a noite no meu hotel. Amanhecemos abraçados, amando-nos, nus, um sobre o outro, do lado do outro, misturados. No outro dia, eu liguei para Jonas, o sócio majoritário do restaurante paulista. Disse para ele que de todos os doces que experimentei em Portugal, saboreei um cuja sensação maravilhosa me impedia de voltar. Disse que estava perdidamente hipnotizado por aquele sabor e que não poderia mais voltar para o restaurante no Brasil.

Ele entendeu. Também sentira algo parecido pela mãe de seus filhos. Ele se encantou por um beijo doce assim como eu me encantei pelo sabor da boca de Márcia. Márcia morava com os pais. Com a ajuda da família dela, não foi difícil conseguir o visto de permanência e a cidadania portuguesa. Nos casamos em uma cerimônia simples, porém repleta de cumplicidade e afeto. Passamos a lua de mel no Rio de Janeiro. Ela ficou encantada. Eu a levei aos principais pontos turísticos, além dos menos badalados e mais românticos. Por coincidência, Caetano Veloso fazia uma turnê pelo Rio naquela ocasião. Márcia ficou deslumbrada. Fomos ao show e seu encantamento se completou. Depois de uma semana e meia de amor melífluo, voltamos a nossa querida terrinha portuguesa.

Em frente a um dos mais belos mosaicos de pedrinhas na calçada da mesma rua em que a conheci, montei um pequeno restaurante especializado em comida brasileira. Márcia me dava ótimos conselhos. Ela virou a minha mulher, a mãe dos meus filhos, uma formidável conselheira gourmet e a responsável por açucarar meu coração.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

*