segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Estranhas Criaturas.










Com o ar sufocado pelas estridentes buzinas, numa paisagem composta por canos de descargas e óleo diesel, o semáforo abriu para os pedestres sem nem ao menos testemunhar os arrepios mornos da estação. Eu atravessei o asfalto raspado pela borracha queimada, já tendo em vista um restaurante no qual possivelmente almoçaria. Por causa do tumulto e das longas filas para se servir no bufê depois do meio-dia, consegui antecipar meus horários já quase estrangulados e me dirigi ao restaurante pouco depois das onze horas. Optei por um estabelecimento amplo e pouco frequentado, em troca dos ambientes espremidos e asfixiantes da maioria. Mas me surpreendi ao chegar lá e encontrá-lo completamente vazio. Talvez por estar muito cedo mesmo ou pela simples razão de que tal lugar não fosse opção de ninguém - além de mim, é claro.

O preço era moderado, condizendo com um cardápio limitado, típico de fast-foods, que só oferecem pão e carne bovina processada. Então, para variar, já que faltava qualidade na refeição, pedi um sanduíche para não se assemelhar a lanches rápidos. Enquanto esperava que meu pedido chegasse, constatei que não mais ficaria sozinho. Duas pessoas adentraram o recinto, cabisbaixas, mas com olhares reveladores de que a fome já batia à porta sem prévio aviso. Eram dois homens, um adolescente e o outro, um idoso. O adolescente era bastante magro, despojado, vestido de camisa preta, bermuda jeans rasgada e tênis esfolado; cabelos compridos - mas não tão longos - e espichados na testa para simular uma franja. Já o idoso estava mais social, porém arrojado, com blusa colorida de gola e botão, enfiada por dentro de uma calça brim verde-musgo, além de usar sapatos polidos. Pela circunstância, arrisquei o palpite que fossem avô e neto.

Até aí nada de mais, a não ser pelo fato que desde quando cruzaram o umbral da entrada, embora estivessem lado a lado, pareciam absolutamente dois estranhos que chegaram juntos, porém sem se conhecerem. Cada um com a cabeça virada para o lado oposto ao outro. E não pareciam que estavam de birra por possível desentendimento. Entraram lépidos e fagueiros, com o cenho descontraído, à vontade e em paz de espírito. Cada um habitava seu universo particular sem que o outro pudesse - ou mesmo quisesse - compartilhar dele. Mergulhados em seus próprios pensamentos e interesses visuais, ainda assim ambos permaneciam lado a lado - simetricamente como as atletas olímpicas de nado sincronizado.

Ligeiramente distraído no instante em que o garçom me servia um caprichado pão com carne de boi processada na bandeja, parecendo uma cápsula espacial - inclusive com bandeirolas ornamentando o sofisticado prato - perdi a cerimônia do pedido de um lanche ou almoço. Será que para pedir ao garçom, falaram? Bem... Se eles falaram, eu não os ouvi. Não descarto a hipótese de que tenham gesticulado ou se comunicado por algum sistema de códigos especialmente desenvolvido para a ocasião.

Ao dar a primeira mordida, interrompi a gula pela visão pitoresca dos supostos avô e neto sentados à mesa que um garçom lhes indicou. Ambos se ajeitaram em seus respectivos assentos e mantiveram a mesma posição estapafúrdia - cada um com a cabeça virada para um canto e assoviando melodias ensimesmadas. Um magnetismo sobrenatural impelia-os à união e ao mesmo tempo, repelia-os para a condição de abjetos. Será que estavam separados pela proximidade? Ou juntos pela separação? Uma sórdida incógnita!

Enquanto o adolescente sustentava uma posição aparvalhada, como se estivesse abduzido num estrato não-gravitacional, o idoso articulava os lábios, cantarolando algum inaudível refrão. Rompendo convenções de cronologia, abriu o zíper de sua pochete de couro sintético - última moda no país dos antiquados - e retirou um fone de ouvido. Conectou o fio em seu aparelho celular, encaixou os fones nos ouvidos, realizando movimentos circulares para garantir um contato seguro - como quem usa grampo com algodão na ponta para se livrar do cerume indesejado no canal auditivo -, deixou os braços caírem sobre as pernas, ajeitou-se na cadeira e se entregou ao seu “egoísta” para ser levado pelo som que só existia dentro de sua cabeça.

O garçom levou à mesa dos dois apenas um prato. Ele se inclinou com a bandeja e serviu o adolescente. O idoso não havia pedido nada e estava bancando o lanche do suposto neto. Com a comida à sua frente, o garoto fixamente a analisa e resiste um pouco para iniciar o ritual da deglutição. O idoso retira os fones de ouvido e os guarda na pochete. Levanta-se - sem soltar um pio sequer - e se dirige ao banheiro que se localiza no extremo oposto de sua mesa. Na ausência do outro, o adolescente começa a comer com voracidade, sem cerimônias.

Inúmeras fantasias, singrando os mares de minha mente inquieta, impuseram deduções escabrosas: O ancião na verdade se tratava de um perverso sequestrador que tomou o jovem como seu refém e agora o torturava, deixando-o faminto? Mas por que o levara para comer então?

O rapaz engolia a comida, quase não a mastigava. Estava enfarado. Bem... O que fica incoerente nesses argumentos - confesso que absurdos - é que afinal de contas, o idoso levou o adolescente ao restaurante, o que já denota a intenção de alimentá-lo. Ou será que o garoto era um daqueles rebeldes sem causa que fazia greve de fome para ganhar o vídeo-game - último modelo caríssimo - que tanto desejava? Então ele aproveitou a saída do avô para devorar o lanche, para depois, com o seu regresso, inventar uma desculpa como a que meninos de rua esfomeados entraram e exigiram - com um canivete riscando sua garganta - que ele entregasse toda a comida.

Quando o idoso voltou ao seu assento, o adolescente parou imediatamente de comer - mesmo restando apenas mais algumas migalhas no prato. Mas o idoso nem se dignou a olhar o prato do rapaz. Ele simplesmente se sentou - ignorando-o por completo - e depositou seu celular sobre a mesa. De repente, dois sons de toques distintos de celular tocaram. O adolescente, impassível, leva a mão ao bolso da bermuda e retira seu celular. Simultaneamente o idoso também pega o seu. Por coincidência, ambos os aparelhos tocaram ao mesmo tempo, sem cessar. O idoso e o adolescente recebiam misteriosas chamadas. Será que eram do além? Talvez eles fossem cadáveres ambulantes que se encontraram num dia frio para ressuscitarem os demais mortos de suas tumbas.

Com o pescoço virado para o lado oposto um do outro, atenderam suas ligações como se estivessem sozinhos à mesa. Depois de um tempo, ainda falando aos celulares, ajeitaram-se em suas cadeiras de modo a se emparelharem de costas. Enquanto cada um discutia os assuntos mais díspares, ignorando verbalmente a presença do outro, encostaram reciprocamente suas costas. De alguma forma eles estavam intimamente conectados. Seus corpos não denegavam essa ligação íntima. Será que realmente se trata do óbvio? São avô e neto? O choque de gerações não permitia um contato verbal, mas seus corpos se reconheciam, respeitavam-se e dialogavam sutilmente.

A conversa ao celular acabou. Ambos recolheram seus aparelhos. Ficaram por mais um tempo em absoluto silêncio, virados para frente, exibindo semblantes alienados. Finalmente o idoso se vira para o adolescente e pergunta se o lanche estava bom. Ele responde algo que eu não pude ouvir. Nesse instante o idoso coloca a mão no ombro do adolescente, recebendo em troca um cafuné. O idoso diz que eles precisam se apressar para os últimos preparativos da festa surpresa da avó. Eles foram ao caixa pagar o lanche e saíram rindo, comentando a respeito de como a avó ficaria alegre ao descobrir a surpresa de aniversário.

Bem... Acho que o enigma foi resolvido. Eram avô e neto num raro momento de silêncio cúmplice. Tramavam dar um belo susto de aniversário na avó. Talvez não pudessem falar com o risco de serem vistos e ouvidos por dedos duros. E se eu fosse um desses, esperando pacientemente saber a verdade para ir correndo estragar a surpresa da tal avó? Afinal, as paredes tem ouvidos!

Já com o meu sanduíche mais do que gelado, encerro estas linhas. Talvez eu peça outro sanduíche... Não, perdi a fome. Farei um embrulho e levarei o pedaço que restou para casa. Assim, após esquentá-lo no microondas, poderei saboreá-lo novamente para reviver toda essa história filtrada pelos dedos da ficção.

CRÔNICA ESCRITA por ALEX AZEVEDO DIAS.

A Linguagem do Coração.









Em seu leito de morte, Benedito suspirava de saudades. Esperava que alguém que considerava especial fosse visitá-lo antes de sua partida. Mesmo moribundo, fazia um enorme sacrifício para ser entendido. Raramente era compreendido, por isso, concentrava-se na imagem de quem desejava que fosse visitá-lo, rezava o terço, pedia fervorosamente, mas nem sinal da pessoa que ele precisava ver. A afasia o impedia de se comunicar verbalmente. Articulava os lábios, mas não emitia nenhum som.

Nos horários de visita, quando seus familiares - já cansados da rotina do hospital - se aproximavam do seu leito, mesmo os que se achavam entendidos de leitura labial, não conseguiam decodificar o que Benedito queria falar afinal de contas. Uma vez ofereceram uma prancheta com papel e caneta para que ele escrevesse, mas sua alfabetização não lhe permitia uma boa caligrafia, o que, além de sua condição enferma, tinha como resultado uma letra ilegível.

Desde que ficara acamado, por causa de uma isquemia cerebral, Benedito se submeteu à incomunicabilidade. Ouvia com perfeição, mas perdera o dom da voz. Os médicos o desenganaram, afirmando que tal quadro era irreversível. Por sua coordenação motora também estar comprometida, muitos se aproximavam dele com resistência em tocá-lo, pois talvez o considerassem abobalhado. Sua fisionomia ficara rígida e sem plástica facial, o que deixava suas feições transfiguradas toda vez que reconhecia alguma pessoa na hora da visita - pelo simples esforço para cumprimentá-la.

Seus amigos e familiares eram cuidadosos e carinhosos, mas eles não agiam com naturalidade em sua presença. Até as inúmeras discussões - coisa que antes era frequente - haviam desaparecido por completo. A sensação de mascaramento e artificialidade pairava no semblante de seus congêneres. Benedito sentia que se fosse tratado por estranhos seria mais familiar do que seus próprios familiares, pois a família foi coberta por uma capa de invisibilidade e estranheza.

Mas Benedito até se conformava com a mudança no ambiente familiar, pois sabia do inconveniente de tal situação quando a realidade afetiva não corresponde com a materialidade dos fatos. O que realmente o inquietava era a ausência da enigmática pessoa que seria imprescindível para apaziguar a aflição de Benedito. Há tempos que ele não o via. Já muito antes de adoecer haviam perdido o contato. Houve uma ocasião em que mudara de endereço e, a partir daí, o paradeiro de ambos ficou sem pistas e referências.

Até as enfermeiras se mobilizaram para a resolução do mistério sobre quem seria a pessoa que Benedito tanto desejava ver. Compadecidas com sua agonia, elas se reuniram com a direção do hospital solicitando o levantamento do histórico de Benedito. Receberam autorização, e para além das meras informações técnicas do seu prontuário, marcaram entrevistas com as pessoas mais íntimas da convivência do paciente que virou mártir das causas perdidas.

Descobriram que ele era solteirão e que não tinha filhos. Pouco era flagrado em algum relacionamento amoroso. Como estava aposentado, quase não saía de casa e só algumas vezes ao mês se encontrava com velhos amigos para jogar xadrez num campo perto de sua residência. Esses amigos não souberam informar se ele estava envolvido sentimentalmente com alguma mulher, mas puderam garantir que não tinha namorada e que nunca se casara.

Mesmo suspeitando que pudesse ser uma mulher pela qual havia se apaixonado - mantendo o relacionamento escondido dos amigos -, logo essa hipótese foi descartada, pois não seria concebível que ela soubesse do ocorrido e não se prontificasse em visitar o amado Benedito. A não ser que fosse comprometida e evitasse exposição, ou que talvez estivesse viajando para algum lugar longínquo, fora do alcance das notícias, ou ainda que tivessem rompido por alguma fatalidade grave e desconhecida.

Mas a questão é que mesmo pela boa vontade quase misericordiosa da equipe de enfermagem para amenizar o sofrimento de Benedito, ele continuava sentindo falta da presença de quem precisava muito ver. Conversando com a família, as enfermeiras souberam que ele ajudava financeiramente um irmão que não trabalhava por ser portador de necessidades especiais. Diziam que Benedito tinha tanto cuidado e afetuosidade a esse irmão como se fosse um autêntico filho. Num primeiro instante, logo que souberam da existência desse irmão, as enfermeiras, muito esperançosas, acreditaram que o caso se encaminhava para a solução final.

Porém, não contaram com uma informação crucial: Esse irmão, cadeirante, era levado semanalmente para visitar Benedito. Ele se emocionava quando esse irmão ficava ao seu lado no hospital, demonstrando contentamento e alegria. Ainda assim a agonia e amargura pela falta desse alguém que até então não fora visitá-lo, prolongava-se de modo intacto - com a mesma intensidade de antes, sem em nada reduzir-se no semblante aflito do paciente.

A equipe do hospital já estava prestes a se desincumbir da missão salvadora, quando um homem elegante, de estatura mediana, com blandícia no olhar, usando terno surrado, cartola e bengala, aproximou-se do leito de Benedito. Ao vê-lo, sua tensão de desanuviou e eles ficaram imóveis, apenas se entreolhando com ternura e meiguice. Parecia que eles se compreendiam plenamente sem precisarem da tão cara linguagem verbal.

Perplexas e surpresas com a espontânea e inesperada aparição, as enfermeiras apenas seguiram-nos com o olhar, numa silenciosa cumplicidade. Inerente à intimidade de qualquer ser humano, elas puderam identificar que em tal inusitado encontro se condensava um vínculo transcendente, para além de qualquer possibilidade de explicação racional.

O homem retirou o paletó e a cartola, depositando-os num cabideiro ao lado do aparelho que monitorava os batimentos cardíacos do paciente. Inclinou-se sobre o leito e apertou o braço direito de Benedito, segurando-o com as duas mãos. Logo depois se abaixou e pegou uma maleta de couro. Apoiou-a na mesinha abaixo do monitor - com umas flores em um vasinho de cerâmica improvisado, certamente colocado pela família para colorir a morbidez hospitalar - abriu a maleta e retirou um objeto volumoso. Estendeu os braços e o entregou a Benedito.

Com os olhos iluminados por uma cândida leveza infantil, o paciente suspirou fundo e abraçou o objeto lúdico de outrora. Estava envolto em atmosfera pacífica, na típica paz de quem se deixou absorver pela benéfica regressão aos tempos de sincera meninice. As enfermeiras descongelaram a paralisia de suas feições, devido à presença sideral do forasteiro, e logo conseguiram se aproximar daquele obscuro homem, perguntando o seu nome. Ele não respondeu, ignorou-as, nem se moveu pelo som de suas palavras - parecia que não as ouvia. Então repetiram a mesma pergunta diversas vezes.

Constrangidas pelo homem que nem sequer se virava para a direção delas ao ser chamado - ficando como se não existissem -, recuaram e não mais perguntaram nada. Pensaram melhor e perceberam que deveriam respeitar o momento singular que não lhes pertencia, pois não cabia a mais ninguém além dos exclusivos sentimentos de seu paciente Benedito.

Após os prolongados instantes nos quais ele permaneceu abraçado ao objeto, as curiosas enfermeiras que haviam se distanciado do evento mas ainda assim não deixavam de acompanhar o desenrolar da situação, deram-se conta que o objeto se tratava apenas de um bichinho de pelúcia. Elas ficaram intrigadas com o que acabaram de descobrir. Interrogavam-se mentalmente sobre a utilidade de um bichinho de pelúcia na vida daquele paciente idoso, que já se despedia do mundo. Enquanto não obtinham respostas, Benedito se demorava com o brinquedo seguro pelo braço esquerdo dobrado contra o peito, e mantendo a mão direita firmemente apertada no braço do homem que ainda se encontrava de pé ao lado do seu leito, contemplando-o placidamente.

Depois de longa espera para que aquela história se encaixasse na apelativa razão das enfermeiras, elas avistaram uma senhora muito polida que acabara de entrar no CTI. Ela cumprimenta o misterioso homem, tocando-o no ombro, faz um rápido afago em Benedito, vai até as enfermeiras e começa a contar o que estava se passando.

- Vocês querem saber o que está acontecendo... - Afirma ponderadamente a senhora.

- Pois bem... Soube que vocês muito se empenharam para ajudar esse paciente que nada é de suas famílias. Isso é louvável na profissão de vocês e merecem pelo menos uma satisfação minha sobre o que estão presenciando.

Diante da assombrada quietude das funcionárias do hospital, a senhora se apresentou: - Eu me chamo Leonor e sou casada com esse homem que fez tanta falta ao Benedito.

Continuou: - Meu marido é psicanalista. Quando ele ficou surdo por causa de uma doença hereditária, recusou-se terminantemente a exercer a função clínica. Dizia que a escuta é a única ferramenta de trabalho do psicanalista, e sem ela, teria que reconhecer a sua incapacidade para sustentar o ofício. Já mergulhado em profunda depressão, passava horas em seu consultório vazio - sem atender ninguém - apenas debruçado sobre uma mesinha de anotações, lendo alguns livros, ou apenas olhando o relógio mexer os ponteiros. Foi numa dessas vezes em que esteve sozinho em seu consultório, já tendo inclusive dispensado sua secretária, que Benedito bateu à porta. Ele chegou desavisado, achando que o psicanalista ainda estivesse em atividade profissional. Mas por coincidência, encontrou-o em sua sala.

Benedito tocou a campainha e bateu à porta, mas ninguém foi atendê-lo. Seus serviços competentes foram indicados por seu psiquiatra que considerava anormal a saudade que Benedito sentia de sua infância. Tentou ministrar vários remédios, esgotando seu receituário e não obtendo nenhum sucesso. Sentindo-se derrotado, o psiquiatra resolveu encaminhar Benedito a um psicanalista de sua confiança.

Por já ter ligado diversas vezes, deixando mensagens em sua caixa postal pedindo retorno da ligação, Benedito pesquisou o endereço do psicanalista e foi à sua sala sem hora marcada. Chegando lá parecia que não tinha ninguém, pois não atendiam à porta. Quando já estava indo embora, antes teve um impulso de verificar a maçaneta. Para sua surpresa, a porta estava destrancada. Ele entrou timidamente e deu de cara com o analista sentado em frente a uma escrivaninha sobre a qual apoiava os cotovelos. Chamou-o pelo nome, mas não obteve nenhuma resposta. Chegou perto dele e o tocou. O psicanalista, disfarçando o susto, levantou a cabeça e se surpreendeu com a presença de Benedito ao seu lado.

Incomodado com aquele encontro, o psicanalista tentou falar. Mas por estar afetado com um possível paciente que o buscava naquele momento tão delicado, não teve palavras para expressar sua condição, e apenas emitiu alguns sons desarticulados. Sem entender, Benedito colocou sua mão no ombro do analista. Ele então apontou o dedo para o ouvido e escreveu: “Estou completamente surdo”.

Logo que se viram, aqueles dois homens se submeterem inexplicavelmente a um vínculo afetuoso. Benedito escreveu para o analista que mesmo sabendo de sua condição que impossibilitava uma conversa verbal, queria se tratar com ele. A manifestação desse desejo comoveu o analista de tal maneira que ele aceitou o desafio. Durante o tempo da análise, Benedito não sentiu necessidade de se comunicar com palavras - e não era só pela falta de audição de seu analista, mas uma correspondência real e concreta se estabeleceu entre ambos sem que o verbo se impusesse como a única verdade do entendimento humano.

Como o motivo da procura por análise era a grande saudade da infância, em cada sessão, Benedito levava alguns brinquedos da época de criança que guardava em seu quarto. Cada vez contava uma história que estava intimamente associada àquele brinquedo. Os objetos funcionavam como suportes de suas palavras. Ele sabia que o analista não conseguiu ouvir nenhuma frase que dizia, mas também tinha certeza que mesmo totalmente surdo, o analista o escutava muito bem. Benedito se sentia acolhido e compreendido por seu analista.

Depois de certo tempo frequentando regularmente o analista, conseguiu elaborar a saudade da infância até se dar conta que não mais sentia nenhuma falta dos tempos de criança. Pôde voltar ao trabalho que havia interrompido pelas lembranças saudosistas e retomou a normalidade de sua vida. Concordou em se desfazer de todos os seus brinquedos, doando-os a uma instituição de caridade e a um orfanato. Só não se desfez de um brinquedo apenas.

A única demanda que Benedito endereçou ao seu generoso analista, como gesto derradeiro que simbolizaria o final da análise, foi que ele guardasse em seu consultório, um singelo ursinho de pelúcia - o primeiro brinquedo que ganhara de presente de seu pai logo depois do seu nascimento. O analista aceitou prontamente. Benedito renasceu para a vida. Os dois homens se cumprimentaram, ambos com lágrimas nos olhos e se despediram. A partir daí, Benedito se mudou para outra cidade, bem distante de sua antiga morada, e nunca mais soube notícias do seu abnegado analista. Benedito ficou curado e, sem saber, curou a depressão do seu analista por confiar nele apesar de sua deficiência.


(...)


A esposa do psicanalista - após relatar sua história - finalmente se calou e um afetuoso silêncio se apoderou do ambiente hospitalar. Os dois permaneceram de mãos dadas, olhando-se ternamente, com um leve sorriso nos lábios. Debaixo do braço esquerdo, contra o peito, Benedito continuava com o bichinho de pelúcia. Ele se ajeitou no leito e suspendeu o corpo. O velho analista dobrou os joelhos e se escorou na grade do leito de Benedito, de modo que os rostos dos dois ficassem nivelados na mesma altura. Nesse instante, a esposa do analista e toda a equipe do hospital testemunharam um “obrigado” dito simultaneamente pelos dois homens. Eles não disseram nenhuma palavra, mas todos puderam jurar que escutaram o agradecimento mútuo falado pela silenciosa linguagem do coração.




CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

Beatitude.









O manto negro e felpudo dos deuses já cobria o céu. O véu da noite - esse exuberante disfarce - diluía a sensualidade na inocência. De tecido puído, sem um digno alfaiate para remendá-lo, os inúmeros furinhos - faróis oculares - iludem desavisados astrônomos. A luxúria se esconde na moral das mais nobres intenções. Logo, a vendada nudez do colorido - enegrecida pelas fendas secretas em que as estrelas espiam - cederá lugar ao espreguiçar dos primeiros raios de ressaca de um sol madrugado.

De luz morna pelos cílios enluarados, a calada manhã alçou voo nas espessas sobrancelhas da aurora. Com passos brejeiros, o dia não tem pressa de chegar. Pisca o olho de mansinho e desliza com graciosas sapatilhas de bailarina. Ao se ajeitar na silhueta sensual de perfumadas almofadas de cetim, a dama da manhã solta seu rechonchudo novelo de lã que, flanando, trança algodões de chuva.

Debruçada no tórax do amante, fagulhas introspectivas bordam as coxas úmidas. Secreções turvas em desatados ninhos gotejam dos largos poros e estreitas ranhuras. Superfícies crespas e rugosas, gérmen desnutrido por trás de convulsivas nucas. O fluxo corporal se afina pela correnteza do rio em chamas.

Já quase adormecido sobre os fartos seios - suavemente arredondados e esguios -, com os toques sedentos e famintos aliviando a secura dos lábios mal-amados, na concavidade sensual dos seios sedosos e ferinos, Hélio submerge na mata nativa e virginal. Ele se enrosca em seu pescoço como serpente contorcendo sua vítima, mas a fatalidade só se afoga plenamente em pequenas mortes anunciadas pelo espasmo anônimo. Colchas descosturadas em retalhos esquecidos. Desejos amassados por siderados grãos de areia. Ela se agasalha na densa pelugem de laminado brilho negro. Ele se revira, dobra-se pelo avesso e se sufoca no vale caudaloso das nádegas de Suzane. Lombadas macias lanhadas pela aspereza da barba por fazer. Ao toque horizontal da palma da mão, deslizando pela depressão suave das calotas aveludadas - reentrância que resguarda o veio do prazer -, a pele se granula pela violenta sensibilidade.

Enrijecida pelo gozo corrosivo, gemidos tônicos reverberam na acústica das narinas dilatadas por vaporosos suores. Grutas flamejantes. Grito surdo ecoando no calibre tênue das vísceras lambuzadas no pântano movediço. Espaços sucessivos como o tempo de engrenagem interrompida. Tempos simultâneos das batidas cardíacas. Amores subterrâneos, sem sacramento - pano de chão. Trapos empilhados, pratos quebrados, devassos se dão.

Hélio ouvia os sussurros da amada pela língua mordiscada por peçonhentas cascavéis. O som do chocalho, advertindo sobre os perigos lodaçais da embriaguez, vibrava nas carnes ardidas. Suzane tremula como bandeira no mastro de corsários destemidos e carniceiros. As fraturas expostas do orgasmo reordenam o universo num doce desequilíbrio e gotejam lágrimas de prazer nas inchadas brochuras do criado-mudo.

Seus corpos pasteurizados doam ao leito dos rios viscosa seiva na qual dourados e namorados, enlaçados pelas barbatanas - esses férteis nadadores - se lambuzam até chafurdarem nas fugidias salivas das bocas entreabertas. Nos semblantes contraídos, escamas e couraças borbulhando paixão viram presas fáceis no rasgão de flechas famintas.

Frágeis jardineiras de terra fofa regadas por suores e secretos líquidos do sexo, pulsando no ritmo de desordeiros redemoinhos. Nó cego de braços e pernas. Exaustos, Suzane e Hélio se entregam às profundas raízes do colchão molhado. Ofegantes, entreolham-se. As palavras lhe faltam. A goma de sílabas desbotadas escorre pelo sanguíneo fluxo de lantejoulas e paetês cutâneos. Humores fátuos congelados na linguagem orgânica. Flagelos exasperados de cicatrizes que bordejam o infinito.

Ainda espremida pelo último suspiro dos espasmos, Suzane, virando-se para o lado, contorce-se na posição fetal. Já Hélio, de abdômen estufado como se digerisse o vasto jantar, espalha-se na cama de barriga para cima. Esticou o braço, sem olhar, para o criado-mudo, em busca de sua carteira de cigarros para sorver os resíduos decadentes do orgasmo, mas não a encontrou. Por causa dos músculos que se demoravam numa tensa transpiração, derrubou as brochuras que assistiam em silêncio a dramaturgia corporal, deixando as marcas de suor - não sabia se as de Suzane ou as suas - nas capas amarrotadas.

Suzane se retirou do êxtase quando uma leve coceira subiu de fininho do púbis, contornando a suave curva da cintura e se depositando em suas axilas encharcadas de libido. Ela levou a mão à virilha e pinçou com as pontas dos dedos alguns pelos molhados que do corpo de seu amante, agora lhe pertenciam. Pegou uma toalha que estava embolada embaixo de sua cabeça, servindo de travesseiro, enxugou o corpo de Hélio, priorizando o órgão já detumescido que antes fora completamente seu. Mas num ímpeto irresistível, enquanto sentia suas próprias pulsações refletidas no corpo do amado, Suzane pulou sobre Hélio, esfregando seus glúteos túrgidos em suas descontraídas coxas. Comprimindo-se em seu tórax e acariciando seus ombros úmidos pelo suor da moça, Suzane abençoou o tronco de Hélio com a água santa de seu sexo e contemplou os lábios masculinos com o biquinho em riste dos incandescentes seios de fêmea.

Após o segundo tempo do frenesi, os dois subitamente apagaram - desmaiaram em quatro braços. Suzane enroscada no corpo de Hélio como saudosa serpentina na quarta-feira de cinzas. Ele, no mesmo lugar em que estava desde o êxtase final do primeiro tempo - em decúbito dorsal -, mesmo com a mulher aninhada em seu tronco, ressonava pacificamente como os justos dormem, sem culpas e pecados.

O entardecer se avoluma nas cores cítricas e ensaboadas pela pureza ardente da alma. Cães atordoados farejam o cio fleumático da vulgaridade milagrosa e beata. As gotas resistentes do desejo que ainda brotam na epiderme inflamada da volúpia, são drenadas pela ebulição da noite ou rompem o silêncio rasteiro em busca de ralo ou bueiro para se integrarem aos restos de outros casais. Suzane e Hélio atravessam a noite.

Ainda refestelado e espaçoso, sonhando com delícias edênicas, Hélio reluta em sair da cama. Suzane, com leveza, ergue o seu braço que já estava formigando sobre o peito de Hélio. Estala a língua no céu da boca - a saliva endurecida a impedia de abri-la. Com os lábios ressecados, a sensação de sede a impele a abandonar o corpo do amado para se dirigir à cozinha e pegar um copo com água.

Quando os dois já haviam se espreguiçado, alongado os músculos, finalmente se levantam. Vão tomar um revigorante banho. Embebem a esponja com sabonete líquido e massageiam um ao outro - não com a explosão erótica que os dominou no dia anterior, mas com uma fraternal cumplicidade. Ambos nus, agora com a água suave correndo pelo relevo corporal, em nada se assemelham ao conjunto de trilhas e dobras por onde as trombas d’água se arrebentavam no peito desejante das núpcias.

Após o banho, secaram-se e se vestiram. Voltaram ao quarto para arrumá-lo, deixando apenas os vestígios invisíveis da memória. Eles sentaram enviesados na cama, um de frente para o outro - com o joelho esquerdo de Hélio roçando no direito de Suzane - espicharam os braços e deram as mãos, permanecendo ainda por alguns instantes se entreolhando. Tentavam recuperar suas identidades sociais para mais um dia útil que se contrastava com a inutilidade do puro fluxo e fruição.

Cada um se via na superfície espelhada dos olhos do outro. Nesse delicado gesto, tentaram se reconhecer no reflexo ocular. Hélio se via nos olhos de Suzane, mas de alguma forma sabia que não se tratava de sua imagem em miniatura. Ele habitava o interior de Suzane. Seus olhos eram as janelas pelas quais espia a si ao contemplar Suzane. Ele se esforça para apreender o olhar de Suzane, mas quanto mais se inclina, já quase no limite para naufragar naquele mar sem fundo e sem fim, mais é olhado por sua própria imagem que o engolia nos olhos de Suzane.

Suzane não resistiu ao ver aqueles olhos siderados em desejo e se aproximou para beijá-los. Em contato com os lábios da amada, instintivamente as pálpebras se fecharam, e ela saboreou uma gota órfã de suor que se escondia nos cílios de Hélio. Com o sol já no centro de suas cabeças, acusando meio-dia, os dois pulsaram eternamente num tempo que rompia a convenção do mundo.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Escritor.










Um final que não agradaria nem os leitores menos letrados. Nunca foi nenhum cânone, mas já era merecidamente badalado pela imprensa local. Aquele final medíocre era indigno de seu talento literário.
Seu festejado protagonista - homem de iniciativa e poucas palavras - morrera estupidamente antes do final da história. Quando estava a caminho para mais uma empreitada de sucesso - vendedor brilhante de seguros que a todos convencia - passando por baixo de um dos prédios mais altos da cidade, fora atingido por um objeto até então não identificado. A robusta lombada de um livro lançado do último andar do edifício acertou em cheio a sua cabeça. Foi morte súbita. Destino cruel ou irônico para a personagem de um escritor quase renomado. Tiro e queda. Imediatamente, o próspero vendedor, antes mesmo de fazer qualquer careta de dor, perdera os sentidos e tombou como um touro abatido.
Pensou duas vezes para concluir o trágico desfecho. Todas as alternativas de preservação do seu protagonista redundaram em absoluto fracasso. Por que terminar assim? - Ele se perguntava com frequência... Vencido pelo cansaço, já exausto por não inventar um destino mais atraente para seu personagem, aceitou a derrota, pediu trégua à falta de criatividade, e deixou que o livro despencasse, em queda livre, batendo diretamente na cachola do seu astuto, porém indefeso, vendedor de seguros.
O autor desconsolado ensaiou a derradeira tentativa para alterar o esdrúxulo final reservado ao seu personagem. Ao iniciar a reescrita, talvez por imprimir muita força nos dedos - já demasiadamente frustrado -, quebrou ao meio a frágil madeirinha do lápis. Foi aí que reconheceu que o universo literário conspirava contra seu gênio autoral. Aquilo não poderia ser obra da mente humana - ponderou o já assustado escritor. Não tão resignado, aceitou o destino que alguma força maior reservara para ele. Fechou o livro, colocou-o sobre a escrivaninha, levantou-se e caminhou calmamente para o sofá. Quis tirar um cochilo breve.
Ao se dirigir para o sofá, subitamente teve a sensação que seu cérebro fervia. Estava quase derretendo. Uma fumaça esbranquiçada saia pelos orifícios de sua cabeça, principalmente ouvidos, olhos e narinas. Deteve-se. Num átimo, atirou-se contra o livro. Engalfinhou-se no chão, amassando, com fúria, a capa e o miolo. Mordeu-o com tanta vontade, que as marcas dos dentes estampou na orelha da contracapa, ranhuras como um código de barra. Não estava nem um pouco conformado com sua incapacidade de mudar o destino de seu querido vendedor de seguros - criado com a dedicação digna de escritores consagrados.
Combalido e já quase vencido pelo embate corporal, cravou as unhas no livrinho inacabado e arremessou-o pela janela meio aberta. Um senhor distinto, vestindo um elegante terno, numa infeliz coincidência, distraidamente, atravessou a marquise do prédio do qual o livro despencava acelerado, de uma altura nada convencional, e estacionou rente à coluna em que residia o irascível e fatigado autor. Como se houvesse uma mira invisível, o objeto de celulose traçou uma linha certeira até atingir a moleira do incauto transeunte. O impacto fulminante nem estremeceu sua vítima. Os pedestres ao redor nada perceberam. Apenas após o corpo desfalecido do homem tombar no espaço público, que uma porção de curiosos rodeou-o, só cedendo lugar quando os paramédicos chegaram para logo constatarem que nada poderiam fazer.

(...)

Mediram sua pulsação. O bafo deixado no espelhinho colocado diante do seu nariz revelara o quase óbvio. A vida não havia lhe abandonado. Mesmo com a pressão arterial um pouco enfraquecida, pôde segurar uma xícara de café meio requentado. Sentou-se no sofá. Ainda estava um pouco tonto. Achou que dormira demais. Logo que se despediu dos seus companheiros, com apertos de mão e beijinhos no rosto das senhoras, levantou-se rapidamente - porém se escorando no braço de uma velha cadeira -, pois a tontura ameaçou derrubá-lo, e colocou em prática uma idéia fixa que não deixara de martelar sua cabeça quando acordara.
Pegou sua esferográfica e rabiscou as primeiras linhas. Não mais adiaria a execução dos seus planos. Seria agora ou nunca. Estava certo disso. Apontou sua caneta para o papel e num movimento retilíneo, enfiou a ponta de sua ferramenta tinteira nas páginas em branco do seu caderno de anotações e manuscritos. Vagarosamente, a tinta escura se espalhou pelas folhas, cobrindo-as de uma mancha espessa, sem uniformidade. Inclinou a cabeça para trás, num gesto típico de regozijo, e se entregou a uma gargalhada estridente, repetindo a mesma frase incessantemente: “Sou um assassino!”. “Sou um assassino!”.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Os Fugitivos.

















Correu desembestado em direção ao terreno baldio. Com o cenho franzido e os lábios retorcidos, esbaforido, suando frio, pulou a cerca de arame farpado. Na tentativa de se desvencilhar das fisgas de ferro enferrujado, esfarrapou sua roupa e abriu algumas feridas superficiais nos braços e nas pernas. Por causa da agitação da fuga – adrenalina que tudo apaga -, não sentiu a mínima dor dos arranhões. Eduardo se esgueirou, quase engatinhando, e conseguiu chegar aos fundos do terreno, embrenhando-se num capinzal. Espreitando a presença de seu adversário, continuou agachado, escondendo-se nas inúmeras folhas espessas de capim. Mesmo tremendo de medo, fez o possível para manter-se imóvel, camuflado, como um animal acuado.

Empunhando a espingarda calibre 12, com a coronha apoiada no ombro direito, Galeano estava ao encalço de Eduardo, sem derramar nenhuma gota de suor. Andando macio, nas pontas dos pés para que o outro não percebesse sua posição, escorou-se no tronco grosso de uma amendoeira, para descansar o braço de apoio da arma, e deixou o cano da espingarda apontado para a cerca de arame farpado. Emaranhado no matagal cerrado, Eduardo, mesmo tiritando de pavor, não soltou nenhum pio sequer, entregue a um silêncio sepulcral.

Observando de trás da amendoeira, Galeano pressentiu que Eduardo estava metido naquele terreno baldio, afinal, sempre soube que ele tinha certa quedinha por vadiagens, e ambientes selvagens. Mirou bem nos arbustos dos fundos do terreno, segurou a espingarda com firmeza, colocou o dedo no gatilho e impostou a voz o suficiente para ser ouvido daquela distância: “- Eduardo, saia já dai! Não sou tolo. Sei que você está escondido no meio desse mato!” Não obtendo resposta nem ruídos vindos do capinzal, Galeano saiu de trás do tronco e se pôs a caminhar até os limites da cerca de arame farpado. Posicionou-se adequadamente – como um estrategista militar -, colocando a perna direita sobre uma rocha irregular encravada na terra, encostou a cabeça no ombro direito para enquadrar a mira mais ou menos no centro da touceira de capim, na qual se supunha estar o fugitivo.

- Saia daí já, seu paspalho! Só pra isso você serve? Pra fazer merda e depois correr de medo? Enfrente-me agora, seu mijão!

- ...

- Se você não botar essa cara de bunda pra fora do mato, eu te arrebento de bala. Você não me engana... Sei que tá escondidinho aí feito marica, seu frouxo!

- ...

- Vou contar até três e meter o dedo! Vou tirar você daí na marra, a base de balaço.

Uma vozinha frágil e meio abafada se fez ouvir detrás da densa cortina de folhagens: - Não, não. Atire não, Seu Galeano. O senhor sabe que eu tô aqui, mas daqui eu não saio, não. Pra quê? Procê me matar? Não senhor.

- Aham... Vejam, só... Acertei, né? Os ratos sempre se escondem em buracos! Ponha essa cara deslavada daí pra fora! Se apresente! Morra dignamente como um homem! Prove-me o contrário. Me prove que eu tô errado, sua ratazana!

Tomando ares de uma pretensa e duvidosa coragem, porém contraindo-se em espasmos, Eduardo respondeu, vociferando: “- Ah, é?! Quero ver! Então deixe de ser covarde e atire logo de uma vez!” Galeano, espumando pela boca, enfurecido, apertando a arma entre os dedos com destemor, trincou os dentes, raivoso, crispou as mãos e precipitou-se no gatilho da espingarda. Mas, segundos antes do gatilho ter sido apertado até o fim, ouviu-se o barulho ensurdecedor de uma sirene. Como num coito interrompido, Galeano relaxou o dedo, sem ter disparado, e voltou sua atenção para uma viatura policial que lentamente se aproximou do local. Sobressaltado, Galeano largou a espingarda – que caiu entre a rocha e o tronco da amendoeira – e correu de encontro ao arame farpado. Impulsionou seu corpo para saltar e, meu desengonçado, perdendo seu sapato que ficara enganchado numa das fisgas, conseguiu aterrissar em solo firme, do outro lado da cerca.

Num pulo digno de modalidade olímpica, Galeano – agora desarmado - mergulhou na touceira de capim em que Eduardo se escondia. Eles se estranharam, acotovelaram-se, empurraram-se, sem que dissessem nenhuma palavra, até que Eduardo cortou o silêncio: - “Mas que diabos você tá fazendo aqui?” Ambos se entreolharam perplexos. Como Galeano não respondeu, Eduardo prosseguiu o interrogatório: - “Tá devendo pras autoridades, é?!”, E riu gostosamente, gozando daquela situação inusitada.

Ao notarem uma movimentação suspeita, os dois policiais que passavam por ali, pararam a viatura e desceram do veículo. Um deles foi até o cercado, abaixou-se e, fazendo força para retirar o objeto imprensado entre a rocha e o tronco de árvore, recolheu a espingarda que estava abandonada no local. O que apanhou a arma do chão passou-a para o companheiro que, envolvendo-a numa sacola plástica, prontamente a guardou no porta-malas do carro como evidência que serviria para uma futura análise pericial.

- Ei, tem alguém aí? – Disse o policial que vinha dirigindo a viatura.

- Fique parado, fique parado! – Sussurrou Eduardo para Galeano.

Os policiais comentaram um com o outro a respeito da procedência daquela arma. Eles não viram Galeano se apressando em desaparecer no matagal. Era incomum a criminalidade pelas redondezas, por isso, a dúvida das autoridades em se armarem prontamente, dispostos em par, para a defesa ou futura ofensiva. Um deles levantou o quepe, coçou a cabeleira rala, esfregou o nariz, olhou longamente para o outro, mas não sacou o revólver do coldre.

Fez sinal para seu companheiro na intenção de que ultrapassassem a cerca de arame farpado. Entrelaçou os dedos para que o colega apoiasse o coturno e impulsionasse o corpo para ganhar o lado de dentro do terreno. Mas antes que aquele imponente coturno ralasse em suas mãos, desfez o entrelaçamento, colocou a mão no ombro do parceiro, e disse alguma coisa inaudível - talvez o encorajando a desistir para que não corressem o risco de rasgar seus uniformes novíssimos e depois terem as emendas descontadas de seus já reduzidos salários.

Galeano e Eduardo estavam aflitos, quase gelados de medo. A paralisia que se apoderou dos seus corpos acabou sendo um ponto positivo, pois se mantiveram, involuntariamente, imóveis. Os policiais permaneceram ainda por um tempo conversando. Um, com o braço espichado, apoiando a palma da mão na amendoeira, e o outro, sentado na rocha, estavam se deleitando num animado diálogo sobre mulheres e bebidas – e por que não sobre alguns assuntos ilícitos, soltando às vezes estridentes gargalhadas. Eles se demoraram por quase uma hora - tempo no qual, ambos os “meliantes”, continuaram numa absoluta quietude -, entregues à divertida prosa. Ao se darem conta da hora avançada, e relembrando-se das obrigações públicas e oficiais, os dois policiais desfizeram os sorrisinhos que ostentavam nos rostos, corrigiram suas posturas, endireitaram as fardas, entraram na viatura e, mesmo sem que a sirene fosse ligada, rapidamente seguiram o percurso habitual, voltando-se a se dedicarem ao serviço da lei e da ordem.

Mesmo após a viatura estar a léguas de distância dali, Galeano e Eduardo custaram muito para recobrar os sentidos. Depois que Eduardo deu uma espiadela por entre as folhas, resolveu gradativamente se afastar. Galeano, seguindo os passos do seu adversário - transformado em companheiro pela fatalidade das circunstâncias -, foi atrás. Deram a volta no terreno, onde encontraram um portãozinho na lateral, e se viram livres daquele aperto. Olharam-se longamente, ambos lívidos e com o semblante contraído. Mas não se encararam por muito tempo. Logo, esboçaram um sorriso largo, deram-se as mãos, num rápido cumprimento – menos de solidariedade do que de um companheirismo de longas datas -, e foram em direção ao botequim mais próximo.

- Dudu, vamos afogar as mágoas? – Disse um alegre Galeano.

- Claro, meu camarada! Agora mesmo! Vamos beber até não aguentarmos mais.

E foram os dois amigos, abraçados, sorridentes, dando tapinhas nas costas, rumo ao bar para acenderem uns cigarrinhos, bebericarem umas cervejinhas e - por que não? – se entregarem às mulheres e às práticas ilícitas. Afinal, ao contrário dos policiais que perdiam o tempo falando, eles, que nada tinham de autoridade, podiam livremente ganhar tempo fazendo, só no bem bom!



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Difícil é Aprender.

















Sentados nas cadeiras e bancos escolares, tendo diante de cada um de nós, um quadro negro e um professor, como aprendemos? Será que precisamos apenas destes elementos primários - o aprendente, o ensinante e as palavras soltas ao vento para a absorção passiva dos alunos? E o enlace subjetivo - o desejo, a paixão - que sustenta as relações humanas? Para início de conversa, o termo utilizado para designar aquele que supostamente aprende, nega-o em sua essência. “Aluno” deriva de aluado, alienado, ou seja, fixado num padrão repetitivo que inviabiliza o modo singular que cada sujeito lida com o aprendizado. O que está para além de um vínculo reducionista entre receptor (aluno) e emissor (professor)?

Não é à toa que Platão afirmava ser todo conhecimento uma rememoração. Na dualidade de sua metafísica, oposição entre o sensível (mundo das aparências) e o inteligível (mundo das essências), o processo de aprendizagem é a recordação do que já existia enquanto ideia transcendente. Talvez possamos aproximar esse ponto do pensamento platônico, en passant, com a lógica freudiana do repetir para recordar, para enfim elaborar. No contexto analítico, é apenas sob transferência que o inconsciente - discurso do Outro, estruturado como uma linguagem - irrompe e pode ser trabalhado. Lacan dizia que a condição sine qua non do estabelecimento transferencial é o endereçamento do sujeito suposto saber para o lugar do analista. É sempre de um retorno (do recalcado) que se trata em análise. E trazendo novamente Platão, conhecer é reconhecer, é rememorar, assim como a lógica do inconsciente na dinâmica da transferência.

Quando Nietzsche articula o conhecimento ao que há de mais alegre (potente) na ordem dos afetos, talvez antecipe a ideia freudiana da libido, ou pulsão, como força motriz tanto disruptiva quanto associativa, capaz de desagregar e de agregar os significantes do inconsciente. Aprender é uma afetação no sentido de ser algo que concerne intimamente ao sujeito. E sendo assim, também como um representante afetivo, jamais é sem angústia. Pois nesse processo de aprendizagem, indissociável da rememoração, o que retorna é o recalcado em sua embalagem sintomática.

A análise é um trabalho de luto propriamente dito. Primeiro, porque o sujeito reconhece que o saber depositado no analista não passa de um saber sobre si - de uma falta de saber sobre si. Segundo, que as certezas imaginárias caem, na travessia do fantasma, viabilizando uma abertura, mobilizando os afetos sob transferência, para a desidealização de um conhecimento mágico, onipotente. O que permite a saída de uma reprodução estéril do sintoma dos pais, para a liberdade da produção de um senso estético singular. Nesse sentido, é inevitável considerar uma aproximação entre o modelo escolar do aluno recebendo passivamente um saber do professor com a alienação ao sintoma parental. E, assim, construir a passagem, não sem luto, para uma apropriação do sintoma singular do sujeito, subjetivando afetivamente a vida, sua realidade psíquica, como produção desejante do saber (não-saber) inconsciente.

Será que um sujeito submetido à categoria de aluno, sustenta um desejo, é sujeito de seu desejo? Talvez esteja numa posição objetal em que o “saber” do Outro se impõe, sem ser subjetivado, sem ser ressignificado na singularidade do seu discurso. Para aprender é indispensável que haja uma afetação, que o conteúdo exposto pelo professor cause o sujeito, diga algo a seu respeito. E isso não é tarefa fácil. Sempre que um saber inconsciente é instigado a se presentificar, por algum estímulo externo, a angústia comparece, sinalizando a resistência contra o retorno do recalcado.

É possível aprender sem ser por transferência? Freud era incisivo quando dizia que a transferência é uma repetição dos afetos recalcados, na ausência de recordação das representações ligadas a eles. A transferência é uma reedição dos clichês e estereótipos libidinais, uma forma de repetir esses afetos, uma forma de rememorá-los, atuá-los, sem que para isso se recorde simbolicamente dos eventos traumáticos que constituíram o sujeito falante. É em transferência com o outro (analista/professor) - sujeito suposto saber - que o discurso do Outro repercute no sujeito. É em transferência que os afetos reverberam, repetem-se, mobilizam pulsões, sintetizam e escandem os não-saberes inconscientes. Não existe aprendizagem sem paixão. É preciso que certa dose de mal-estar, não sem entusiasmo, fale intimamente ao pé do ouvido do sujeito, fazendo-o lidar com aquilo que o concerne, com aquilo que o clama pelo nome, que afeta o sujeito em sua história subjetiva. Pelas cartografias da pulsão, a linguagem corta e costura o saber inconsciente.

Essa alegria como maior representante dos afetos, segundo Nietzsche, nunca gratuita e descompromissada, inclui o objeto (des)conhecido no âmago do sujeito desejante. É só aí que o processo do aprender é operado. Na posição subjetiva do sujeito, sua cadeia significante na qual um significante só representa o sujeito para outro significante (Lacan), que ele articula algo do saber, sempre meio desarticulado, capenga, naquilo que lhe escapa e em que está implicado intimamente, tragicamente.

Entre aquele que aprende e aquele que ensina, há mais mistérios do que conhece a nossa vã filosofia. Essa dialética é mediada pelo desejo, pelo sintoma, pela paixão, pelos alegres - e por que não angustiados? - afetos inconscientes.

Depois dessa sucinta explanação, fica patente a impossibilidade de separação entre o processo do aprendizado - a aquisição da linguagem, os atravessamentos do discurso do Outro - e as dificuldades inerentes a essa aprendizagem. Para Lacan, antes do nascimento do indivíduo, e mesmo na anterioridade lógica da constituição do sujeito, o bebê já está submetido à linguagem. Ele é atravessado pelas fantasias parentais, pela transmissão de significantes, pelo lugar construído no desejo desses pais.

A aprendizagem e suas vicissitudes deixam em evidência os mecanismos de defesa exclusivos da sexualidade infantil que estruturam a singularidade do sujeito. Uma criança com dificuldade de aprender matemática pode revelar um conflito interno com as subtrações e divisões típicas de sua vivência relacional. Para que um sujeito se constitua, é necessário que o gozo imaginário se descole, seja subtraído enquanto objeto de satisfação pulsional. A série de divisões objetais, operadora da função simbólica, inaugura a circunscrição do sujeito do desejo, assujeitado à linguagem do Outro. Essas equações, as ambiguidades que estão no cerne da irrupção do sujeito, dizem respeito ao drama subjetivo da entrada do sujeito no simbólico, suas questões inconscientes.

A psicanálise não se reduz aos manuais de instruções nos quais, isso quer dizer aquilo e aquilo quer dizer isso, pois é apenas no um a um de cada caso, sob transferência, que o analista pode sustentar a escuta da enunciação, daquilo que autoriza a emergência do singular. É no drama psíquico, nessa tensão constante entre o eu e o isso, os equívocos do sujeito - seu inconsciente -, que as peculiaridades subjetivas de cada um podem ganhar um lugar simbólico, uma desamarração do lugar passivo de aluno. É nessa desalienação do que foi necessário no início da história do sujeito, que ele pode se deslocar do lugar de objeto, na divisão do seu desejo, e não mais ser o nó do sintoma dos pais/professor, para fazer laços com suas próprias criações (aprendizado), reinventando a vida.

Desse modo, conclui-se que não há aprendizagem possível sem dificuldade. Talvez indo um pouco mais longe para afirmar que a dificuldade de aprendizagem coincide com o próprio processo do aprendizado. Não é à toa que sendo a aprendizagem uma potente forma de afetação (Nietzsche) e um (re)conhecimento do que já estava lá (Platão), essa dificuldade concerne ao aprendizado, sempre inacabado, como conflitos de contrários no inconsciente, responsável pela própria beleza de constituição diária do sujeito ao lidar com seu desejo sempre singular.



Artigo Escrito por Alex Azevedo Dias.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Absinto.















Deixou o copo escorregar. O vidro gélido escapou por seus flácidos dedos. Parecia que o tempo entre a queda e o primeiro contato com o solo eternizara-se. Um suspiro profundo se fez ouvir, abafando o já inaudível impacto do objeto. Esfacelado, reduzido à insignificância de lascas perfurantes, seu coração ainda ruidosamente estalava. O copo, fabricado com um material resistente, absorveu o impacto, mantendo-o intacto, sem nenhuma deformidade.

Corpo quebrado. Copo inteiro. As mãos suadas, trêmulas, logo após receber aquela revelação, e a dose de absinto fora derramada ao chão. Nem seu adorado aperitivo - a fada verde dos poetas -, que Poe, cerimonioso, bebericava sempre ao entardecer, resistiu às palavras invasoras. Provocou-lhe irritações no estreito canal auditivo. Depois de derrubar o copo, levou a mão, com dificuldade devido aos espasmos, ao ouvido ferido. Uma dor lancinante impedia que raciocinasse.

Poe inquieto, quase sucumbindo à náusea, notou a umidade no ouvido machucado pelo verbo devastador. Uma gota escarlate ficou à deriva, oscilando como pêndulo no lóbulo da orelha esquerda. Limpou a boca com um guardanapo rasgado, desfazendo-se dos resíduos da bebida, e, com o restante do papel, tentou enxugar o líquido espesso persistente. Ao aproximar o papel dos seus olhos, nenhum vestígio que comprovasse o material que expelia do ouvido em abundância. O pedacinho de papel manteve sua brancura irretocável.

Balançou a cabeça para um lado e para o outro, buscando afastar pensamentos negativos. Mesmo sem ser bem sucedido em sua empreitada, encostou-se ao balcão para pedir ao garçom uma nova dose de seu aperitivo predileto. Tinha absoluta certeza, confiando no diletantismo alcóolico do poeta Baudelaire, que o absinto seria capaz de inebriá-lo, embevece-lo, diluir todas as suas mágoas e frustrações. Tragou a bebida em duas goladas veneráveis. Novamente cedeu ao impulso de enxugar a boca, mas dessa vez usou o dorso da mão como qualquer bêbado em botequim de beira de estrada.

Ao se lembrar de seus autores preferidos, a velha frase de seu pai – leitor voraz, quase compulsivo -, tocou fundo em sua alma. “Um bálsamo para os olhos”, ele dizia. Amava aquele homem, embora não o perdoasse por desperdiçar os últimos dias de sua vida com a fraqueza do vício. Morrera de ataque cardíaco sobre o feltro de uma mesa de Pôquer. Nem a infinita sabedoria dos seus livros o salvou. Poe não herdou o gosto pela jogatina de seu pai. Já a voracidade pela leitura o levou para a mesma sorte do seu velho. Não jogava, mas bebia. Justamente o absinto, que seu pai odiava. Mas Poe sempre repetia com entusiasmo que era a bebida dos grandes escritores. Outro apreciador de tal aperitivo, escritor misterioso, era a quem devia a inspiração do seu nome. Talvez nem mesmo eles pudessem evitar o desfecho trágico de Poe, ou, por isso mesmo, ainda mais o quisessem.

Ao se preparar para tomar a terceira dose da fada verde, Já com o copo entre os lábios, a imagem de Ritinha se impôs. Paralisou-se. Permaneceu segurando o copo com a mão direita, apoiando-o no lábio inferior. Mesmo perante a esquiva, a contemplação se fez imperiosa. Ritinha, a mulher virtuosa com a qual passava do riso às lágrimas em frações de segundos, sua fiel companheira na arte da enganação, levou-o à ruina no mesmo espaço de tempo que o fazia rir e chorar. Poe não sabia se seria possível recuperar-se daquele duro golpe. Remoía sem parar os acontecimentos que lhe comprimiam as têmporas já martirizadas pela dor da perda.

A presença de Ritinha não o deixava em paz. Continuou lá, atormentando-o lentamente em sua concupiscência. Pretendia gozar com toda crueza. Seu caso já havia sido desfeito. O abalo que o corrompeu era previsto antes mesmo de começarem qualquer coisa. Poe, imóvel, na mesma posição, com o copo entre os lábios, contendo um restinho de absinto no fundo, distante de sua boca, sentiu uma comichão percorrendo-lhe a garganta. Teve impulso de se coçar, mas a sensação da coceira era interna. Conseguiu inclinar mais o copo para ingerir a gotinha final da bebidinha sagrada. Passou como ácido, queimando a garganta que latejava em carne viva.

De repente, tudo fez sentido.A alegria da revelação entrelaçara-se à agonia da realidade que tanto Poe quis afastar. O desespero arranhou a porta de suas entranhas com unhas inflamadas de abutre. A claridade o cegou. Tanta luz. Tanta dor. Ritinha estava morta! Os dedos flácidos de Poe não suportaram mais segurar o copo. De rosto enrijecido, esculpido em cera, nem se deu conta que o copo de vidro, contendo apenas uma gota de seu líquido querido, escapulira de sua mão empapuçada pela transpiração fugidia.

O copo foi ao chão e se estilhaçou em inúmeros caquinhos. O que sobrara do absinto, derramado pelas ranhuras do piso de tábua corrida, jazia inerte à espera das lambidas de algum animal sedento que passasse por ali. De súbito, Poe se sentiu revigorado. O corpo fortalecido. Não mais seguiria o destino traçado por seu pai. Poe se levantou - corpo ereto, sem cambalear -, esfregou a testa com o antebraço, abriu bem os olhos, e seguiu em direção à velha biblioteca da antiga moradia.

Já na casa herdada de seu pai, Poe se sentou na confortável poltrona destinada ao anfitrião e se pôs em frente à lareira. Virou a cabeça para a esquerda, mirando a extensa estante de livros. Estava decidido. Precisava mata-lo. Seu pai, mesmo já falecido, ainda não morrera em sua mente. O plano que arquitetara, e que colocaria em prática, enterraria definitivamente a mórbida lembrança de aquele ser abominável que chamara de pai. Pegou um por um. Livro por livro, lançando-os à chamuscada lareira. Coleções inteiras foram depositadas sem nenhuma piedade para que as chamas as consumissem. Poe apanhou o querosene, desatarraxou a pequenina tampa de plástico, e derramou todo o líquido da garrafa na pilha de livros. Riscou um palito de fósforo, e, num peteleco, arremessou-o flamejante para seu destino incendiário.

O som da contorção agonizante das páginas reduzidas a cinzas foi ouvido como o estalar de carvão molhado. Todo o horror daquele velho sem coração explodia num bailado de fagulhas e labaredas. Poe aspirava a fuligem expelida da lareira com uma satisfação ímpar, inenarrável. Foi aí que sentiu novamente o gotejar de uma substância espessa de sua orelha esquerda. Levou a mão até ela, na esperança de descobrir se realmente se tratava de sangue ou de outra secreção, mas sua mão retornou seca, sem nenhum vestígio que explicasse tal sensação.

Algo próximo aos seus pés chamou-lhe a atenção. Viu uma página rasgada do livro de Edgar Allan Poe, do poema “O Corvo”, com uma intrigante mancha escarlate. Percebeu que aquele borrão avermelhado estava aumentando intensamente. Gotejava do teto. Passou novamente a mão em sua orelha. Não era do teto. Era dele que escorria o líquido escarlate. Ficou atônito diante dos fatos. O fluxo escarlate só se avolumava. Olhou para a página suja. Contornado pelo líquido vermelho de sua orelha, o nome daquela mulher ressaltara diante de si: Ritinha. Era uma dedicatória. Ele a amava...


(...)


Os bombeiros não conseguiram conter o fogo que lambeu toda a casa de Poe. Estava condenada. Sem recuperação. Todos os pertences foram perdidos, carbonizados, engolidos pelas chamas ardentes. A perícia investigou as causas do incêndio. Não havia objetos que comprovassem a autoria de nenhum crime. Apenas um pedacinho de papel, provavelmente da página de algum livro, chamuscado nas bordas, fora salvo do incêndio, nada mais. “Um bálsamo para os olhos”, a única frase que podia ser lida.



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.