quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Fonte da Vida.



Fonte da Vida.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

O dia mal clareou e um burburinho de vozes femininas reverberou no salão principal. Guardas protegiam os portões com semblantes incorruptíveis. A tropa marchava no pátio externo. Com seus coturnos impecáveis e uniformes bem alinhavados, realizava seu exercício matutino, ignorando a presença das moças. O convívio com tais moças tornara-se cada vez mais frequente. Apesar de o quartel não ser, a princípio, o ambiente mais adequado, elas cumpriam ordens e lá compareciam para o recrutamento e para treinamentos sucessivos de caráter e de conduta. Embora o regime não admirasse muito os talentos femininos, aquelas mulheres, todas de família, algumas até casadas com homens comuns, recebiam tratamento de qualidade invejável. Eram aceitas e desejadas exatamente naquelas condições. Já as que não tinham sangue puro, enfrentavam as mais cruéis represálias. Nem para o coito vulgar e agressivo serviam, pois os oficiais e mesmo soldados rasos abominavam que se sujassem intimamente por entranhas degeneradas. As escolhidas, sejam as voluntárias, sejam as que foram levadas à força, ali estavam como matéria-prima de um nobre destino para a construção de uma potente nação.

Frau Magda preparava o almoço quando bateram à sua porta de forma indócil e insistente. Seu marido, jovem camponês que consumara o matrimônio recentemente com a bela e dedicada moça, ainda não voltara da lavoura de trigo na qual atravessara gerações de trabalho árduo e primoroso. Por tais circunstâncias, Magda hesitou em abrir a porta. Fez silêncio para simular que a casa estivesse vazia. Como as batidas não cessaram, apesar de quase sucumbir à inquietação, dirigiu-se à porta. No umbral de ardósia, um homem de alta patente da SS, empertigado, estendeu o braço, com leve sorriso, para cumprimentá-la.

Sem reação, ela mal pôde olhar para os olhos do oficial. Aquele uniforme lhe causava calafrios. Embora não pertencesse à família judia, soube da implacável perseguição, do antissemitismo. De cabeça baixa e braços caídos rente ao corpo, Magda permaneceu imóvel. Desistindo de ser amigavelmente convidado para entrar, o oficial esfregou o solado das botas no capacho felpudo do batente e escancarou a porta, empurrando-a pela maçaneta. Foi até a pequena cozinha, puxou uma cadeira e se sentou à mesa, pedindo que a mulher lhe levasse café ou chá. Sem dizer nenhuma palavra, Magda obedeceu, disfarçando os tremores das pernas por baixo da longa saia cujo comprimento ultrapassava os tornozelos. Enquanto fervia a água e coava o café, o oficial, tamborilando na mesa de madeira sem um pingo de discrição, comia a jovem alemã com os olhos, observando-a dos pés à cabeça.

Ao se reaproximar do representante do serviço secreto, oferecendo-lhe a xícara de café e o servindo em seguida, ele a pegou pelo braço, segurando-a com firmeza, sem titubear, e se apresentou inicialmente, dizendo se chamar Fritz von Broich. Magda, segura pelo pulso, antes mesmo de depositar a xícara na mesa, manteve-a suspensa, evitando o mínimo tremor que fosse para não derrubar café no pires, ou o que seria pior: manchar o higiênico uniforme do oficial, o que causaria uma catástrofe irreversível e de maior envergadura. Sem desviar os olhos de Magda como se fosse um predador analisando sua presa antes do ataque final, afirmou que ela deveria se orgulhar por ser um exemplar ariano de características inigualáveis. Disse que se ela fosse judia, ele a esterilizaria ali mesmo, sem dó nem piedade, arrancando seus ovários com as próprias mãos. Mas como se tratava de uma ariana alemã legítima, serviria com muita honra aos desígnios máximos do III Reich.

Ainda sem soltar o seu braço e sem lhe dar direito à escolha, comunicou-lhe que seu ventre era propriedade da soberania do nacional-socialismo e, a partir do instante em que receberia a ordem suprema, teria a missão de colocá-lo a serviço da purificação da raça ariana. Fritz soltou o braço de Magda, bebeu o café, despediu-se e a deixou lá, no meio da cozinha, estatelada, sem nem sequer raciocinar a respeito do que acabara de se passar. Quando seu marido chegou, ela nada pôde dizer. Fingiu que não se abalara pela gravidade de seu sórdido destino. Temia o pior e não queria desestruturar o homem com o qual escolhera viver o resto da vida. Semanas se sucederam, intercalando-se a visitas constantes do mesmo oficial para instruí-la, passo a passo, sobre a divina missão para a qual fora convocada. Tais visitas ocorriam invariavelmente sem a presença do marido.

Um dia, sem anunciar, o oficial chegou à casa de Magda com mais três soldados da SS. Klaus, o jovem esposo, que lamentavelmente ainda estava em casa no instante derradeiro, assistiu à entrada triunfal dos homens fardados com a suástica nazista afixada nas mangas. Acabou descobrindo os planos macabros que o regime reservara à sua esposa da pior forma possível. Tentou resistir, alegando que ele e a mulher eram pessoas de bem, que não eram hebreus nem semitas e que ele trabalhava duro diariamente em prol do crescimento da economia agrícola do país. Fritz von Broich se limitou a lhe entregar uma carta cujo conteúdo exaltava a ascensão nazista e o condecorava por ser o marido de uma mulher que serviria à perpetuação e purificação da imponente raça ariana. Inconformado, vendo Magda ser conduzida ao automóvel da Gestapo sem mover nenhum músculo da face nem olhar para trás, argumentou que ele também pertencia à raça ariana e poderia gerar uma criança nos mesmos moldes do projeto ideal de eugenia do Führer.

Impassível, o oficial se voltou a Klaus, olhando-o com desdém, e disse que apesar de não ser de origem judia, sua anatomia - por ter a perna direita um pouco mais curta do que a esquerda, conferindo-lhe uma leve deficiência - era tão degenerada quanto à de alguém de raça inferior. Klaus utilizava uma bota corretiva, ortopédica, que lhe conferia estabilidade na locomoção. Revoltando-se, tentou provar à polícia secreta que isso não o impedia de plantar e de colher o trigo diariamente na lavoura e que prosperava significativamente. O oficial, contraindo os lábios, esbofeteou o rosto de Klaus. Considerou tais argumentos ofensivos e petulantes. Disse que as decisões de Hitler eram inquestionáveis. Falou ainda que se não fosse um mísero aleijado o incumbiria de se alistar no partido, mas, nas atuais circunstâncias, teria que tomar uma resolução mais adequada: castrá-lo, como se castra cães e gatos, para não poluir a hegemonia do solo germânico, povoando-o com descendentes também aleijados, inúteis e imprestáveis. Fritz von Broich agarrou Klaus pelo braço, alegando levá-lo em outro automóvel para que fosse conduzido ao centro cirúrgico no qual seria esterilizado. No momento em que ocorria o tenso diálogo entre os dois homens, a esposa de Klaus, acompanhada pelos outros soldados, já estava longe dali.

Num rompante, Klaus se desvencilhou das mãos envoltas em luvas espessas e cuspiu na cara do oficial. Simulando ignorar o ocorrido, Fritz, com absoluta calma, retirou o quepe com uma das mãos e, com o antebraço, limpou a saliva de Klaus que escorria do alto de sua testa. Sem pestanejar, delicadamente, tirou sua pistola Luger do coldre, esticou o braço e a apontou para a testa de Klaus, no mesmo ponto em que, na sua, seu desprezível oponente havia cuspido. Com a mesma frieza com que realizava das mais terríveis às mais triviais atividades cotidianas, Fritz disparou, abrindo uma cavidade fatal entre os olhos de Klaus.

O oficial da SS, com a mesma serenidade, deu dois passos para trás para se afastar da poça de sangue que se aproximava lentamente de seus pés. Guardou a Luger no coldre, arrumou os cabelos com os dedos e ajeitou o quepe, puxando a aba para frente. Caminhou até o umbral de ardósia e lá ficou por alguns segundos, contemplando o vasto trigal alaranjado pelos últimos raios de sol. Antes de sair, abandonando de vez a casinha que abrigava duas almas felizes pelo recente enlace do matrimônio, Fritz Von Broich esfregou a sola dos coturnos no tapetinho que, do mesmo jeito em que entrou ali pela primeira vez, limpando as botas da poeira da rua, agora as limpava do rastro de morte e dor.

No quartel, o falatório temeroso das moças foi interrompido por uma estirpe de soldados puro-sangue. Muito educados, todos se curvaram diante daquelas damas, pedindo para que elas oferecessem as mãos a serem beijadas de acordo com o protocolo e cordialidade dignos de um grande regime. Heinrich Himmler fez as honras e orientou as moças para que o seleto grupo saudável de rapazes as despisse em quartinhos apropriados nos alojamentos. Obrigatoriamente, cada moça manteria relações com três rapazes, evitando assim que a paternidade fosse reconhecida e a fútil afetividade individual roubasse a autenticidade da supremacia da política nacional-socialista. Afinal, o Estado seria o único responsável pela educação da juventude ariana. Com essa reconstrução fabulosa da vida humana, o regime nazista ganharia mais uma batalha contra a riqueza e diversidade étnica imposta por Deus. E as mulheres, as que não foram mortas por supostos traços de inferioridade, tornaram-se, assim, propriedade de um Estado que mergulhou de cabeça na mais fidedigna qualidade humana: a perversão.


Escrito por Alex Azevedo Dias.

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O Homem Que Não Falava Inglês.



O Homem Que Não Falava Inglês.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Seymour abriu a gavetinha, pegou a bandeira da nação querida e a desdobrou com muito esmero e patriotismo. Apesar de nunca ter considerado a combinação das cores azul e vermelha uma escolha estilosa, vestiu-se como manda o figurino da grande águia careca. Também não admirava muito as aves de rapina. Lamentava que fosse símbolo do seu país. Emplumados só empalhados. Só de pensar no longo alcance da carnívora visão de tal animal, suas pernas amoleciam, ficavam bambas, e, frequentemente, desmoronava. Por isso, afastou a imagem do bicho selvagem de sua memória, balançando a cabeça freneticamente para um lado e para o outro, e voltou a se produzir com a dignidade que a pátria americana merecia.

Desde bem novinho, seus pais o levavam para assistir aos desfiles cívicos na principal avenida do condado nova-iorquino do Bronx. Seu pai o erguia para que Seymour se sentasse em seus ombros. Suspenso no ar, como se flutuasse, sentia-se seguro pelos braços fortes paternos. Lá do alto, com convicção, permitia que a flâmula estadunidense tremulasse firme, entre os franzinos dedos, no topo do bracinho alegre bem esticado. Seymour segurava a bandeirinha com a mesma força com a qual se sentia protegido pelas mãos fortes do seu pai apertando suas canelas finas sobre o peito. Já alto o suficiente para visualizar a parada por cima, sem necessitar dos ombros do pai - apesar da saudade e do desamparo que sentia -, Seymour apressou-se para não chegar atrasado no imperdível 4 de julho. Desde bem cedo, a população entusiasmada já soltava rojões e foguetes, celebrando mais um ano da declaração da independência americana do império britânico.

Ansioso e eufórico, Seymour chegou com antecedência. Uma verdadeira muralha humana o recepcionou, margeando a avenida do evento. Abrindo caminho, Seymour procurou o espaço mais agradável possível para não perder nenhum detalhe do desfile. Os espectadores, espremidos mas disciplinados, não escondiam a expectativa, já, eles mesmos fazendo a festa com fantasias de ícones nacionais e muitas bandeiras. Quando olhou para o lado, devidamente acomodado no meio da multidão, viu no asfalto, atrás de um sujeito usando uma extravagante cartola de Lincoln, ima pequena bandeira brasileira sendo ignorada e severamente pisoteada. Após voltar a se interessar pelo início da parada e não mais se lembrar da cena que mobilizara sua atenção minutos antes, Seymour estampara novamente um sorriso de cabo a rabo em sua cara redonda - em nada comparável à magreza da infância -, balançando sua bela bandeira norte-americana.

Quando o desfile começou, os cidadãos patrióticos, antes entregues a um falatório exacerbado, calaram-se e iniciaram uma excitada sessão fotográfica. Seymour alegrou-se ao avistar a primeira alegoria simbolizando as 13 ex-colônias que conquistaram a independência, separando-se do domínio inglês. De repente, distraído pela exuberância da apresentação, Seymour sentiu que alguém cutucava suas costas com certa insistência. Ao virar, um mal súbito fez com que quase perdesse os sentidos. O sujeito de cartola do tio Sam segurava a bandeira brasileira, surrada e enlameada, perguntando se Seymour era seu proprietário.

Não sabendo o real motivo de tal interrogação, já que nunca questionara a respeito de sua nacionalidade nem exibisse um único traço do biótipo sul-americano, estranhou não ter compreendido nenhuma palavra dita pelo sujeito fantasiado com elegante gravata borboleta, cavanhaque postiço e sua mirabolante cartola. Aflito, gesticulou e tentou argumentar que aquela bandeira subdesenvolvida não lhe pertencia. Para aumentar seu espanto, o interlocutor também não entendeu o idioma usado por Seymour para se expressar. Parecia realmente que ambos falavam duas línguas diferentes, apesar de os dois serem cidadãos americanos. Logo, o falatório reiniciara. Seymour ficara ainda mais perplexo ao ter se dado conta de que todas as pessoas à sua volta falavam a mesma língua confusa e incompreensível - ou dialeto - que o Lincoln de araque também falava. Seymour não entendia nada nem se fazia entender. Quando percebeu, mais perplexo ainda, que não sabia falar inglês, absolutamente nada da língua anglo-saxã, desmaiou.

- Ei, cara. Tu tá bem? - Pronunciou-se um dos inúmeros que, aglomerados, acotovelavam-se para disputar o melhor lugar em meio aos curiosos para ver o homem caído em plena praça pública.

Mesmo relutando em abrir os olhos, pois ainda se sentia tonto e nauseado, ao ouvir aquelas palavras, Seymour se alegrou por estar curado, novamente compreendendo o idioma dos seus conterrâneos.

- E aí, camarada. Tu fala minha língua?

Sensibilizado por estar em sua pátria idiomática outra vez, Seymour se esforçou em se levantar, apoiando-se em seus cotovelos para ao menos suspender a cabeça do asfalto. Logo, observando a recuperação daquele homem, quatro dos curiosos se manifestaram e foram auxiliá-lo a se erguer dignamente. Emocionado, Seymour confirmou falar a mesma língua de todos, entoando seu verbo.

- Falo! Falo sim. Claro que falo.

- Pô, cara. Se você é um dos nossos, então o que tu faz com essa roupa ridícula vermelha e azul?

- Ué?! É da nossa pátria!

- Hi... Olha o cara, aí... Bateu a cabeça? Pô cara, acorda. Estamos atrasados.
Atordoado, mas sem tocar sobre o dilema das cores, Seymour coçou a cabeça descabelada e perguntou sobre outro assunto, o do suposto atraso: - Atrasados para quê? Para o nosso dever cívico?

- Claro! Nosso dever patriótico de torcer pela seleção.

- Seleção dos heróis da independência?

- Isso! Heróis da bola! Vamos passar pela Colômbia com uma enxurrada de gols e dribles fantásticos!

- Esperem um pouco! Do que vocês estão falando? Falamos a mesma língua, mas não falamos da mesma coisa. Hoje não é o feriado de 4 de julho?

- Opa! O cara tá bem situado no tempo! A pancada não afetou tanto a cachola dele. Sim. Hoje é dia 4 de julho e é feriado.

- Então o desfile já acabou?

- Que desfile cara? Tá maluco? Tá doidão? Foram essas cores de bosta que te subiram à cabeça. Põe a canarinha aí, pô! Sabe onde estamos? Tu está perdido no espaço? Estamos no Largo do Machado. Até o Maraca demora pacas.

Seymour apavorou-se. Seu semblante empalideceu. Teve a sensação de que já ouvira os nomes “canarinha”, “Largo do Machado”, Maraca” em algum lugar. Mas quando? Onde? Certamente nada tinha a ver com os EUA. Olhou para um lado. Olhou para o outro. As pessoas tinham um aspecto bem diferente da realidade norte-americana. Mas quando percebeu que aquela língua com a qual se sentira em casa, compreendendo e sendo compreendido não poderia ser o inglês, estarreceu-se quase que por completo. Ele estava falando português. Um português nativo. Um português cantado, assoviado como o dos pássaros e dos cariocas. Um português brasileiro, regional, do Rio de Janeiro, tão autêntico quanto cada nuance de cada cantinho desse gigante - mulato e inzoneiro - sul-americano. Estava no Brasil. Meu Deus! – Exclamou, balbuciando, sem ser ouvido pelos companheiros. Resolveu não questionar aquele absurdo delirante do qual tornara-se vítima. Embarcou no samba do crioulo doido e, já que não falava inglês mesmo, só o português, indagou como quem não quer nada: O que vai ter lá?

- Cara, tu não sabe? Pô, jogão da Alemanha contra a França pelas quartas-de-final da Copa.

- Amigo, desculpe a confusão, devo realmente ter batido a cabeça com força quando caí, mas hoje, 4 de julho, não deveria ser feriado aqui. 4 de julho é feriado só nos EUA, pela declaração da independência.

- Cara, tu vive em outro mundo mesmo, né não? Hoje, como tu sabe, tem jogo no Maraca. O prefeito do Rio decretou feriado municipal. E tem mais: Depois do jogo no Maraca, vamos ver o jogão do Brasil!! Brasiiilllll!! Brasil e Colômbia. Rumo ao Hexa! Vamos torcer pra seleção passar pra semi-final. Como o jogo do Brasil é lá no Castelão, em Fortaleza, vamos torcer no boteco do Manel, que é bem mais pertinho. Tu ta convidado, maluco. Vamos juntos? Mas tem que mudar de cores. Essa camisa vermelha e azul vai dar má sorte. Ôh, Raul! Pega a camisa do Neco aí pro camarada aqui. Acho que dá nele. O Neco não pôde vir.

Seymour pegou no ar a camisa lançada, toda embolada, pelo Raul. Tirou a que estava usando, deixando-a cair no meio-fio. Vestiu a canarinha número 10 com o nome de um tal de Neymar Júnior. Coube certinho. Vencido pelo cansaço e sem querer saber a verdade, se era realidade ou fantasia, partiu abraçado aos novos companheiros, com um copinho de cerveja fabricada nos EUA cada um. Bebericaram e comemoraram muito.

Entregue ao absurdo que passara a viver, aproveitou ao máximo, como jamais aproveitara, aquele feriado municipal no Rio de Janeiro, e em pleno Maracanã. O melhor 4 de julho da história de Seymour, da história americana. Ele ofereceu um brinde à América. E, como sempre disse o ditado patriótico: a América para os brasileiros! Ou será que não?


Escrito por Alex Azevedo Dias.

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quinta-feira, 27 de março de 2014

A Segunda Estrela.






A Segunda Estrela.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

O sopro frio da manhã, sacudindo os ramos brutos de um pinheiro, mantinha imóvel a sombria peça de vestuário fincada no arame farpado. Ao longe, coturnos reluzentes de soldados batiam com desdém e destemor na terra seca e dura, levantando poeira e rasgando os trapos e fiapos de esperança de homens, mulheres e crianças. Com o corpo arranhado e imundo, Guttmann rastejava sobre pedregulhos como punição por pedir água e um pedaço de pão para sua mãe que agonizava em um cômodo úmido e mal iluminado.

A camisa listrada do seu uniforme fora arrancada com brutalidade e cravada no arame farpado como advertência aos indolentes e insubordinados. O peito rasgado de Guttmann permanecera exposto após as miseráveis ordens. Largado à própria sorte, ou receberia o unguento necessário do sol, ou seria vítima de infecção oportunista por malditas larvas das inúmeras lixeiras e todo tipo de podridão a céu aberto. No alojamento, durante a madrugada, seus companheiros de infortúnio se depararam com Guttmann suando frio e murmurando desacordado. Mesmo com escassos recursos, teve seus ferimentos desinfetados e cobertos por tiras de pano velho.

Antes do amanhecer, foram surpreendidos por um burburinho do lado de fora. Uma enorme fila só de mulheres havia se formado. As que resistiam a entrar na fila - as que, por enfermidade não se aguentavam em pé e as muito idosas - levavam chutes e pontapés, socos, tabefes e bofetões. Muitas morreram ali, estiradas inertes no chão. Um deles identificou a mãe de Guttmann. Por mais doente que estivesse, perfilou-se, seguindo estritamente as ordens dos soldados. Em silêncio, obedientes, elas foram levadas até uma câmara misteriosa na qual só se entrava em grandes grupos e da qual jamais se vira ninguém sair. Várias chaminés expeliam uma fumaça espessa e enegrecida. Um odor insuportável era exalado de lá de forma intermitente. Alguns acreditavam se tratar de um crematório - lugar de extermínio dos que eram julgados inválidos -, mas poucos tinham certeza dessa informação.

Pela manhã bem cedo, tiraram os curativos improvisados de Guttmann e, mesmo com dificuldades de se erguer, levantaram-no na marra, pois se os soldados o flagrassem naquelas condições, seu destino fatal já era previsto. Não contaram sobre sua mãe para poupá-lo um pouco, pois já quase sucumbia às dores físicas. Para que ele se deitasse, espalharam palhas secas no chão e as forraram com uma coberta fina e esgarçada. Evitavam, assim, que o já moribundo Guttmann fosse atacado por pulgas, carrapatos e percevejos, cada vez mais se amontoando nos colchões dos alojamentos.

Ao recobrar os sentidos, foi logo em direção ao alojamento feminino para ter notícias de sua mãe. Na metade do caminho, um punho cerrado explodiu em seu peito descamisado. A pancada o fez curvar-se. Mas logo se endireitou, engoliu a seco as primeiras lágrimas que teimavam em descer e levantou a cabeça, exibindo um semblante com o máximo de serenidade. O soldado lhe apontou uma pá encostada no tronco de uma árvore e mandou que cavasse algumas covas. O odor do monturo de corpos, entrando em putrefação, estava nauseando os vigilantes da SS. Então, incumbiram os que consideravam mais fortes para que abrissem grandes buracos nos quais metessem o maior número possível de mortos.

Guttmann cavou dia e noite, sem parar, até a exaustão. Não soube de sua mãe, nem muito menos tivera tempo de pensar nisso. Após três dias ininterruptos de trabalho árduo, fora concedida uma noite de descanso. Mesmo esgotado, não conseguiu dormir. Algumas dores não foram feitas para que se deságuem no sono profundo e refazedor, mas, ao contrário, para que excitem ainda mais a mente para que arregalem os olhos da consciência. Antes de entrar no alojamento, apoiou a pá no chão e debruçou-se em seu cabo com uma mão sobre a outra e o queixo sobre ambas. À luz do luar, avistou sua camisa listrada fincada no arame farpado. Ao olhar mais acima, observou uma estrela solitária. Notou a semelhança entre o bordado mal feito de seu uniforme, esfarrapado naquela cerca, e a pequena estrela cintilante.

O trabalho tosco daquele bordado, que marcava o peito triste e abafado dos seus companheiros de jornada, significava nada mais nada menos que a liberdade do seu povo. Sua camisa listrada, aquele pedaço de trapo destroçado no arame, ostentava uma estrela disforme, atada à desesperança de um campo morto. Mas a outra estrela, a brilhante, pairando acima de todas as cabeças, seja dos maus, seja dos bons, estava além do arame farpado. Estava nas alturas. Estava livre.

Olhou para os lados. Os soldados marchavam, realizando rondas noturnas. Faziam a vigília, não deixando escapar nenhum ângulo sequer de seus olhos de sicário. Qualquer movimento humano, suspeito ou insuspeito, os guardas cravejavam o infeliz sem culpa nem clemência. Matar era o mais disputado esporte deles. A iluminação em toda a extensão da cerca impedia qualquer ponto cego e garantia a visibilidade em amplo espectro. Uma ponta de esperança surgiu quando Guttmann se deu conta de algo inusitado. Estranhamente, talvez por causa da luz do luar em contraste com a luminosidade artificial do campo, ao lado de um poste, justamente na linha da estrelinha especial, uma pequena circunferência de terra ficara completamente mergulhada na sombra.

Um espaço mínimo, permitindo que seu corpo se encaixasse perfeitamente sem que fosse visto. Esgueirando-se, deslocou-se até à sombra, ajoelhou-se e se pôs a cavar. Não sabia como ainda tinha tanta força. Tantos dias sem dormir, abrindo covas e jogando corpos quase podres naqueles buracos precários e vergonhosos. Não precisava descansar. Sentia-se em plena forma para cavar mais um buraco, dessa vez com as próprias mãos. Precisava alcançar a estrela, não por cima – seu verdadeiro lugar -, mas por baixo, junto a minhocas e vermes. Buraco que o elevaria à categoria de homem livre, testemunhado pelo sorriso protetor da lua e alçado pelo brilho da verdade estelar. Guttmann cavou naquela noite o que nenhum homem poderia cavar em semanas sem cessar.

Em meio à terra, pedaços de unhas, de pele, de carne, de todas as vidas que se esvaíram pelo chão frio em sangue quente. Seu corpo franzino e subnutrido se espremeu como gato fugido pelo exíguo vão cavado por baixo da cerca. Cambaleando, com o arame farpado às suas costas, deixado-o para trás, Guttmann esfregou os olhos, cego pela potência do mundo inteiro a ser reencontrado. Abriu os braços e deixou que as lágrimas, outrora contidas, descessem e lavassem seu rosto enlameado pela tristeza. Pura embriaguez dos sentidos que só a sensação de liberdade pôde trazer. Olhou para cima. Ela estava lá. Sua estrela solitária o conduziria à paz de espírito e lhe devolveria o mundo inteiro.

Ao dar o primeiro passo em direção à nova vida, um impacto em suas costas lhe tirou o inocente sorriso dos lábios e o fez cair de peito no chão. Mesmo gradativamente perdendo a vivacidade do olhar, ainda conseguiu avistar a estrela radiante e esboçar um sorriso junto a um sangue espesso e ao último suspiro. Ainda com a arma em punho, o soldado virou-se novamente para o interior do campo. Guardou a arma e se afastou do arame farpado. A banalidade de mais uma vida tirada em tais circunstâncias não fora capaz de deter a energia libertária daquele homem sofrido.

Como um sopro de alegria, após atravessar por debaixo da discórdia, Guttmann alçou voo, subindo cada vez mais alto em direção à estrela. Quando chegou tão alto quanto ela, iluminado pela luz do luar, não mais quis subir. Abraçou-a com fervor e dela não mais soltou. Daquele dia em diante, o céu sombrio do campo de concentração enfeitara-se com o cintilar de mais uma estrela, mais uma luz, mais uma pequenina esperança.

Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

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domingo, 12 de janeiro de 2014

A Cidade Cativante.




A Cidade Cativante.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Ao saltar da embarcação, deparou-se com a estátua de um índio mal-encarado, esperando-o de braços cruzados. Apesar de austero e valente, em seu rosto, transbordava ternura e serenidade. Carmo contornou aquele monumento improvável e o comparou aos rígidos braços abertos do Cristo Redentor. Talvez em nada se assemelhassem. A posição do índio suscitava proteção e cuidado. Os braços do Cristo, frágil abraço, denotava devoção, com certa dose de desamparo. Carmo observou que o pôr do sol emprestava ímpar vivacidade à pele de bronze daquele guerreiro indômito. A camada esverdeada composta pelo tempo implacável, em contato com os últimos raios do astro adormecido, convertera a bravura do cacique em destemido amor.

Quando tomou consciência de si, ficara mais de meia hora parado em plena Praça Arariboia, olhando para o alto, contemplando a imponente estátua. Carmo deu uma olhadinha para cada lado, temendo cair no ridículo. As pessoas passavam frenéticas, para cima e para baixo, para um lado e para o outro e não se davam conta daquele inusitado visitante embasbacado pela força do ilustre anfitrião niteroiense. Ligeiramente constrangido pela cena patética à qual se entregara, Carmo abandonou a veneração ao monumento de Arariboia e saiu de fininho.

Recuperando-se da inquietante experiência, atravessou a movimentada Avenida Visconde do Rio Branco e, novamente, deparou-se, maravilhado, com a arquitetura suntuosa de um palácio em art nouveau inteiramente restaurado e iluminado. Leu que se tratava de uma edificação dos Correios, inaugurada com a presença do primeiro presidente da república brasileira. Consultou o relógio. O tempo corria velozmente. Não mais permitiria ser sugado por seu deslumbramento sensível. Ajeitou a gravata, tirou o paletó, arrumando-o no antebraço - com o cotovelo levemente dobrado para não amassá-lo - e prosseguiu viagem. Faltava pouco tempo para seu compromisso inadiável e não poderia se atrasar um minuto sequer.

Carmo não quis pegar nenhuma condução. Sabia que se não se distraísse pelo caminho, margearia a orla sem que corresse o risco de perder a hora. Tinha quase duas horas para reservar tal prazer a si. Viu, ao longe, toda a extensão da Ponte Rio/Niterói. Observou duas estátuas, também de bronze, sentadas em um banco de concreto. Uma, representando o presidente Juscelino que, entusiasmado, olhava os projetos arquitetônicos de Niemeyer. Sentiu a brisa soprada da Baía de Guanabara em seu rosto, amenizando o calor e enxugando os pequenos brotos de suor.

Passou por Gragoatá e São Domingos. Ao se aproximar de Boa Viagem não resistiu e contemplou, timidamente, o Museu de Arte Contemporânea em seu inconfundível formato de disco voador. Ele foi construído praticamente à beira de um precipício, desafiando a lógica matemática e a razão humana. Grato pela fascinante paisagem que se descortinara à sua frente, derramando beleza aos cinco sentidos, avistou uma pequena igreja no alto de uma ilha próxima ao MAC. Viu que essa ilha unia-se ao calçadão da orla por uma longa e estreita ponte de concreto armado. Notou também que abaixo dessa ponte o mar se dividia por uma fina camada de areia. Convidado por tal fenômeno da natureza aliado às façanhas humanas, Carmo, que não era católico, entregou-se, emotivo, ao sinal da cruz, dobrando sutilmente seus joelhos em reverência àquela imensidão.

Fez uma pequena pausa para fotografar a magistral obra de Niemeyer, símbolo da cidade de Niterói. Não pôde ignorar que de um pequeno lago artificial, no qual a estrutura do museu fora instalada, as ondulações refletiam os raios do sol, formando um móbile de luz em toda a circunferência daquela obra magnífica. Carmo consultou novamente o relógio. Só faltava meia hora. Agitou-se ao constatar a inevitável passagem do tempo. Apressado, atravessou, mantendo o contorno litorâneo, o bairro do Ingá. Da praia das Flechas, notou chamativas formações rochosas, conhecidas como Pedra do índio e de Itapuca. Antes de o MAC ser elevado como representante maior da cidade, tais monumentos naturais assumiam a categoria de símbolos máximos da cidade.

Acelerando os passos, ao invés de continuar seguindo pelo calçadão, já na praia de Icaraí, virou à esquerda, na Miguel de Frias e a seguiu até pegar a Moreira César desde o início. Na esquina, em frente a uma padaria, deteve-se diante de uma banca de jornais. Lá, admirou-se com cartões postais com os mais variados retratos. Primeiro viu que, perto dali, havia um amplo espaço arborizado e florido, uma reserva ambiental com um grande chafariz, bem no coração de Icaraí. Logo uma vontade atroz fustigou-lhe a alma. Mas, sabendo de seu compromisso, afastou a ideia de conhecer o Campo de São Bento. Aquele lugar lhe traria a paz tão almejada, a mesma paz que receberia como retribuição ao concluir o trabalho ao qual se comprometera. Além da compensatória paz ao final do serviço, muito dinheiro também estava em jogo.

Já mais para o fim da Moreira César, Carmo dobrou à direita, na Oswaldo Cruz e novamente se dirigiu à praia de Icaraí. Tirou do bolso um bilhete amassado. Espichou o papel até conseguir visualizar o endereço e confirmou sua exata localização. Colocou-se defronte ao condomínio luxuoso, de vinte andares. Enquanto aguardava a oportunidade adequada para entrar, teve sua atenção tomada pelos trajes elegantes com os quais os moradores desfilavam a torto e a direito. Notou que o modo de se vestir daquelas pessoas muito se assemelhava aos cidadãos que circulavam pela Moreira César. Não evitou que um sorriso malicioso escapasse de seus lábios. Mas logo se recompôs. Sabia ser aquele um bairro nobre, embora o dinheiro não fosse sua prioridade. Estava ali para cumprir seu compromisso e ponto final, sem mais nem menos.

Pacientemente, esperou que a garagem abrisse para acompanhar o veículo que entrasse ou saísse. Não demorou muito, um automóvel parou. O motorista acionou o controle remoto e o portão iniciou sua abertura. Carmo, nesse instante, comparou o portão à abertura cerimoniosa das cortinas de um teatro, convidando-o a subir ao palco. Estava exultante. Sentia que aquela era sua deixa para o encerramento de grande espetáculo. Abaixou-se à lateral do carro, tomando cuidado para não ser identificado pelo espelhinho retrovisor. Paralelamente ao movimento do veículo, foi se esgueirando lentamente até passar por completo, também sem ser visto pela câmera de segurança do edifício.

Na ausência do porteiro, Carmo, fingindo ser um condômino comum para não levantar suspeitas, sentou-se no sofá, cruzou as pernas e, calmamente, abriu o jornal do dia. Verificou outra vez o relógio. Faltava apenas cinco minutos para executar a vítima do oitavo andar. Fechou o jornal, depositando-o sobre os joelhos, ergueu de leve o corpo e conferiu discretamente o revólver preso pelo cinto da calça, junto à pele. Quando ia se levantar, estancou subitamente ao ver uma praia belíssima na capa da revista sobre a mesinha, com tampo de mármore, no centro da portaria.

Largou o jornal em cima da almofada do sofá e folheou a revista. Não pôde conter uma lágrima solitária descendo pelo seu rosto. As praias paradisíacas da região oceânica de Niterói o enterneceram. Tocaram-no profundamente. Ele não fazia a menor ideia da riqueza daquela cidade. Tudo que já tinha visto até então já fora suficiente para convencê-lo do fascínio daquele lugar. Abriu página por página. Vislumbrou retrato por retrato. Encantou-se com as praias de Piratininga, Itaipu, Camboinhas e Itacoatiara. Um sentimento tão oceânico quanto o mar aberto invadiu-lhe por completo, intensificando à exaustão as lágrimas de emoção.

Naquele instante, decidiu: largaria a odiosa vida de matador de aluguel. Diante de tanta beleza, não valeria a pena ceifar vidas, privando as pessoas da contemplação pacífica da natureza em seu esplendor e formosura. Carmo contraíra uma séria dívida com mandantes do crime na Baixada Fluminense e fora encarregado de desembarcar pela primeira vez em Niterói para assassinar um juiz de direito em troca de perdão e paz. Decidido a mudar de vida definitivamente, Carmo guardou a revista em sua pasta e saiu pela porta da frente. Ao ver o límpido e cristalino cenário, composto por um azul infinito, deixando ainda mais visível o Pão de Açúcar e o Corcovado do calçadão da Praia de Icaraí, entregou-se novamente ao mais copioso pranto.

Carmo seguiu pelo calçadão em direção ao bairro de São Francisco. Subiu a estrada Fróes até mirar a praia do alto. Certificou-se que ninguém passava naquele instante, tirou a arma da cintura com cuidado e, impulsionando bem forte o braço, arremessou-a para o meio da água. Como não poderia retornar ao Rio de Janeiro, lembrou-se que havia um conhecido seu que falsificava identidades. Coincidentemente, ele residia em Niterói. Telefonou. Conversaram longamente. Ele explicou sua situação delicada ao Petrotski - seu amigo falsificador -, nascido no estado do Paraná e também amante de Niterói, que há muitos anos fixara residência em Itaipu. Ao ouvir toda a história atentamente, sensibilizou-se pela causa de Carmo.

Algum tempo depois, Carmo passou a se chamar Manoel. Petrotski ainda foi além do combinado para ajudar o amigo. Apesar de ser num lugar distante de Itaipu, numa rua apenas numerada, sem nome e sem asfalto, Petrotski tinha mais uma propriedade que, mediante uma quantia camarada, alugou para Carmo morar temporariamente. Favorecendo o amigo financeiramente, viabilizou seu contato com pescadores da região. Rapidamente, Manoel, que jamais revelara sua real identidade aos novos amigos, enturmou-se, alugou um barquinho modesto e se aventurava, toda quarta-feira, no mar aberto, junto às traineiras e gaivotas famintas, empenhando-se no seu ganha-pão.

Após muito trabalho, comprou um espaço em sociedade com um camarada seu do mundo dos pescados no tradicional Mercado São Pedro. Logo depois, agradecendo com muito carinho ao amigo Petrotski, deixou a casinha em Itaipu e se mudou para a Vila Pereira Carneiro na Ponta da Areia - um pequeno bairro residencial construído por trabalhadores da construção naval. Manoel, O Peixeiro, como se popularizara entre os amigos e clientes da banca de peixe, vivia com um sorriso largo de orelha a orelha.

Com muito orgulho, em sua certidão de nascimento falsa, estava a cidade de Niterói como seu berço querido. E de Niterói, Manoel jamais saíra e nunca mais se recordara que um dia tivera outro nome.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Numa Noite de Natal.




Numa Noite de Natal.
Autor: Alex Azevedo Dias.

A chuva finíssima esfumaçara ao sabor dos ventos. Assim borrifada, espalhando-se dispersivamente, essa chuvinha lembrava os flocos de neve da mesma época, mas em outra estação. Uma menina desgarrara de sua mãe enquanto se aproveitava da distração desta numa vitrine importada. Separara os lábios na tentativa frustrada de abocanhar uma gota d'água, resultando apenas num rostinho úmido a soltar tímidos espirros. O calor daquele verão enganava os desavisados, confundindo a roupa molhada pela transpiração com a linda, leve e solta chuvinha do entardecer.

Notando que havia perdido a filha de vista, Lara se precipitou na multidão e, vendo Nina alheia, contemplando sua íntima nevasca, tomou-a pela mão. Aquele súbito afastamento da filha fez com que ela esquecesse a atraente vitrine com seus objetos mágicos. Lara dividira-se. Não podia ignorar aquelas imperdíveis ofertas, mas um esboço de culpa a freara, pois seu desejo por tal paraíso de vestidos, bolsas, perfumes e joias não poderia aliená-la de seu único bem verdadeiramente valioso: sua pequena Nina.

Quando chegou ao apartamento do ex-marido para deixar a filha, Lara, ainda um pouco frustrada por não ter comprado a fragrância maravilhosa, juntamente com o divino anel de brilhantes, jogou-se no sofá. Normalmente não agia daquela forma. Sentia-se desamparada. Não era partidária do machismo muito menos do feminismo, mas às vezes se martirizava por se achar impotente. Recriminava-se por ter deixado seu marido escapar. Não se via como uma boa mulher, apesar de saber ser portadora de diversas qualidades, além de ser ainda jovem e bonita. Mergulhara no consumismo como refúgio dos dissabores. Mas, naquela noite, o medo de perder a filha falara mais alto.

Já era noite de natal. Naquele ano, excepcionalmente, combinara com o pai de Nina que a menina passaria a noite de 24 de dezembro com a família dele e, no dia seguinte, teria o tradicional almoço natalino com sua própria família. Desde a separação, sempre fora o contrário: a véspera com ela e o dia de natal com ele. Lara não costumava ficar para cumprimentar o ex-marido. Nina conhecia a casa como a palma de sua mão. Aquela era a casa em que viveram juntos por oito anos, nem sempre tão felizes, mas ainda assim memoráveis. Exausta, Lara mesmo resistindo ao sono oportuno, acabou por se entregar a algo maior que um simples cochilo.

Acordou abruptamente com a filha chamando por “mamãe”. Antes mesmo de se levantar, ainda um pouco tonta pela sonolência, não se perdoando por ter adormecido naquelas condições, Lara reprimiu um grito ao ver um homem deitado de bruços ao pé da árvore de natal. Nina estava correndo de um lado ao outro, ora puxando o vestido da mãe, ora abaixando-se ao lado do homem e tocando em suas vestimentas extravagantes. A menina não pôde conter o que sua mãe mais temia: o excesso de fantasia.

- Mamãe, mamãe! Será que é ele, mamãe? Justo na casa do papai? É ele, mamãe?

Com a voz embargada e meio desorientada pela perplexidade do acontecimento, Lara verbalizou, ou melhor, balbuciou, em resposta à inquieta interrogação da filha:

- Seu pai? Não pode! Ele não é tão gordo. Não faz tanto tempo assim que eu não o vejo pra ter engordado dessa maneira.

- Não, mamãe! Que papai que nada. Não é meu pai. É o Noel!

- Como assim, Nina!? Que Noel? Este homem deve ser um encanador ou um bombeiro hidráulico que não resistiu aos apelos festivos e se entregou à bebedeira escandalosa.

- Não, mamãe. Veja, ele tem barba de verdade! Cabelos grisalhos por baixo do gorro vermelho e barba branca.

- Então é um dos amigos vagabundos, daquelas farras, que seu pai sempre trazia pra casa.

- O que você está falando, mãe? Acorda! É o Papai Noel!

- Olha o respeito comigo, heim!?

- É ele mesmo! Veja, veja...

- Quê? Será? Mas ele não existe...

Nesse instante, ao virarem o homem misterioso de barriga para cima, as luzes da árvore se acenderam repentinamente e o suave e encantador som de guizos e sinos ecoou na acústica daquela sala tão cuidada, apesar de tanta história abandonada. Mãe e filha se assustaram na presença daquele homenzarrão que se levantara de uma vez só e lhes estendera uma das mãos com um pequeno bilhete manuscrito. Lara reconheceu a caligrafia. Era de Nina. Uma letrinha singela contendo um inusitado pedido de natal. Logo depois, tudo desaparecera.

(...)

Como num passe de mágica, Nina já completara sessenta anos. Mora com o marido, um francês quatro anos mais velho do que ela, numa cidadezinha do interior da França. É véspera de natal. Seus filhos, já crescidos e bem casados, foram morar no Rio de Janeiro, sua cidade natal e de seus avós maternos. Todos chegaram à França para o natal com a família. Os netos de Nina e Charles brincam alegremente ao redor da lareira. Nina não sentira o tempo passar. Ressente-se do tempo que não vira seus pais, que, a essa altura, já estão bastante idosos. De repente, a campainha toca.

A matriarca Lara entra sorridente, cumprimentando seu genro e beijando os netos e bisnetos. Logo atrás, seu pai aparece, também cumprimentando Charles e dando tapinhas de leve na cabeça das crianças. Ao se aproximarem de Nina, seus pais estão de mãos dadas. No dedo anelar da mão esquerda de Lara, o anel de brilhantes que ela tanto sonhara. Ao ser interrogada por Nina, Lara diz que ganhara aquele presente do seu marido, renovando os votos matrimoniais. Nina os abraça afetuosamente e suspira, quase soluçando, de satisfação.

Antes de se deitar, grata por aquela noite realmente feliz, Nina se recorda de seus sete anos, quando viu o estranho homem fantasiado de Papai Noel deitado de bruços no tapete, perto da árvore de natal. Aquele bilhete com sua caligrafia continha o pedido de ter sua família de volta, unida e feliz. Uma lágrima escorreu de suas pálpebras, depositando-se na maçã corada do seu rosto. Fechou os olhos e se lembrou das feições daquele Bom Velhinho que lhe concedera o melhor presente há cinquenta e três anos e que se perpetuara para sempre, em todos os natais.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

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Mesmo para quem é triste, o natal existe!
Um feliz natal a todos!!!

domingo, 15 de dezembro de 2013

De Sangue e Coração.








De Sangue e Coração.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Billy nasceu por mãos alheias. Foi expulso do ventre materno logo de cara. Demorou a respirar. De cabeça para baixo, seguro pelas mãos ágeis do médico, Billy não chorou. Após muitas tentativas, o ardume fora sentido junto ao primeiro ar que entrara em seus pulmões. Estertor. Gritos no lugar do choro. Após acalmar, Billy fora entregue à mãe. Inês virou-se para o lado oposto ao da criança. Recolheu as mãos, encolheu os ombros, apertou os olhos e enrugou a face. O médico insistiu, pediu a ela que abrisse os olhos para ver seu filho. Inês se encolheu ainda mais no leito hospitalar. O médico parou de insistir. Colocou o menino numa caminha própria e o encaminhou ao berçário para os primeiros cuidados após o parto.

Depois do descanso da mãe, Billy foi levado, pelas mãos de uma enfermeira, para receber a primeira amamentação no colo materno. Inês, ainda de olhos fechados, teve seu ombro tocado para que acordasse. Ao abrir os olhos e ver aquele menino nos braços da enfermeira, a mulher desesperou-se. Debateu-se no leito, virou o rosto, soltou gemidos estranhos. A enfermeira pediu à equipe para atendê-la com cuidados especiais e levou a criança novamente ao berçário para que se alimentasse de forma alternativa. Durante o parto, o pai com um amigo ainda permaneceu por algum tempo na sala de espera, mas após o nascimento, ele não se encontrara mais no hospital.

Na alta da mãe, o pai apareceu para buscá-la. O médico comunicou-lhe a situação da mulher e pediu sua colaboração para auxiliar a mãe enferma. Perguntaram a ele sobre o nome que escolhera para o filho. Um constrangimento pairou no ar. Ele não soube responder. A equipe de enfermagem, diante do mal-estar, sugeriu um nome. Disse que pelo tempo que o pequeno ficou no hospital, as enfermeiras o nomearam de Billy. O pai apenas balançou a cabeça, consentindo. Jayme, ao invés de pegar seu filho no colo, estava com uma espécie de cestinho de vime com alças no qual o menino foi transportado para sua casa. No cartório, sem a presença da mãe, Jayme registrou o menino, acatando o nome com o qual ele fora chamado no hospital: Billy da Conceição Maria. O pai invertera a ordem dos sobrenomes na certidão: da Conceição era o seu, enquanto Maria era o sobrenome de Inês.

Logo na chegada do bebê a sua casa, uma babá já o esperava na soleira da porta com um sorriso de ternura nos lábios. Inês, com semblante debilitado, precipitou-se à entrada de casa. Nesse desespero, quase empurrou a babá, caso ela mesma não tivesse a espontaneidade em abrir passagem. Jayme cumprimentou Leocádia com um aperto de mão e imediatamente entregou o cestinho de vime com o bebê enrolado num cobertorzinho surrado e já puído. Leocádia retirou Billy do cesto, levantando-o pelas axilas com as duas mãos e, sorrindo, colocou-o nos braços. Girando o corpo vagarosamente de um lado para o outro, embalou o bebê com uma canção de ninar. Billy não chorava. Apenas mantinha um silêncio desinteressado. Os olhinhos abertos que olhavam para tudo menos para o rosto de quem o segurava, fechou relaxadamente ao ritmo da musiquinha cantarolada. Jayme improvisara um bercinho, combinando sua confecção com um carpinteiro local, e o instalou no quartinho dos fundos reservado à Leocádia.

A babá levou o bebê para o seu quarto e depois foi à cozinha preparar a mamadeira de Billy. Ao tentar amamentá-lo, Billy simplesmente permanecera indiferente. Leocádia fez de tudo para fazer o menino se alimentar. Tudo em vão. Mesmo depois de muito tempo sem comer, Billy se manteve alheio à fome, não demonstrando nenhuma reação. Já preocupada com a situação, quase levando o bebê ao hospital para que se alimentasse à base de soro e de outros procedimentos invasivos, Leocádia lembrou-se que ainda deveria ter leite no peito. A babá havia perdido um filho há pouquíssimo tempo e, por causa disso, ainda deveria produzir leite.

Ela pegou Billy no colo, colocou discretamente o mamilo para fora da blusa, e sussurrou uma música pertinho do ouvido do menino. Enquanto isso, Leocádia encostou de leve o biquinho do peito nos lábios de Billy. Nem um minuto depois, como num passe de mágica, o menino puxou o suculento mamilo com a boquinha e iniciou a sucção. A babá ficou maravilhada. Billy mamou o suficiente. No final, o que era apenas um leve espasmo, Leocádia entendeu como um belo sorriso. Daí em diante, a babá o alimentava várias vezes ao dia com seu próprio leite. Seu leite aumentara com tanta fartura e encorpara de tal maneira que até Leocádia se surpreendeu com a sublime maternidade, uma maternidade de coração.

Com a sucessão dos meses, Inês foi se acostumando com a presença daquele “intruso”. Nunca oferecera os seios para dar-lhe de mamar, mas, vez ou outra, já ajudava Leocádia na troca das fraldas. Arriscava mexer em suas mãozinhas, ensaiava um beijo em sua testa, forçava-se para brincar com o menino. Logo depois, corria para seu quarto, cobria-se com os lençóis até a cabeça e de lá Inês não saía até o raiar do dia seguinte. Sempre que saía para o trabalho ou chegava em casa, Jayme repetia o ritual de beijar rapidamente a esposa, tocar os cabelinhos do filho com a ponta dos dedos e falar superficialmente com a babá, perguntando-lhe o que faltava de mantimentos para que ele pudesse comprar.

Inês e Jayme estavam planejando ter filhos. Apesar das inúmeras tentativas para engravidar, todas foram frustradas. Por haver muito amor e desejo, continuaram com o método natural, mas se aventuraram pelos artifícios da ciência. Os dois se submeteram a diversos tratamentos de fertilidade, também fracassados. Mesmo não sendo desenganada pelos médicos, Inês muito se entristeceu por se considerar estéril. Um dia, em plenas férias de verão, o casal alugou uma casinha à beira mar para que se reconciliassem com a beleza da vida e se desfizessem do pesado fardo da impossibilidade de ter filhos que há muito carregava nas costas.

Na fatalidade de uma manhã chuvosa, Jayme havia levado o molinete e um barquinho para pescar enquanto Inês ficara em casa se distraindo com artesanatos e decorações. Ao ouvir uma movimentação estranha seguida de um barulho alto no alpendre da entrada, Inês saiu para saber o que estava acontecendo. Ao abrir a porta, dois homens vestidos com andrajos, homens rudes, brutamontes, visivelmente embriagados, dominaram-na e a usaram como objeto sexual. Inês resistiu bravamente, mas sozinha nada pôde fazer contra a tortura do estupro. Quando Jayme voltou para casa, apavorou-se com a cena que se descortinara diante dos seus olhos. Jogou no chão os peixes que ostentava com orgulho e correu para socorrer sua mulher que, coberta de feridas e hematomas, encontrava-se nua e desmaiada no piso frio da sala.

Mesmo com todo cuidado e atenção do marido, Inês nunca se recuperou emocionalmente. E para abater ainda mais o casal já sucumbido pela tragédia, Inês descobriu que engravidara do agressor. A notícia abalara a já frágil configuração do matrimônio. A primeira opção foi pelo aborto. Jayme não podia admitir aquele destino macabro. Tentaram tanto ter filhos, para que sua mulher engravidasse logo num ato de violência sexual. Ficara inconsolável. Sentia-se vítima de uma poder maligno e passara a odiar o mundo. Jayme teve um momento que culpava Inês, acreditando que ela preferira engravidar de homens monstruosos em vez do seu próprio marido. Já não controlavam mais as imaginações absurdas que lhe corroíam a alma.

Depois de um luto mal resolvido, eles optaram, meio que sem vontade, que a gravidez fosse mantida. Mesmo sob a ameaça do destino catastrófico reservado para essa criança, seguiram o fluxo. O que Inês não sabia era que o sumiço misterioso de Jayme enquanto estava em trabalho de parto escondia uma verdade inimaginável. Quando o recém-nascido foi entregue à mãe, e ela recusou segurá-lo, a criança foi levada ao berçário para receber os primeiros cuidados médicos. Como Inês mergulhara numa depressão pós-parto, sofrendo sucessivas crises nervosas, os plantonistas se ocuparam mais dela do que da criança. Por causa de complicações renais, o filho do casal falecera. Antes que o registro do óbito fosse feito, Jayme entrou clandestinamente no berçário e trocou os bebês. O único menino que nascera na mesma data era o filho de uma mulher chamada Leocádia.

Jayme achava que seu desejo mórbido de abortar o fruto do estupro - mas de uma inocente criança que viria ao mundo como outra qualquer - foi o que causou a morte do bebê de Inês. Para se reconciliar com a paternidade, achou que trocar o bebê morto por outro saudável tiraria a culpa de seus ombros. Quis exorcizar o fantasma do filho ilegítimo, mas permanecera indiferente com o outro bebê, que não era seu, muito menos filho de sua mulher.

Por causa da saúde delicada de Inês, ela permaneceu por longas semanas internada. Já a pobre Leocádia, que já havia se recuperado do parto, recebera alta com a triste notícia de que seu filho havia morrido. Após um mês de resguardo, ofereceram-lhe uma proposta de emprego. Não teve ideia como souberam, mas desde que perdera seu filho, seu maior sonho era cuidar de algum bebê recém-nascido, que pudesse substituir o seu filho morto. Logo, Leocádia, que não era casada e não sabia o paradeiro do pai de seu filho, aceitou se mudar para a casa de Jayme e Inês, tornando-se babá do pequeno Billy.

Atormentado pela farsa, Jayme contou à mulher sobre o que havia feito. Contrariamente às expectativas, com a revelação do marido, Inês sentiu um alívio, como se tivesse se libertado de algum mal que a oprimia. Ficou mais corada, adquiriu vigor. Dirigiu-se ao quartinho de Leocádia, abraçou-a e beijou Billy na bochecha numa demonstração de afetividade como jamais havia demonstrado.

Ao conversar em particular com Jayme, orientou-o a fazer o que ele também já tinha em mente: devolver a criança à mãe verdadeira. Argumentou que o amor que Leocádia devotava ao pequeno Billy era algo tão extraordinário e maravilhoso que ela, inconscientemente, já deveria saber que só podia ser a mãe legítima do menino. Inês e Jayme combinaram um dia para contar a verdade a Leocádia. Quando disseram tudo àquela mulher, seus olhos se encheram de lágrimas. Eles só imploraram que ela não contasse à polícia sobre o crime cometido. Leocádia se agarrou ao pequeno Billy em prantos e o abraçou demoradamente.

Enquanto Jayme pediu para que ela guardasse segredo, Leocádia continuou vivendo no quartinho e criando o seu filho com um modesto salário que seus ex-patrões lhe davam. Com o passar do tempo, Jayme não suportou mais o peso, que só aumentava, do crime que cometera e se entregou à polícia. A partir daí, com a revelação pública da verdade, Leocádia voltou para sua antiga casinha, anulou a certidão de nascimento de Billy e o registrou com o nome de João Avellar Ribeiro Neto, o nome do seu finado pai, avô de Billy, agora João.

O pequeno João cresceu num lar recheado de amor e ternura. Tornou-se um homem honrado e um pai de família dedicado. Antes do nascimento de sua primeira filha, Leocádia falecera. Mas João nunca esquecera os ensinamentos e o carinho daquela mãe que, do coração, revelou os laços de sangue. Colocou em sua filha o nome dela e essa nova Leocádia a homenageou com a herança de ser também uma grande mulher.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

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terça-feira, 17 de setembro de 2013

Devastação: Uma Família.






Devastação: Uma Família.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Enquanto a mãe assistia à novela esparramada no sofá da sala, Samanta entrou sorrateiramente. Amarrou a blusinha na altura do umbigo, maquiou-se, colocou uma saia rodada abaixo da cintura encontrada no armário da mãe - que, de tão grande, arrastava no chão -, pôs um avental, a fralda descartável do seu irmãozinho recém-nascido na cabeça e se sacolejou freneticamente diante da TV.

Haidê, perante a cena que julgou extravagante, levantou-se com fúria, agarrou a filha pelo braço, deixando-lhe marcas vermelhas pela pressão dos dedos na pele branca, e, com o dedo em riste, ordenou que se limpasse, voltasse para seu quarto e que de lá não saísse até o término de sua novela. A menina, confusa, engoliu o choro que lhe fustigava os olhos, franziu o cenho, expressando uma leve agonia e se retirou. Ainda ouvindo algo que interpretou como um soluço baixinho, Haidê berrou da sala para que Samanta parasse imediatamente de soluçar, ameaçando ir até seu quarto lhe dar uma surra com o cinto do seu pai.

Afrânio, pai de Samanta, apareceu na sala com ares de tensão e pediu calma à mulher. Disse que não compreendia o incômodo que a filha lhe causava. Queixou-se dos maus-tratos dispensados à menina de apenas sete anos. Haidê, endereçando ao marido um olhar severo, comentou que apenas a protegia do mundo machista. Afirmou que não aceitava que Samanta fosse vista pelos vizinhos como desfrutável e oferecida. E ainda condenou a educação que Afrânio dava à filha, exigindo que ele não fosse permissivo para não fazer de Samanta uma potencial prostituta. O pai acatou as cobranças de Haidê, esfregou a toalhinha em seu rosto, enxugando-o por causa da barba que acabara de fazer. Voltou ao banheiro, arrumou a bagunça criada pelos asseios noturnos e se sentou ao lado da mulher no sofá, aconchegando-se.

Quando a novela acabou, Haidê se retirou em direção ao quarto de casal. Amamentou o pequeno Lucas, colocando-o em seguida para arrotar. Embalou o bebê, balbuciando uma canção de ninar e, carinhosamente o devolveu ao berço. Foi ao banheiro do quarto, tomou um banho demorado, pôs o pijama e foi se deitar, chamando o marido para ir dormir também. Afrânio permaneceu por mais algum tempo sentado no sofá, remoendo alguns pensamentos que insistiam em não abandoná-lo. Antes de ir se deitar, desviou o percurso, indo antes ao quarto da filha. Já estava com a luz apagada.

O pai abriu a porta que estava encostada, caminhou silenciosamente para não acordar Samanta, ajeitou-lhe os lençóis e lhe beijou a testa ao se certificar que os olhinhos da filha permaneciam fechados. Após Afrânio ter saído e encostado a porta novamente, Samanta abriu os olhos, acendeu a luz fraquinha do abajur, sentou-se - apoiando as costas no encosto da cama -, e deixou que uma lágrima escorresse até os lábios, ainda com um restinho de batom.

Aos quatorze anos, Samanta sonhava com a magia de uma grande feste de debutante. Haidê havia lhe prometido alugar um salão, contratar um buffet especial e confeccionar um belo vestidinho rosa para que ela flutuasse durante a valsa. Às vésperas de completar quinze anos, Samanta já tinha distribuído a maioria dos convites para uma quantidade seleta de convidados, quando seu pai a chamou para que conversassem no canto da sala. Afrânio, com certa dificuldade para se expressar, numa desconfortável gagueira e transpiração desagradável - afrouxando o colarinho com frequência para melhor deglutir o excesso de saliva -, comunicou à filha que a renda doméstica não fora suficiente para arcar com as despesas da festa. Os olhos da filha umedeceram, deixando que algumas gotinhas transbordassem.

As lágrimas escorregaram para as maçãs do rosto, depositando-se no queixo, para que, concluindo a jornada, caíssem no granito desbotado. O dia do seu aniversário foi um dia normal, como outro qualquer. Apenas à noite, quando foi à cozinha comer biscoitos e tomar um copo de leite, viu que a mesa estava posta. Havia uma toalhinha simples, uma garrafa de refrigerante, alguns copos, manteiga e pão. Avistou aquilo tudo com certa frustração. Quando já estava de saída, a mãe entrou com um bolinho e velas acesas, formando o número quinze. Samanta forçou a saída, tentando se desvencilhar da mãe, mas Haidê a segurou e a faz se sentar à mesa. Seu pai apareceu na cozinha com Lucas, já com sete anos no colo, batendo palmas e cantando parabéns.

Logo depois da cantoria, Haidê tirou as velinhas e, munindo-se de uma espátula, cortou a primeira fatia do bolo e a deu para Lucas. Em seguida ofereceu a segunda fatia para Afrânio. Cortou a terceira fatia, sentou-se e começou a comer. Samanta se virou para a mãe e, emburrada, perguntou se ela não a serviria. Haidê fulminou a filha com o olhar e disse que ela a criou saudável, com pés e mãos no lugar. Argumentou que por causa disso, a filha poderia muito bem cortar a própria fatia de bolo. Impulsionando o corpo com as pernas, Samanta arrastou a cadeira no chão, fazendo um barulho estridente, levantou-se com violência e foi para o quarto sem dizer nenhuma palavra.

Haidê olhou para Afrânio, apontou em direção à porta da cozinha, balançou a faquinha do bolo no alto, com o braço esticado, e vociferou aos quatro ventos o ódio que sentia daquela filha ingrata e desnaturada. Quase dois meses depois do seu aniversário de quinze anos, Lucas completou oito. Seis pais, satisfeitos com aquela data especial, cobriram o filho de mimos e presentes. Ao entardecer, vários convidados apareceram. Bexigas de gás coloridas enfeitavam a sala. Salgadinhos diversos, cachorros quentes, pipocas e refrigerantes eram ofertados aos convidados com entusiasmo. Samanta, revoltada, trancou-se em seu quarto e de lá só saiu quando o último convidado se despediu.

Quando estava com dezenove anos, Samanta se preparava para se mudar da casa dos pais. Inscreveu-se para uma faculdade rural, distante dali. Estudou muito, passou no vestibular e se matriculou no curso de veterinária. Como sempre fora uma aluna exemplar, juntou um dinheirinho com as aulas particulares que ela dava a seus colegas. Nunca contou aos seus pais sobre essa atividade que exerceu ao longo de três anos, temendo ser duramente reprimida, principalmente pela mãe. Seu pai a ajudara a escolher o apartamento, comprometendo-se a contribuir com o dinheiro do aluguel. Mas, aprendendo a não confiar nas promessas feitas por seus pais, tratou de se antecipar e arranjou um emprego para cuidar das crianças numa pequena escola da região para a qual se mudaria.

No dia em que arrumava suas bagagens, deixou em cima da cama, esticados para passá-los, os melhores vestidos, separando-os das roupas mais simples. Samanta foi à área de serviço buscar um ferro de passar roupas. Quando voltou ao quarto, encontrou seus vestidos rasgados. No exato instante em que visualizou tal aberração, levou a mão ao peito, sobressaltada, e deixou escapar um gemido em desabafo. Ao olhar para o canto do quarto, viu Lucas, já com quase doze anos, abaixado, prendendo o riso de deboche, segurando uma tesoura prateada de cabeleireiro. Inconformada, bufou de ódio e pulou em cima do irmão.

Já com a visão turva pela embriaguez da exaltação, desferiu um tapa no rosto de Lucas e lhe tomou a tesoura. Segurando o instrumento cortante com firmeza, avançou de encontro ao irmão, ameaçando-o de perfurá-lo. Lucas gritou pela mãe. Haidê surgiu rapidamente, impondo com agressividade que Samanta soltasse a tesoura, acusando-a de querer matar seu filhinho. Samanta se virou em direção â mãe, apertou mais o cabo da tesoura e, resistindo aos protestos da mãe, inclusive se alimentando deles, saltou, segurando a tesoura com o braço para o alto. Quando a filha chegou com o objeto pontiagudo perto do pescoço da mãe, Haidê a agarrou pelo pulso. Samanta a olhou nos olhos e logo relaxou os dedos com os quais pressionara a tesoura.

A palma de sua mão já apresentava vermelhidão de tanto ter comprimido o instrumento. Ela, instintivamente, deixou que a tesoura caísse no chão. Quando Haidê, contraindo a face, irascível, virou as costas da mão para lhe dar uma bofetada, foi a vez de Samanta segurar a mãe pelo pulso e impedir o golpe. Raivosa por ter sido desafiada, tentou golpeá-la com a outra mão. Novamente Samanta se defendeu. Quando a mãe tentou se esquivar das mãos que lhe apertavam cada vez mais seus pulsos, Samanta a soltou para acertar em cheio, com toda força, um tabefe na face esquerda da mãe. Haidê se curvou, levou a mão à face atingida, endireitou-se e arregalou os olhos, incrédula, em direção à filha. Samanta, raivosa, vomitou todas as palavras que há anos permaneceram entaladas em sua garganta:

- Você nunca me amou. Eu sempre fui maltratada por você. Mas fique sossegada, eu só não te odeio porque você não é digna do meu ódio. Meu pai, aquele banana sem atitude, a merece. Vocês se completam. São um casal detestável: a megera, a serpente e o ratinho débil com o qual se alimenta. Você devora tudo a sua volta. Você só não me destruiu porque eu sou mais forte. Tive coragem, sei me virar sozinha. E vou além: para o meu bem, é necessário que eu decida a minha própria vida. Antes só do que mal acompanhada, ensina o ditado famoso. Deem tudo para a peste do Lucas. Mimado, malcriado. Vocês ainda sofrerão muito nas mãos desse moleque.

Após a última frase, Samanta pegou uma pequena mala com documentos e pertences, girou a maçaneta, abriu a porta e deixou que batesse com violência às suas costas. Foi embora sem se despedir nem olhar para trás. Todos ficaram atônitos, sem reação, e não tentaram impedi-la de sair.

Durante os primeiros meses, Afrânio depositou dinheiro na conta da filha, ajudando-a com as despesas. Após esse período, alegando rombo no orçamento doméstico, cortou gastos desnecessários, incluindo Samanta. Nunca mais recebera um tostão furado. Mas, com os esforços pessoais, sobressaiu-se na faculdade e logo conciliou uma bolsa de pesquisa com o trabalho no colégio que arrumara antes de viajar, além de ter conquistado um estágio remunerado num haras local de puros-sangues. Conseguiu manter o aluguel do imóvel, montando-o do jeito que idealizara.

Mais tarde, considerando-a uma boa moça e pretendendo vender o apartamento, o proprietário combinou uma maneira de que ela adquirisse o imóvel com o suporte de uma financiadora, passando-o então para o seu nome. Somente nas primeiras férias de final de ano, Samanta visitou os seus pais. Mas a tensão naquela casa era tão insuportável que nunca mais voltou.

Fixou residência definitiva na cidade de seu curso universitário. Ao se formar, já estava com emprego garantido para exercer sua profissão no haras no qual estagiou. Abriu também uma clínica em sociedade com um colega. Logo se casaram e tiveram uma filhinha. Sua vida se estabeleceu, cresceu, multiplicou-se. Vivera feliz, apesar de que seus pais e seu irmão jamais lhe fizessem uma única visita.

Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

sábado, 14 de setembro de 2013

Amor Espelhado.







Amor Espelhado.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Sentada na beirada da cama, Leila avaliou o espelho retangular encostado na parede. Meses se passaram e ele ficara lá, jogado de lado. Era o objeto dos seus sonhos. Mandara fazer sob medida. Poucos dias antes daquele desaparecimento, sem que soubesse, estava no auge da felicidade. Queria se ver por inteira, abraçada ao seu amor, diariamente, quando se levantasse pelas manhãs, após as sempre memoráveis noites de sono ao lado de Lipe.

Os dois foram à vidraçaria, escolheram um espelho resistente, porém delicado, que refletisse a imagem com exatidão, sem que engordasse nem emagrecesse. No comprimento, cortaram vinte centímetros além da altura de Leila para que Lipe coubesse atrás, de pé, envolvendo-a com seus longos e afetuosos braços. De largura, um pouco mais de meio metro já seria de bom tamanho. Enquanto Lipe se encarregava de negociar as dimensões ideais com o vidraceiro, Leila foi a uma loja especializada em quadros e combinou que montassem no espelho uma moldura de jacarandá, entalhada, com um detalhe folheado a ouro. Era tudo o que ela mais queria.

Depois que a preparação foi concluída, levaram a estimada peça, com cuidado, para casa. Para que o espelho fosse colocado com segurança, precisava de uma armação apropriada. Na véspera do objeto de desejo ser colocado em seu devido lugar, Leila soube, por uma antiga amiga, que Lipe se acidentara numa autoestrada, bem próximo ao seu trabalho. O acidente que o vitimou fora fatal. Leila não deu nenhuma resposta à amiga. Permaneceu por alguns segundos, estática, segurando o fone enquanto a outra a chamava pelo nome em vão do outro lado da linha. Com os olhos fixos no nada, foi se encolhendo na cama. Suas mãos se abriram vagarosamente até que o fone escorregasse pelos seus dedos e batesse mudo, no carpete do quarto.

À noite, após o triste episódio, Leila se deitou no vazio. A falta de Lipe derrubara uma lágrima dos olhos da mulher que se recusava a olhar para a realidade. Por quase uma semana, ela não saiu da cama. Abandonou-se à sombra deixada pela ausência do amado. Antes, pés e mãos reprimidos, corpo tenso, deitada de lado, quase na posição fetal, manteve-se em silêncio absoluto, com olhos bem abertos, sem conciliar o sono. Depois, entregando-se à tontura cruel, foi ajeitando-se para o meio da cama até adormecer no lado de Lipe, ainda aquecido pelos fantasmas da falta que a perseguiam.

Naquele dia, pôs finalmente o espelho na parede. Com um vestido preto, longo, de gola canoa, tecido fino que Lipe a presenteara no primeiro ano do matrimônio, Leila a contemplou em frente ao espelho. Deixou por algum tempo seus cabelos presos, com apenas algumas mechas flutuando em liberdade, até soltá-los totalmente. Quase não conseguiu vê-la. Seus olhos, teimosamente, deslizaram-se para os vinte centímetros que celebravam a crueldade de um sumiço irreparável. As cortinas da janela, entreabertas, balançavam pela fresta de vento. Olhou para as finas alças que deixavam seus ombros desnudos e abaixou uma a uma até que as alças escorregassem por toda a extensão dos seus braços. Sem as tiras de pano que o sustentavam no corpo de Leila, o vestido desceu até cair embolado sobre seus pés.

A palidez e a magreza não eram defeito da superfície espelhada. O objeto dos sonhos transmitira a mais perfeita imagem. Mas agora, enegrecido pela saudade, Leila observava apenas o seu desamparo. Deu um passo para trás, dobrou os cotovelos às costas, e desprendeu o sutiã. Retirou suas alças e o arremessou à cesta de roupas esquecidas. Seus seios de boa proporção e bem delineados perderam a densidade. Sentia-os somente ao serem apalpados pelas fervorosas mãos de Lipe. Envolvia-os por completo até enrijecerem pelo calor erótico. Sem suas mãos, esmoreciam, perdendo a vitalidade e o frescor.

Leila levou o dedo indicador à boca e o umedeceu com a língua. Em movimento circular, suavemente, acariciou os mamilos. Soltou um gemido, em homenagem ao prazer perdido. Depois, levantou os seios e espalmou as costelas proeminentes. Deu um passo à frente e se desvencilhou da calcinha rendada vinda de um passado que ela resistia em recordar. Nesse instante, sentiu uma mão masculina separando suas pernas e tocando seus pelos pubianos. Um esgar de excitação crispou seus dedos sobre a mão do homem à altura do seu sexo. Instintivamente fechou os olhos. Era Lipe. Visualizou todos os detalhes daquele corpo amado. Entregou-se ao prazer. Os vinte centímetros se preencheram com beijos e tremores.

Ao abrir os olhos, não se sentiu só. O espelho continuou encostado na parede, fora do lugar, virado ao contrário. Leila esticou um dos braços para sentir Lipe, mas tocara nos lençóis amassados. Mas o calor do seu corpo não deixara sua cama. Uma força incontrolável a fez se jogar de bruços sobre o lado quente do amado. A ausência de Lipe não mais o apresentava no íntimo de Leila. Era sua presença indelével, pegadas sublimes do amor, que se ausentara de dentro daquela casa para viver no eterno abismo de sua alma.

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Conto escrito por Alex Azevedo Dias.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Brincando com Fogo.








Brincando com fogo.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Riscou um fósforo. O aroma das tábuas o fascinava. Curvou-se em reverência. A falta de luz chegara num bom momento. Já há algum tempo observava, pelo olho mágico, a movimentação da mudança. Sua porta quase toda comida por cupins dava um toque contraditório aos riquíssimos móveis que saíam do apartamento vizinho. Os moradores de frente encaixotavam seus pertences para levá-los à nova residência. Inúmeras caixas de papelão o tiravam do sério com frequência.

Os entendidos diziam que Osmar tinha fetiche por celulose. Mas ele negava tais afirmações. Afinal, os livros não lhe causavam tanta atração. Pelos móveis, tinha verdadeira adoração. Outros, talvez com menos conhecimento do assunto, insistiam em dizer que Osmar era piromaníaco. Ele odiava essa palavra. Não tinha instinto incendiário. O que o satisfazia mesmo eram os estalos da madeira retorcendo pelo fogo. Elementos naturalmente inflamáveis não lhe interessavam.

Combustíveis em geral não possuíam a menor graça. Não que fosse um protetor das plantinhas indefesas, mas muito lhe doía a mortandade dos vegetais. Não admitia que tantas árvores fossem derrubadas, florestas devastadas, desmatamentos a torto e a direito, tudo isso para melhor reconfortar a preguiçosa humanidade. Osmar não se sentia um compulsivo. Não gostava de queimar as coisas sem justa causa. Só queimava celulose. Ele não matava as árvores, apenas botava fogo no que já estava morto.

Ateava fogo aos cadáveres das pobres plantas, usadas para servir as donas de casa - verdadeiras assassinas. O cheiro da madeira, principalmente as maciças, inebriava Osmar. Detestava compensado - madeira moída e prensada. Não queimava compensados, apenas os levava para sua casinha de campo e os enterrava no quintal para que apodrecessem. Ele não resistia à fragrância celulósica. Nas artes plásticas, amava a natureza morta não pela pintura na tela, mas pelas madeiras que emolduram a maioria dos quadros.

Quando sua mãe bateu as botas, Osmar tentou de tudo para sepultá-la com a dignidade que merecia. Pesquisou a madeira que seria a mais indicada para o caixão de uma senhora ilustre. Ficou entre o cedro e a cerejeira. Mas, por ironia do destino, sua mãe chegara ao velório num caixão de plástico. O argumento dado, foi que o tal plástico era ecologicamente correto, feito de uma resina fibrosa extraída das cascas de coníferas. Osmar estremeceu. Ficou perplexo. Soltou um berro estridente, saiu desembestado do recinto e reapareceu com uma tocha acesa. Os convidados, em desespero, amontoaram-se para fugirem do órfão insano que ameaçava a todos com chamas.

Num átimo de loucura, Osmar sacudiu a tocha até formar uma circunferência incandescente. Depois, foi queimando as coroas de flores e as pétalas de rosa até que o fogo se espalhasse e atingisse o caixão da mãe. O velório se transformou num crematório antecipado. Foi preciso que os bombeiros fossem chamados para conter as chamas. O caos se instalou. Nada restou da mãe. Osmar ficara por algum tempo internado no hospício. Após a alta, foi morar na antiga residência da mãe e, desde então, só colocava fogo em pequenas tábuas, armários, escrivaninhas e alguns caixotes. Tudo isso em sua casinha de veraneio. Jamais fora visto queimando nada no condomínio de sua mãe.

Mas naquele dia, não resistiu à tanta oferta de madeira no corredor do seu andar. Durante a madrugada, na calada da noite, Osmar saiu de casa com querosene e uma caixinha de fósforos. O breu engolira todos os objetos. Ao primeiro passo, as luzes de emergência acendeu. Mas nem um minuto depois, apagaram-se. Tudo ficara novamente na escuridão. Osmar sentiu que tivera sorte, pois assim passaria despercebido conforme planejara. Despejou várias garrafas de querosene naquela madeira toda dando sopa. Deu um passo para trás e riscou o fósforo.

Curvou-se solenemente e, num peteleco, atirou o fósforo aceso em cima da madeira embebida em material comburente. Um clarão repentino, que sucedeu a uma leve explosão, lambeu o corredor por inteiro. Já com a pele rachando e borbulhando pelo calor excessivo, Osmar dera a última gargalhada, uma gargalhada fantasmagórica que ficara agarrada às paredes do prédio como a fuligem do carbono.

Ao amanhecer, Osmar se levantou assustado. Tivera um pesadelo tenebroso. Amava tacar fogo em celulose, mas há muito tempo não cometia tais insanidades pirotécnicas. Estranhou ter acordado todo ensopado. Os lençóis estavam empapados por um líquido amarelado e de odor insuportável.

Não realizara seus supostos impulsos incendiários, mas também não escapara da punição dos deuses. Estava deitado sobre sua urina fétida. Pelo menos, molhado e humilhado, comprovara o ditado dos seus avós sobre os perigos de brincar com fogo.

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Conto escrito por Alex Azevedo Dias.