quinta-feira, 4 de setembro de 2014
O Homem Que Não Falava Inglês.
O Homem Que Não Falava Inglês.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.
Seymour abriu a gavetinha, pegou a bandeira da nação querida e a desdobrou com muito esmero e patriotismo. Apesar de nunca ter considerado a combinação das cores azul e vermelha uma escolha estilosa, vestiu-se como manda o figurino da grande águia careca. Também não admirava muito as aves de rapina. Lamentava que fosse símbolo do seu país. Emplumados só empalhados. Só de pensar no longo alcance da carnívora visão de tal animal, suas pernas amoleciam, ficavam bambas, e, frequentemente, desmoronava. Por isso, afastou a imagem do bicho selvagem de sua memória, balançando a cabeça freneticamente para um lado e para o outro, e voltou a se produzir com a dignidade que a pátria americana merecia.
Desde bem novinho, seus pais o levavam para assistir aos desfiles cívicos na principal avenida do condado nova-iorquino do Bronx. Seu pai o erguia para que Seymour se sentasse em seus ombros. Suspenso no ar, como se flutuasse, sentia-se seguro pelos braços fortes paternos. Lá do alto, com convicção, permitia que a flâmula estadunidense tremulasse firme, entre os franzinos dedos, no topo do bracinho alegre bem esticado. Seymour segurava a bandeirinha com a mesma força com a qual se sentia protegido pelas mãos fortes do seu pai apertando suas canelas finas sobre o peito. Já alto o suficiente para visualizar a parada por cima, sem necessitar dos ombros do pai - apesar da saudade e do desamparo que sentia -, Seymour apressou-se para não chegar atrasado no imperdível 4 de julho. Desde bem cedo, a população entusiasmada já soltava rojões e foguetes, celebrando mais um ano da declaração da independência americana do império britânico.
Ansioso e eufórico, Seymour chegou com antecedência. Uma verdadeira muralha humana o recepcionou, margeando a avenida do evento. Abrindo caminho, Seymour procurou o espaço mais agradável possível para não perder nenhum detalhe do desfile. Os espectadores, espremidos mas disciplinados, não escondiam a expectativa, já, eles mesmos fazendo a festa com fantasias de ícones nacionais e muitas bandeiras. Quando olhou para o lado, devidamente acomodado no meio da multidão, viu no asfalto, atrás de um sujeito usando uma extravagante cartola de Lincoln, ima pequena bandeira brasileira sendo ignorada e severamente pisoteada. Após voltar a se interessar pelo início da parada e não mais se lembrar da cena que mobilizara sua atenção minutos antes, Seymour estampara novamente um sorriso de cabo a rabo em sua cara redonda - em nada comparável à magreza da infância -, balançando sua bela bandeira norte-americana.
Quando o desfile começou, os cidadãos patrióticos, antes entregues a um falatório exacerbado, calaram-se e iniciaram uma excitada sessão fotográfica. Seymour alegrou-se ao avistar a primeira alegoria simbolizando as 13 ex-colônias que conquistaram a independência, separando-se do domínio inglês. De repente, distraído pela exuberância da apresentação, Seymour sentiu que alguém cutucava suas costas com certa insistência. Ao virar, um mal súbito fez com que quase perdesse os sentidos. O sujeito de cartola do tio Sam segurava a bandeira brasileira, surrada e enlameada, perguntando se Seymour era seu proprietário.
Não sabendo o real motivo de tal interrogação, já que nunca questionara a respeito de sua nacionalidade nem exibisse um único traço do biótipo sul-americano, estranhou não ter compreendido nenhuma palavra dita pelo sujeito fantasiado com elegante gravata borboleta, cavanhaque postiço e sua mirabolante cartola. Aflito, gesticulou e tentou argumentar que aquela bandeira subdesenvolvida não lhe pertencia. Para aumentar seu espanto, o interlocutor também não entendeu o idioma usado por Seymour para se expressar. Parecia realmente que ambos falavam duas línguas diferentes, apesar de os dois serem cidadãos americanos. Logo, o falatório reiniciara. Seymour ficara ainda mais perplexo ao ter se dado conta de que todas as pessoas à sua volta falavam a mesma língua confusa e incompreensível - ou dialeto - que o Lincoln de araque também falava. Seymour não entendia nada nem se fazia entender. Quando percebeu, mais perplexo ainda, que não sabia falar inglês, absolutamente nada da língua anglo-saxã, desmaiou.
- Ei, cara. Tu tá bem? - Pronunciou-se um dos inúmeros que, aglomerados, acotovelavam-se para disputar o melhor lugar em meio aos curiosos para ver o homem caído em plena praça pública.
Mesmo relutando em abrir os olhos, pois ainda se sentia tonto e nauseado, ao ouvir aquelas palavras, Seymour se alegrou por estar curado, novamente compreendendo o idioma dos seus conterrâneos.
- E aí, camarada. Tu fala minha língua?
Sensibilizado por estar em sua pátria idiomática outra vez, Seymour se esforçou em se levantar, apoiando-se em seus cotovelos para ao menos suspender a cabeça do asfalto. Logo, observando a recuperação daquele homem, quatro dos curiosos se manifestaram e foram auxiliá-lo a se erguer dignamente. Emocionado, Seymour confirmou falar a mesma língua de todos, entoando seu verbo.
- Falo! Falo sim. Claro que falo.
- Pô, cara. Se você é um dos nossos, então o que tu faz com essa roupa ridícula vermelha e azul?
- Ué?! É da nossa pátria!
- Hi... Olha o cara, aí... Bateu a cabeça? Pô cara, acorda. Estamos atrasados.
Atordoado, mas sem tocar sobre o dilema das cores, Seymour coçou a cabeça descabelada e perguntou sobre outro assunto, o do suposto atraso: - Atrasados para quê? Para o nosso dever cívico?
- Claro! Nosso dever patriótico de torcer pela seleção.
- Seleção dos heróis da independência?
- Isso! Heróis da bola! Vamos passar pela Colômbia com uma enxurrada de gols e dribles fantásticos!
- Esperem um pouco! Do que vocês estão falando? Falamos a mesma língua, mas não falamos da mesma coisa. Hoje não é o feriado de 4 de julho?
- Opa! O cara tá bem situado no tempo! A pancada não afetou tanto a cachola dele. Sim. Hoje é dia 4 de julho e é feriado.
- Então o desfile já acabou?
- Que desfile cara? Tá maluco? Tá doidão? Foram essas cores de bosta que te subiram à cabeça. Põe a canarinha aí, pô! Sabe onde estamos? Tu está perdido no espaço? Estamos no Largo do Machado. Até o Maraca demora pacas.
Seymour apavorou-se. Seu semblante empalideceu. Teve a sensação de que já ouvira os nomes “canarinha”, “Largo do Machado”, Maraca” em algum lugar. Mas quando? Onde? Certamente nada tinha a ver com os EUA. Olhou para um lado. Olhou para o outro. As pessoas tinham um aspecto bem diferente da realidade norte-americana. Mas quando percebeu que aquela língua com a qual se sentira em casa, compreendendo e sendo compreendido não poderia ser o inglês, estarreceu-se quase que por completo. Ele estava falando português. Um português nativo. Um português cantado, assoviado como o dos pássaros e dos cariocas. Um português brasileiro, regional, do Rio de Janeiro, tão autêntico quanto cada nuance de cada cantinho desse gigante - mulato e inzoneiro - sul-americano. Estava no Brasil. Meu Deus! – Exclamou, balbuciando, sem ser ouvido pelos companheiros. Resolveu não questionar aquele absurdo delirante do qual tornara-se vítima. Embarcou no samba do crioulo doido e, já que não falava inglês mesmo, só o português, indagou como quem não quer nada: O que vai ter lá?
- Cara, tu não sabe? Pô, jogão da Alemanha contra a França pelas quartas-de-final da Copa.
- Amigo, desculpe a confusão, devo realmente ter batido a cabeça com força quando caí, mas hoje, 4 de julho, não deveria ser feriado aqui. 4 de julho é feriado só nos EUA, pela declaração da independência.
- Cara, tu vive em outro mundo mesmo, né não? Hoje, como tu sabe, tem jogo no Maraca. O prefeito do Rio decretou feriado municipal. E tem mais: Depois do jogo no Maraca, vamos ver o jogão do Brasil!! Brasiiilllll!! Brasil e Colômbia. Rumo ao Hexa! Vamos torcer pra seleção passar pra semi-final. Como o jogo do Brasil é lá no Castelão, em Fortaleza, vamos torcer no boteco do Manel, que é bem mais pertinho. Tu ta convidado, maluco. Vamos juntos? Mas tem que mudar de cores. Essa camisa vermelha e azul vai dar má sorte. Ôh, Raul! Pega a camisa do Neco aí pro camarada aqui. Acho que dá nele. O Neco não pôde vir.
Seymour pegou no ar a camisa lançada, toda embolada, pelo Raul. Tirou a que estava usando, deixando-a cair no meio-fio. Vestiu a canarinha número 10 com o nome de um tal de Neymar Júnior. Coube certinho. Vencido pelo cansaço e sem querer saber a verdade, se era realidade ou fantasia, partiu abraçado aos novos companheiros, com um copinho de cerveja fabricada nos EUA cada um. Bebericaram e comemoraram muito.
Entregue ao absurdo que passara a viver, aproveitou ao máximo, como jamais aproveitara, aquele feriado municipal no Rio de Janeiro, e em pleno Maracanã. O melhor 4 de julho da história de Seymour, da história americana. Ele ofereceu um brinde à América. E, como sempre disse o ditado patriótico: a América para os brasileiros! Ou será que não?
Escrito por Alex Azevedo Dias.
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