quinta-feira, 27 de março de 2014

A Segunda Estrela.






A Segunda Estrela.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

O sopro frio da manhã, sacudindo os ramos brutos de um pinheiro, mantinha imóvel a sombria peça de vestuário fincada no arame farpado. Ao longe, coturnos reluzentes de soldados batiam com desdém e destemor na terra seca e dura, levantando poeira e rasgando os trapos e fiapos de esperança de homens, mulheres e crianças. Com o corpo arranhado e imundo, Guttmann rastejava sobre pedregulhos como punição por pedir água e um pedaço de pão para sua mãe que agonizava em um cômodo úmido e mal iluminado.

A camisa listrada do seu uniforme fora arrancada com brutalidade e cravada no arame farpado como advertência aos indolentes e insubordinados. O peito rasgado de Guttmann permanecera exposto após as miseráveis ordens. Largado à própria sorte, ou receberia o unguento necessário do sol, ou seria vítima de infecção oportunista por malditas larvas das inúmeras lixeiras e todo tipo de podridão a céu aberto. No alojamento, durante a madrugada, seus companheiros de infortúnio se depararam com Guttmann suando frio e murmurando desacordado. Mesmo com escassos recursos, teve seus ferimentos desinfetados e cobertos por tiras de pano velho.

Antes do amanhecer, foram surpreendidos por um burburinho do lado de fora. Uma enorme fila só de mulheres havia se formado. As que resistiam a entrar na fila - as que, por enfermidade não se aguentavam em pé e as muito idosas - levavam chutes e pontapés, socos, tabefes e bofetões. Muitas morreram ali, estiradas inertes no chão. Um deles identificou a mãe de Guttmann. Por mais doente que estivesse, perfilou-se, seguindo estritamente as ordens dos soldados. Em silêncio, obedientes, elas foram levadas até uma câmara misteriosa na qual só se entrava em grandes grupos e da qual jamais se vira ninguém sair. Várias chaminés expeliam uma fumaça espessa e enegrecida. Um odor insuportável era exalado de lá de forma intermitente. Alguns acreditavam se tratar de um crematório - lugar de extermínio dos que eram julgados inválidos -, mas poucos tinham certeza dessa informação.

Pela manhã bem cedo, tiraram os curativos improvisados de Guttmann e, mesmo com dificuldades de se erguer, levantaram-no na marra, pois se os soldados o flagrassem naquelas condições, seu destino fatal já era previsto. Não contaram sobre sua mãe para poupá-lo um pouco, pois já quase sucumbia às dores físicas. Para que ele se deitasse, espalharam palhas secas no chão e as forraram com uma coberta fina e esgarçada. Evitavam, assim, que o já moribundo Guttmann fosse atacado por pulgas, carrapatos e percevejos, cada vez mais se amontoando nos colchões dos alojamentos.

Ao recobrar os sentidos, foi logo em direção ao alojamento feminino para ter notícias de sua mãe. Na metade do caminho, um punho cerrado explodiu em seu peito descamisado. A pancada o fez curvar-se. Mas logo se endireitou, engoliu a seco as primeiras lágrimas que teimavam em descer e levantou a cabeça, exibindo um semblante com o máximo de serenidade. O soldado lhe apontou uma pá encostada no tronco de uma árvore e mandou que cavasse algumas covas. O odor do monturo de corpos, entrando em putrefação, estava nauseando os vigilantes da SS. Então, incumbiram os que consideravam mais fortes para que abrissem grandes buracos nos quais metessem o maior número possível de mortos.

Guttmann cavou dia e noite, sem parar, até a exaustão. Não soube de sua mãe, nem muito menos tivera tempo de pensar nisso. Após três dias ininterruptos de trabalho árduo, fora concedida uma noite de descanso. Mesmo esgotado, não conseguiu dormir. Algumas dores não foram feitas para que se deságuem no sono profundo e refazedor, mas, ao contrário, para que excitem ainda mais a mente para que arregalem os olhos da consciência. Antes de entrar no alojamento, apoiou a pá no chão e debruçou-se em seu cabo com uma mão sobre a outra e o queixo sobre ambas. À luz do luar, avistou sua camisa listrada fincada no arame farpado. Ao olhar mais acima, observou uma estrela solitária. Notou a semelhança entre o bordado mal feito de seu uniforme, esfarrapado naquela cerca, e a pequena estrela cintilante.

O trabalho tosco daquele bordado, que marcava o peito triste e abafado dos seus companheiros de jornada, significava nada mais nada menos que a liberdade do seu povo. Sua camisa listrada, aquele pedaço de trapo destroçado no arame, ostentava uma estrela disforme, atada à desesperança de um campo morto. Mas a outra estrela, a brilhante, pairando acima de todas as cabeças, seja dos maus, seja dos bons, estava além do arame farpado. Estava nas alturas. Estava livre.

Olhou para os lados. Os soldados marchavam, realizando rondas noturnas. Faziam a vigília, não deixando escapar nenhum ângulo sequer de seus olhos de sicário. Qualquer movimento humano, suspeito ou insuspeito, os guardas cravejavam o infeliz sem culpa nem clemência. Matar era o mais disputado esporte deles. A iluminação em toda a extensão da cerca impedia qualquer ponto cego e garantia a visibilidade em amplo espectro. Uma ponta de esperança surgiu quando Guttmann se deu conta de algo inusitado. Estranhamente, talvez por causa da luz do luar em contraste com a luminosidade artificial do campo, ao lado de um poste, justamente na linha da estrelinha especial, uma pequena circunferência de terra ficara completamente mergulhada na sombra.

Um espaço mínimo, permitindo que seu corpo se encaixasse perfeitamente sem que fosse visto. Esgueirando-se, deslocou-se até à sombra, ajoelhou-se e se pôs a cavar. Não sabia como ainda tinha tanta força. Tantos dias sem dormir, abrindo covas e jogando corpos quase podres naqueles buracos precários e vergonhosos. Não precisava descansar. Sentia-se em plena forma para cavar mais um buraco, dessa vez com as próprias mãos. Precisava alcançar a estrela, não por cima – seu verdadeiro lugar -, mas por baixo, junto a minhocas e vermes. Buraco que o elevaria à categoria de homem livre, testemunhado pelo sorriso protetor da lua e alçado pelo brilho da verdade estelar. Guttmann cavou naquela noite o que nenhum homem poderia cavar em semanas sem cessar.

Em meio à terra, pedaços de unhas, de pele, de carne, de todas as vidas que se esvaíram pelo chão frio em sangue quente. Seu corpo franzino e subnutrido se espremeu como gato fugido pelo exíguo vão cavado por baixo da cerca. Cambaleando, com o arame farpado às suas costas, deixado-o para trás, Guttmann esfregou os olhos, cego pela potência do mundo inteiro a ser reencontrado. Abriu os braços e deixou que as lágrimas, outrora contidas, descessem e lavassem seu rosto enlameado pela tristeza. Pura embriaguez dos sentidos que só a sensação de liberdade pôde trazer. Olhou para cima. Ela estava lá. Sua estrela solitária o conduziria à paz de espírito e lhe devolveria o mundo inteiro.

Ao dar o primeiro passo em direção à nova vida, um impacto em suas costas lhe tirou o inocente sorriso dos lábios e o fez cair de peito no chão. Mesmo gradativamente perdendo a vivacidade do olhar, ainda conseguiu avistar a estrela radiante e esboçar um sorriso junto a um sangue espesso e ao último suspiro. Ainda com a arma em punho, o soldado virou-se novamente para o interior do campo. Guardou a arma e se afastou do arame farpado. A banalidade de mais uma vida tirada em tais circunstâncias não fora capaz de deter a energia libertária daquele homem sofrido.

Como um sopro de alegria, após atravessar por debaixo da discórdia, Guttmann alçou voo, subindo cada vez mais alto em direção à estrela. Quando chegou tão alto quanto ela, iluminado pela luz do luar, não mais quis subir. Abraçou-a com fervor e dela não mais soltou. Daquele dia em diante, o céu sombrio do campo de concentração enfeitara-se com o cintilar de mais uma estrela, mais uma luz, mais uma pequenina esperança.

Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

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