segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A Psicanálise e a Filosofia Moderna: Lendo Lacan com Spinoza.


Para Spinoza, a falta é uma ilusão da fraqueza. Há os encontros que são potencialmente afetados e afetantes, os corpos afetam e são afetados por outros, produzindo os signos e marcas de uma consciência submetida aos influxos externos. Mas também produzindo os embates de forças, as relações de poder sobre as quais tanto fala Foucault, permitindo a constituição das potências singulares.

A ética spinozista, é uma ética da potência, no sentido de uma transvaloração das qualidades de bem e de mal. Para Spinoza, a alegria, que é uma potencialização do agir, de uma persistência do ente em se implicar na existência, atualiza o campo de forças que consiste na natureza (conatus), com um incansável movimento para continuar se efetuando na força de existir. Essa alegria é a passagem da dependência do outro, para a ação. Um devir das paixões passivas, mesmo aumentando momentaneamente a potência do existir, mas efêmera pela passividade com os influxos exteriores, transformando-as em ações em que não há diminuição da potência, mas uma pluralidade de modos de existência desdobradas.

Não há julgamento de uma moral transcendente da vida em Spinoza. Há uma constituição plural e imanente, em que há causa sui, e não causa externa em relação a cada modo de força vital se produzindo e se reinventando para sustentar a potência singular da existência. A falta em Spinoza consiste num conhecimento inadequado, pois associa a potência à passividade do negativo, mantendo uma submissão do ser ao se constituir numa causalidade externa. Não há julgamento de moral em Spinoza. Não há conceitos de maior e menor, bem e mal, certo e errado, pois não há em Spinoza verdades que se dialetizam, criando progressos históricos.

Há acontecimentos no encontro, recursos singulares da produção existencial, uma infinita possibilidade em que o ser melhora a força do existir, diminuindo ou aumentando a potência vital. Para Aristóteles, a imperfeição dos seres, faz com que se movimentem apenas para atingirem a perfeição, até extinguirem o movimento.

Talvez Aristóteles, nesse pensamento teleonômico, de progresso, chamado de enteléquia* implique a ideia de falta, que consiste apenas num viés negativo. Ou seja, Aristóteles pensa numa fixidez das identidades, no sentido de que a função de um botão de rosa é o processo do desabrochar. Então, o movimento já está presente na falta, indicando a imperfeição dos seres, buscando a perfeição para extinguir o movimento.

Entendo, partindo dessa concepção, que a ideia da falta consiste numa visão negativa, pois o movimento é vital apenas visando se extinguir ao alcançar a perfeição em que o ser está implicado em sua essência. Porém, a concepção de falta em Lacan, como desejo faltante, causado pela falta é estrutural, pois há sempre um furo no saber, não coincidindo com a perspectiva aristotélica de enteléquia.

Para Spinoza, a imperfeição do ser já é a sua verdadeira perfeição, afirmando uma tentativa de implicação do ser numa vontade de potência de um processo criativo ininterrupto, sem uma finalidade, nem uma origem como causada e fundamentada pela falta. O desejo maquínico deleuziano coincide com essa positivação do corpo intensivo, priorizando a produção da diferença sem a instância da representação e sem a ontologia da falta tão cara a Lacan.

Seguir um modelo transcendente da falta é negar a vida, é negar a força vital da pluralidade de produções de diferenças e modos de existências. O percurso é a afirmação do revir no devir, afirmar o princípio da diferença, do terceiro incluído, e não o princípio da identidade do desejo como causação de um encontro faltoso. Os encontros não são marcados pelo negativo da falta, mas são possibilidades genéticas e potenciais do devir da alteridade, internamente em cada ser, afirmando o retorno da diferença, o retorno da vontade de potência, que é a afirmação das nuances de todos os momentos da vida.

Entendo que a atitude filosófica deleuziana, consiste em desdobrar esses encontros intensivos de que falava Spinoza, jamais negando o procedimento dos agenciamentos, ou seja, sem a condenação ontológica da falta como condição binária do desejo, em que o terceiro está excluído. A função do terceiro, como significante Nome-do-Pai de que falava Lacan, cortando a dualidade do gozo materno e inaugurando o sujeito no mundo simbólico, é coerente apenas com uma autonomia da função significante, colocando o real como negativo, como limite do simbólico, como impossibilidade de simbolização.

O terceiro para Lacan, não inclui o terceiro das ressonâncias que produziriam a multiplicidade da diferença. Mas, ao contrário, essa função de terceiro lacaniana, inaugura sim a dimensão binária da identidade de um sujeito do inconsciente fixado nos encontros condenados à falta e à primazia do simbólico. Em Lacan, os encontros intensivos, numa economia da afetação que potencializa as produções subjetivas, estão foracluídas, priorizando o simbólico, a falta de um significante que dê conta do impossível de simbolizar da sexualidade, negando a diferença e reforçando o princípio binário de identidade aristotélico.

Para Spinoza, Deus é uma substância no sentido em que necessariamente implica em sua existência como causa ativa. E como causa ativa, não está constrangido às forças externas. Para a teologia, Deus transcende a natureza, sendo criador desta. Em Spinoza, Deus não cria nada, pois é a própria natureza como produtora. O homem, constituído no embate de forças e nos encontros de corpos, ou é paixão ou ação.

Como sua essência não implica necessariamente na existência, ou está submetido à servidão dos influxos externos, ou se esforça por realizar sua natureza, em sua liberdade. Esse esforço de existir, ou potência de agir, como persistência em efetuar sua natureza, internamente, é o que Nietzsche chama de vontade de potência. Uma metáfora utilizada por Cláudio Ulpiano para designar o modo de constituição humana como confrontado com forças externas, constrangendo-o e impedindo sua liberdade, é do oceano.

Ele diz que as ondas formadas no oceano é feita pela força de ventos contrários ao movimento do oceano. Então, o oceano encontra-se submetido ao processo de servidão às forças externas que correspondem aos ventos, não realizando sua natureza, impossibilitado de ser livre. Spinoza descreve três gêneros do conhecimento, em escalas infinitas da natureza. A primeira consiste à ignorância, em que as paixões externas em que o homem se constitui, fazem-no permanecer na passividade. O segundo gênero, o da razão, é o primeiro momento que o homem tenta compreender essas forças externas. Mas é no terceiro gênero, o da ciência intuitiva, que o homem, em sua potência singular, passa a produzir diferenças, realizando sua natureza, efetuando sua liberdade. É nesse gênero da intuição, que o pensamento humano produz livremente, num movimento produtivo incansável, como devir.

Spinoza associa natureza à "ótica do eterno", talvez de onde partiu Nietzsche para conceituar seu eterno retorno e a noção de além-homem. Na ótica do eterno, há uma transvaloração em que as qualidades de bem e de mal estão dissolvidas. Na ótica do eterno, não há afetação nem um potencial de afetar, as qualidades apriorísticas que são os pré-julgamentos são destituídas, pois se não há temporalidade, as categorias dos predicados e dos adjetivos que são constrangimentos, como resultados das forças externas, já não servem mais para nada.

Spinoza deixa bem claro que esse ultrapassar a própria constituição humana, confrontada pelas forças externas e sem uma causa ativa, como a divina, faz com que seja praticamente impossível realizar seu existir, mas não impossibilita seu movimento contínuo e perseverante para se implicar na existência, que Spinoza chama de "conatus".

A Ética spinozista também influenciou Foucault, no sentido do terceiro gênero de conhecimento, que é o intuitivo, quando Foucault fala em embate de forças e relações de poder, na tentativa de produção de potências singulares. Acompanhando o pensamento de Ulpiano, entendo que Deleuze associou esse conceito spinozista de natureza como um campo de forças, no sentido das potencialidades que não cessam de fazer agenciamentos e produzir diferenças. Esse campo de forças tem horror às significações e às representações.

Spinoza entende "consciência" como um sistema de signos e marcas deixadas pelos encontros com os influxos externos, jamais indo além disso, por isso ele entende que uma ética da "consciência", é uma ética da ignorância, da superstição. Quando Deleuze fala sobre o constrangimento das significações é isso, pois os signos fazem reduzir o homem a um resultado do externo, como efeito, e não como produtor, como causa ativa.

Por isso Deleuze odeia as representações para pensar a subjetividade como um agenciamento no campo de forças, como produtividade, como diferença. Para Deleuze, esse inconsciente marcado como um sistema simbólico é uma tolice das superstições humanas. Para Deleuze, o inconsciente é puro fluxo produtivo, operando nesse campo de forças, ou seja, maquínico.

A discussão spinozista não tem nada haver com a questão de se Deus existe ou não. Isso não importa nem um pouco. O movimento para efetuar a existência é a produção das potências singulares. Devemos ler Spinoza para não pré-julgar sua obra, reduzindo-a às ideias inadequadas da existência ou não de Deus. Acreditar que o pensamento spinozista vai pelo viés dos questionamentos da existência de Deus, é negá-lo, ou seja, é tolice, como o próprio Spinoza afirma no primeiro gênero de conhecimento, que consiste numa alienação à exterioridade.

Spinoza não afirma uma natureza humana. Spinoza fala que a natureza é uma causa ativa, uma causa sui, no sentido de produzir uma heterogeneidade como campo de forças, "por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou isto, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existência" (SPINOZA, Ética). Não há natureza humana em Spinoza. O homem que se constitui alienado aos influxos externos e nesse embate de forças, como diz Foucault, o homem vai produzindo sua singularidade durante esse processo, sem uma finalidade a priori, apenas se movimentando nesse embate de forças. Durante essa produção potencial, o homem devém sem jamais se completar. Spinoza é radicalmente contrário ao pensamento do princípio de identidade aristotélico.

Aristóteles dizia que só há movimento porque há imperfeição, e o movimento visa apenas se completar, ficando imóvel. Em Spinoza, oposto a Aristóteles, não há esse tipo de natureza como finalidade, mas sim como campo de forças, há uma produção ininterrupta, um fluxo contínuo, incansável de produção de um sujeito como processo ininterrupto, uma obra em construção, sem jamais chegar ao fim.

Lacan, em sua retórica característica, pega emprestada a ética do bem-pensar de Spinoza e conceitua sua ética do bem-dizer. Qual é a relação? O pensamento para Spinoza está no terceiro gênero do conhecimento, aquele em que o homem produz diferenças no mundo, utilizando suas construções internas, sem os engodos inadequados da consciência, formada apenas pelas marcas e signos limitados e reduzidos das forças externas.

A consciência para Spinoza é essa marca das paixões, signo da limitação do homem que só atinge determinada alegria, escravizado, dependente, dos influxos externos. Na ética do bem pensar, depois reformulada por Lacan como ética do bem dizer, Spinoza fala de um processo de transformação das paixões passivas, do passional, à ação, produzindo internamente diferenças como atos, exercendo sua liberdade, como um movimento trágico, porém alegre. Esse movimento de produção de diferença, é a realização das potências singulares.

Lacan, em sua ética do bem dizer, que ele mesmo declara que é a ética do Spinoza, afirma que é o movimento de escuta do sujeito, em que ele está implicado no que diz, e é um processo que não é sem angústia, mas é uma angústia "alegre", no sentido do sujeito estar se constituindo em análise, transformando uma fala vazia em atos de fala, em discursividades singulares.

Nietzsche fala da diferença entre o niilista e o herói trágico. O niilista é aquele que cai no abismo chorando. O herói trágico é aquele que ao ser convocado a desejar na alteridade, lança-se de maneira determinante, porém livre, para realizar sua força interior, caindo no abismo dançando, alegre. Essa queda no abismo, dançando, do herói trágico, não faz lembrar as injunções do inconsciente que levam o sujeito a repetir a queda no abismo?

Para Freud, em "os chistes e sua relação com o inconsciente", o humor está associado à dimensão trágica, pois o humor "não é resignado, mas rebelde". É com o humor que o sujeito é lançado no abismo das desidealizações, da castração originária, do sem sentido de um destino sem referências, dissolvido, mas de forma alegre, reconhecendo que sua trajetória é sem fundo, mas, como Nietzsche descreve o herói trágico, desliza para o abismo dançando. Como no exemplo chistoso que Freud descreve, sobre um condenado à morte, que ao se encaminhar para a execução no patíbulo numa segunda-feira, enuncia um dito espirituoso, destituindo numa "ilusão", todavia digna, a supremacia de seu algoz, ao dizer que "não havia modo melhor para começar uma semana!". Em sua biografia, Freud declara as influências de Spinoza e de Nietzsche no percurso da invenção da psicanálise.

* "entelecheia, combinação das palavras gregas enteles (completo) - telos (extremidade, finalidade, conclusão) - echein (para ter)".


Texto escrito por Alex Azevedo Dias.

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