Intrigante par de sapatos! Noite e dia uma testemunha ocular observava-o passeando pelas ruas da cidade ou deslizando suavemente pelo calçadão da praia. Às vezes era pego em flagrante trocando carícias e beijinhos com tamancos e plataformas recém saídos da fôrma. Paparazzis maldosos e inconvenientes capturavam imagens burlescas do célebre par de sapatos em cenas inconfessáveis e picantes. Em um dos flagras, sua irascível acompanhante desceu do salto para tirar satisfação com um dos repórteres indiscretos.
Para início de conversa, é prudente esclarecer que esse par de sapatos tinha uma reputação muito duvidosa. Foi fabricado em couro sintético legítimo e costurado à mão por estivadores, com linhas diretamente extraídas dos pavios de dinamite. A última pedida em sofisticação tecnológica. Quando chegou à vitrine da sapataria de moda unissex, sapateou sob a luminária dos artigos de luxo e se pôs a ritualizar a dança do acasalamento com as tímidas sandálias, arrepiando até as pantufas menos felpudas.
Não durou muito
O homem, como um bom negociante, vendeu os sapatos para um brechó por uma quantia razoável. Com o dinheiro, tomou um delicioso chazinho no boteco da esquina.
O aventureiro par de calçados, que voltou a não calçar mais ninguém, agora estava enfiado numa caixa de papelão com diversos outros pares, estocado nos fundos do brechó. Não demorou muito e o elenco de uma companhia teatral adquiriu a caixa de papelão inteira, contendo uma infinidade de pares de sapatos. Ao chegar ao camarim, um dos atores percebeu que virou proprietário de um sapato sem o par. Seria inútil com um dos pés faltando. O outro pé, que ficou sem par, foi derrubado numa certa altura do transporte em que o frete trepidou. Ficou lá, esquecido, no meio de uma rua de terra socada, sem asfalto. Caiu no trecho mais esburacado do percurso.
No palco, pela criatividade dos artistas, acabou servindo para encenar o espetáculo de um Saci Pererê que morava num grande centro urbano, precisando usar calçado, peça única, para não cortar o pé nos lixões das requintadas sociedades.
Enquanto isso, no ponto em que o outro pé ficou abandonado, um mendigo que passava por ali, com um dos pés descalço e com o outro pé embrulhado magistralmente num saco plástico de mercado, estampando as promoções do ano passado, comemorou ter achado aquela jóia rara. Sentou-se num tijolo quebrado e experimentou se caberia no pé que estava sem o saco plástico. Assim como a cinderela, encaixe perfeito.
Logo que o mendigo calçou o sapato, imediatamente se lembrou que havia guardado o bilhete de uma rifa no seu único bolso que não estava furado. Uma caridosa moça, sensibilizada por sua condição subumana, como não dispunha de dinheiro no momento, doou-lhe uma rifa que iria contemplar o ganhador com uma viagem para os EUA. Esperançoso, esfregando o seu amuleto de sorte, seu sapato novo, como uma garrafinha com um gênio que lhe concederia desejos, ouviu ao longe, no alto falante da cidade, o anúncio do número ganhador do prêmio. Conferiu sua cartela e constatou ser o novo contemplado com uma viagem para os EUA.
Tirou o passaporte, visto de turista, e embarcou para o exterior com seu sapato novo num pé e com a sacola de mercado amarrada no outro. Chegando ao firme solo do Tio Sam, encaminharam-no à solenidade em homenagem ao Brasil, com diversos artistas e intelectuais convidados. As festividades estavam agendadas para se realizarem em um zoológico local, com exemplares típicos da fauna e flora brasileiras.
Por essas coincidências que só o destino permite, o elenco da companhia teatral era um dos convidados e já estava se preparando para apresentar sua peça com sucesso de público no Brasil: O Saci Pererê do Aterro Sanitário. O mendigo, considerado um ilustre representante do povo brasileiro, tendo lugar reservado na primeira fileira, já estava posicionado com uma cachacinha enrolada num saco de papel pardo, para que ninguém visse do que se tratava a tal bebida - recurso indispensável na moral norte-americana.
Quando o sapato no pé do mendigo e seu par saltitante no pé do Saci sentiram a presença um do outro, como num reencontro telepático que só os irmãos gêmeos separados no berço sentem, ganharam vida própria e rapidamente seguiram um em direção ao outro. Foi um reboliço só. Ambos, o mendigo e o Saci, deram um nó em vez de um laço nos cadarços, então foi impossível que os sapatos conseguissem se desvencilhar dos seus respectivos pés. Sendo assim, alçaram voo sem se preocuparem com os corpos de cabeça para baixo, pendurados, que bateram em retiradas, agarrados nos seus sapatos. Até os marrecos e patas do Tio Sam, as Sã-Patas, típicos animais da fauna norte-americana, cantaram alegremente pelo reencontro emocionado.
No exato instante em que o par de sapatos se reuniu, ficaram tão felizes que sequer se lembraram que estavam carregando dois passageiros dependurados. O impacto do amor no reencontro foi tão violento, que as cabeças do mendigo e do Saci se chocaram testa com testa até se soltarem e caírem no lago dos cisnes. O governo americano, comovido com o amor dos sapatos brasileiros, assou um bolo solado e ofereceu aos seus convidados.
A partir daí, os sapatos receberam todas as honrarias dispensadas para um nativo brasileiro. Como o idioma oficial do Brasil é o castelhano, o par de sapatos foi carinhosamente empalhado e exposto no Museu Zapata, em memória ao revolucionário mexicano. Mesmo com resistências e pressões de alguns reacionários e xenófobos dos Estados Unidos, passando um abaixo assinado para os sapatos serem deportados, conseguiram um visto de permanência e lá ficaram no Museu Zapata, contemplados como espécime raro.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
3 comentários:
Oi Alex, tudo bem. O seu conto Sapatando é muito interessante; parabéns, você escreve muito bem. E como sou estudante de psicologia vou adorar ler seus escritos sobre psicanálise. Um abraço.
Oi, Sheila. Agradeço a leitura. Abraços.
Belo conto!!
Adorei!
Postar um comentário