quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A Amante
















Na fatídica noite de 29 de novembro, Joana chegou à sua casa mais tarde do que de costume. Saiu do trabalho no qual estava recém empregada, como gerente numa loja de conveniências, e resolveu dar uma volta na orla para respirar ar puro, arejar as ideias, colocá-las no devido lugar. Ainda na loja, após chegar ao seu conhecimento uma dolorosa acusação, planejou uma decisiva e derradeira conversa com seu marido, o Dr. Fernando, renomado legista da capital, a ponto de pensar em divórcio.

Ao caminho de casa, na volta do seu passeio na orla, Joana comprou uma garrafa de vinho tinto nacional cabernet sauvignon, coisa que nunca teve o hábito de fazer. Porém, infelizmente, aquela seria uma ocasião especial para apreciar uma boa bebida – justificou mentalmente Joana.

Chegou ao alpendre na entrada de casa. Com o olhar perdido, fitou por alguns instantes o caramanchão florido. Limpou os pés no capacho. Abriu o portão da saleta principal. Averiguou o ambiente e constatou que todas as luzes estavam apagadas, sinal que seu marido ainda não havia chegado do Instituto Médico Legal em que trabalhava há quase duas décadas. Sabia que ele não dormia cedo, pois permanecia por longas horas na sala de visitas, assistindo a filmes repetidos de seu acervo pessoal. Então, provavelmente não estava dormindo na suíte do casal no segundo andar, o quarto de núpcias.

Sentou-se no sofá da sala e retirou a rolha de cortiça da garrafa com seu ainda virgem abridor de inox, servindo-se do vinho numa elegante taça de cristal.

Degustou, de forma apática, o bouquet aromático do vinho, certificando-se sobre a safra no rótulo que informava ser a sua procedência de uma tradicional vinícola, com parreiras selecionadas, da região de Bento Gonçalves.

Logo após saborear o primeiro gole de vinho, apanhou a carteira de cigarros em sua bolsa e escolheu um que tinha uma mancha amarronzada de tabaco no filtro. Levou-o ao lado esquerdo da boca, e o prendeu na beirada dos lábios, tragando com vontade. Uma tragada longa e objetiva que provocou uma leve tontura, quase um êxtase, pelo tempo que ficou com o ar preso.

Ainda sob o efeito da tontura, tirou o cigarro da boca, apoiado entre os dedos médio e o indicador da mão direita e fitou, com ausente curiosidade, de olhos semi cerrados, o formato de sua boca impresso pelo batom vermelho bordeaux na extremidade do cigarro. Depositou as cinzas no cinzeiro de mármore que ganhou como parte de seu enxoval, e repousando o cigarro com o cotovelo apoiado no braço de veludo do sofá, pressionou a têmpora com o polegar, massageando a testa, e começou a refletir em voz alta:

- Não posso acreditar em situação mais estapafúrdia!

- Fernando não tem outra mulher! Impossível! Sempre me doei ao máximo para sustentar nosso casamento.

- Sou uma esposa dedicada, aplicada, com presteza doméstica.

- Não posso me imaginar sendo trocada, corneada, traída!

E deixou-se escorregar pelo assento do sofá, até ajoelhar-se no chão. Cabeça largada e comprimida entre as coxas suadas. Mãos espalmadas no carpete, revelando um doce desespero. O cigarro, reduzido a guimba, já há muito jazia ao lado, caído no azulejo de granito.

Um barulho suave foi ouvido na maçaneta do portão. Joana estremeceu e se ergueu prontamente. Fernando acendeu a luz da sala e se assustou com a presença lívida de Joana em pé à porta.

- O que foi, querida? Por que está com essa aparência cadavérica?

- Você me contará tudo, Fernando! Exatamente tudo e com detalhes!

- Tudo o quê? O que está acontecendo? Estou ficando preocupado.

- Não se faça de sonso, Fernando! Mas quanta audácia! Você é teatral, sabia?

Fernando ficou paralisado, atônito, diante daquele corpo gesticulando, lânguido, sob efeito de uma garrafa inteira de vinho, que agora estava vazia sobre a mesinha de centro da sala.

- Não entendo, querida. Por favor, sente-se, você não está nada bem.

- Tira esses dedos pegajosos de mim, seu asqueroso! E não me dirija mais a palavra! Não me chame de “querida”!

- Querida, por piedade, acalme-se.

- Cale-se!

- Levarei você ao Dr. Mendes, colega psiquiatra que lhe receitará um ansiolítico, amanhã pela manhã.

- Que cheiro é esse que sinto sair de seu jaleco? Perfume de vagabunda, não é?

- É éter e clorofórmio. Sou legista, preciso extrair e conservar alguns tecidos orgânicos para pesquisas médicas. Faço autópsias, esqueceu?

- Não me faça de boba, Fernando. Não me faça de boba! Durante toda nossa vida de casados eu esperei pacientemente você chegar, praticamente de madrugada todo santo dia, pois você alegava ter que trabalhar até tarde, e eu sempre guardando um lugar quentinho ao meu lado na cama, e com a comida pronta. E você arranja outra?

- Amor, definitivamente você não está bem. Por que bebeu uma garrafa inteira de vinho?

- Pare! Pare! Pare! Você me enerva! O que o senhor estava fazendo com aquela mulher dentro do seu carro?

- Ahm?! Mulher?

- A Martinha flagrou você em delito, Fernando. Ligou para meu celular justamente quando eu estava atendendo um cliente e me contou tudo! Nem tive mais condições de continuar atendendo, precisei pedir para uma colega realizar a compra do cliente no meu lugar.

- Não tem mulher nenhuma! Você está louca! Amanhã cedo telefonarei para o Dr. Mendes medicá-la urgentemente. Vou para o quarto! Fique aí até se recuperar. Quando melhorar, apague a luz da sala e suba para se deitar.

Antes de Fernando virar as costas para subir ao quarto, Joana sacou um revólver e apontou para a testa do marido, ameaçando-o.

- Se você der mais um passo, eu atiro!

- Meu Deus! Onde você arrumou essa arma? Está fora do seu juízo. Jamais alguém em sã consciência permitiria que portasse uma arma. Vamos, dê-me! Passe para cá essa arma, ficará mais segura comigo.

Joana estendeu a mão com a arma, fingindo entregá-la ao marido, mas com um movimento brusco, engatilhou-a, apertou o gatilho e disparou um tiro certeiro. O projétil atravessou o corpo gelatinoso, rompendo o silêncio da tensão, partiu a garrafa de vinho vazia ao meio e se alojou no tubo de imagem da televisão de plasma, 45 polegadas.

(...)

Eram 11 horas de uma manhã de dezembro, o verão ainda não havia iniciado. Deitado numa bandeja fria, quase à temperatura de criogenia, apesar do calor intenso nas ruas do Rio de Janeiro, aquele corpo resfriado explodia invisível numa pulsação frenética de coração enjaulado. Sua fisionomia pálida e congelada, não podia apresentar as marcas típicas do rubor apaixonado. Sua pele fria estava sendo tocada.

Mas o humor se alterou repentinamente ao perceber que seu amado cortava em linha longitudinal o ventre de outra mulher. O sangue que lhe faltava, fervia de ódio. Queria revivê-la para matá-la, pois aquele bisturi estava ocupado em outro corpo que não o seu. Apropriação indébita de seu amor. Não poderia permitir que tal dolorosa traição se repetisse. Precisava fazer algo. Mas o corpo não respondia à revolta de seus sentimentos. Estava entregue às circunstâncias. Só o tempo com seu andar maroto, debochando das forças internas da criatura humana, poderia responder. Na veracidade do ritmo enfadonho e miserável da sucessão do tempo, apenas as cicatrizes de uma pobre amante condenada à solidão, persistirão.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.


10 comentários:

Maria Clara disse...

Muito interessante o teor doentio dos personagens, gostei muito amor...
bjos

♥♥NaNnA BeZeRrA♥♥ disse...

Alex,
fquei o tempo todo alí, olhando, como uma expectadora ávida pela conclusão dos fatos. Ou uma fofoqueira debruçada na janela alheia. Não sei bem...
prendeu minha atenção!
adorei!
beijos

Leonardo Pradella dos Santos disse...

Foi tenso hein...
direto tbm, que mulher cruel...
é isso que dá essa mentalidade católico cristã monogâmica hehehe
(poderia facilitar o processo de comentar)

Urbano disse...

Cara... vc tem problemas! rsrsrs

Só te peço uma coisa: quando esse conto virar filme, não deixa o Tim Burton dirigir não, ok? ele vai colocar tudo azul, Johnny Depp vai ser um marido afetado...

Prefira o David Fincher ou o Aronofsky! Grande abs!!

Truco ladrão disse...

hsaus
mto boom seu texto cara
prende beem o leitor o texto haha
;D

parabéns ae

http://trucoladrao.blogspot.com
http://trucoladrao.blogspot.com


TRUCO LADRÃO ! ♣ ♥ ♠ ♦

Anônimo disse...

Tô me acabando de rir com o comentário do Urbano! Explica pra ele que nós os psicólogos, de um modo geral, TEMOS PROBLEMAS... rsrsrs

Mórbido e doentio, mas interessante! O contexto de ilusão deu um quê a mais e deixou a coisa meio com cara de filme mesmo. Diretor? Tim Burton! Por que não?!

Bj, Alex!

Alex Azevedo Dias disse...

Cada um dá um jeito em seus problemas. Uns viram psicólogos, outros... hehehe. Obrigado por lerem o meu conto. Um grande abraço, amigos!

Alex Azevedo Dias disse...

Mas eu interpretei esse "Cara... vc tem problemas! rsrsrs" do Urbano, como um elogio, não?! Eu me enganei? Abraços...

FabioZen disse...

Muito boa a narrativa e se vê que você tem facilidade descritiva,o que deixa o texto constante e prende o leitor. Parabens e se der espia
BANQUETE COM MENDIGOS.

http://oficinamissoes.blogspot.com/2009/10/banquete-com-mendigos.html

Fábio Zen

Ankhmaya disse...

Alex,
E eu que pensei que o cara iria se confessar, falar que tinha uma amante, que aliás, ela estava ali e eles tinham planejado a morte da esposa...

Mas tudo bem, ela morreu, de um jeito ou outro. ;)

Abraços
www.folhetimonline.com.br