Em minhas reminiscências, durante a leitura de um poema, deparei-me com uma voluptuosa e singela cena da peça teatral “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, do autor Bosco Brasil. Esta peça foi magistralmente adaptada para o cinema com o título “Tempos de Paz”, dirigido por Daniel Filho, com o ator Dan Stulbach como protagonista.
Reportando-me ao filme, recordei-me da intensa vibração e autêntica emoção expressas em uma das falas do imigrante Clausewitz, personagem interpretado pelo Dan. Clause viajou da Polônia para o Brasil, durante os “tempos de paz”, no final da segunda grande guerra. O Brasil vivia a expectativa de novas diretrizes para a liberação da imigração, filtrando a entrada e a saída pela vigilância da polícia política. Apenas com a obtenção de um salvo-conduto, que um imigrante poderia permanecer em terras brasileiras, e não ser automaticamente preso e deportado.
Arrasado pela triste pintura do holocausto, que tingiu a arte européia com uma mancha de sangue tão penetrante que se fixou na alma artística, Clause, um ex-ator apaixonado pelos palcos, mas impossibilitado de encenar a vida na sua língua materna, viaja para o Brasil em busca de recomeçar numa outra língua. Língua exótica, lusófona, da brandura infantil, da primitiva harmonia silvícola, do sibilar de uivos e ventos libertos do trágico grilhão do genocídio nazista.
Chegando ao território brasileiro, enfrenta a resistência de um país marcado por outro tipo de devastação, o de um Estado totalitário, torturado, pela ditadura varguista.
Clause, acreditando no recomeço como agricultor, interrogado pela falta de calos em suas mãos, apostava na recriação de uma vida amargurada pela guerra, mas sempre dedicada às artes cênicas, a mexer com os sentimentos mais recônditos de uma platéia ávida pela negação da dor.
Talvez Clause sustentasse a convicção no lema nacional que em terras tupiniquins, “em se plantando, tudo dá”. Acreditava que a terra brasileira, falada, cantada, amada em português, derramaria sua seiva encantada nos brotos da esperança, fazendo crescer uma próspera vegetação para alimentar os desesperançosos sobreviventes de uma guerra falada
Uma das partes mais belas do filme é quando Clause, com a inocência cristalina de sua crença, e com a farpa transformadora da arte, confessa que foi movido pela ideia de que a língua portuguesa é a língua com a qual os pássaros cantam e as flores nascem. Língua com a qual o cheiro ímpar de uma terra oprimida, regada pela chuva fértil, é traduzido, acariciando a audição.
Clause negava a possibilidade de ferir ou ser ferido com a língua portuguesa. Uma língua com a qual não se poderia pensar, sentir, nem falar da guerra. Pois somente uma língua feita pela pena branca da paz.
O que poderia resultar em melancólica desilusão, por saber que a morte é um impulso inerente ao homem, e não ao seu idioma, para convencer que faria o rígido e insensível interrogador da alfândega chorar, Clause convoca as potências afetivas que só as artes possibilitam, e encena uma belíssima declamação poética.
O interrogador chora. Todavia, sabendo que a história contada era “falsa”, fictícia, carecendo de fatos reais, questiona Clause com veemência. Clausewitz afirma então, que sua encenação, embora não apontasse para algo que aconteceu de fato, também não era irreal. Era Teatro!
Percebendo que o teatro foi capaz de emocionar um dos homens mais frios e embotados, redescobre a função do ator, tendo a prova crucial que as potências vitais da arte não morreram junto com a devastação da língua materna, que sempre morre para ressuscitar.
Foi essa lágrima que escorreu da frieza de um rosto congelado de um ex-torturador, do interrogador da alfândega, que pôde germinar a agricultura tão almejada pelo Clause. A condição para que a lágrima brotasse e nutrisse a terra, era tão somente a função do teatro. Função de afetar, amar, emocionar. Uma vibração intensiva, não marcada pela linearidade estéril da razão, pois desenhada nas silhuetas e meandros da explosão eloqüente dos afetos inomináveis.
Clause enfim descobre que o verdadeiro agricultor é o ator, em sua função de emocionar, fertilizando, semeando e colhendo os frutos em qualquer língua falada, mesmo num trágico pós-guerra, nos “tempos de paz”.
Texto escrito por Alex Azevedo.
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