Quando eu ainda trabalhava na Pestalozzi, na região oceânica de Niterói, ao dirigir em horário turbulento, em que todos saem do trabalho e das escolas agitados, ávidos por chegarem aos seus “lares, doces lares”, parava num sinal fatídico, um dos mais movimentados e engarrafados, e, contraditoriamente, desfrutava de uma das mais paradisíacas paisagens da praia de São Francisco.
Invariavelmente, um cidadão de aparência caprichada, com a barba bem feita, cabelos cortados na moda, aproveitava-se do congestionamento para entregar, de carro em carro, um bilhete contendo algumas palavras.
Antes mesmo de ter o cuidado de ler (mesmo porque, na maioria das vezes nem me dava ao trabalho), imaginava se tratar de mais um vendedor ambulante, oferecendo balas, contando estorinhas tristes para sensibilizar os estressados motoristas, pedindo donativos às instituições de caridade. Vejo com estranheza tais iniciativas, pois com os motoristas naquele estado de humor, a única coisa que poderiam receber em troca, é um coice categórico de cavalo pangaré.
Mas aquele cidadão, bem afeiçoado, entregando bilhetes, ou colando-os nos vidros, em dias chuvosos, dos carros lacrados pelo ar condicionado, tinha algo de inusitado.
Li então os dizeres do bilhete, e me dei conta que havia uma única frase: “Preciso de emprego.”
Acredito, que, caso alguém se desse ao trabalho de ler aquela única frase, com os ânimos a flor da pele de um dia exaustivo, enfrentando aquele engarrafamento até suas casas para o merecido descanso, ou para mais uma jornada, agora de trabalho doméstico, responderia com desdém, ou faria um comentário jocoso, ou mandaria uma daquelas preciosidades: “Como o Brasil é miserável! Agora o povo pede emprego nos sinais! Onde iremos parar?”
Enfim, não importa, os comentários não criariam nenhuma mudança real, mas algo naquele cidadão foi mudando aos poucos.
Acompanhei sua trajetória por meses, sempre lá no carro, de vidros fechados, lendo os bilhetinhos, sempre os mesmos, lamentando, e nada fazendo a respeito para ajudá-lo. E, assim, sucessivamente, ia se repetindo.
Sua fisionomia foi aos poucos se embrutecendo. Cabelos desgrenhados. Barba cada vez maior, destratada, emaranhada e suja. De um elegante trabalhador desempregado, vencendo seu orgulho e, sem humilhar, pedindo emprego até com certa classe, começou a esfarrapar, alterando seu aspecto para uma face gélida, resignada e endurecida. Já nada mais pedia. Apenas caminhava por entre os carros.
Ontem, já não mais trabalhando na Pestalozzi, sem carro, andando a pé, vi o tal cidadão passando pelo meio fio de uma larga avenida, maltrapilho, esfarrapado, mais barbudo e sujo do que nunca. Já não mais pedia, apenas procurava algo de comer no lixo.
Descobriu, enfim, sua silenciosa identidade pelas ruas desse Brasil, o de mendigo.
Mendigo – Amém, eu digo! – Nem digo...
escrito por Alex Azevedo
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