quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CaRaPiRa


Carapira é uma cidade que não tem lados. O dentro está fora e o fora nem dentro está. As ruas não têm calçadas. Os pedestres passam num asfalto letrado, e os carros; são discursos enevoados. Esse asfalto é usado apenas durante as ligeiras e embreagadas incursões da vida noturna.

Geralmente, sem regras e hierarquias, quando os sonhos inquietos, trabalhosos sonos, alfinetam a visão das gramáticas, amarrotam-se as bordas da fronha, onde as cabecinhas repousam com os olhos bem abertos. As ondas sonoras são o único meio energético que impulsiona o transporte dessa cidade. Cada passageiro se acomoda no veículo nomeado pelo fabricante como "palavra".

E até mesmo os coletivos, chamados de "frases", trafegam pelas vias da arte arterial. Tanto os particulares como os coletivos, variando de acordo com a condução, são inconfundíveis, mas confunde quem deles serve e faz sinal. A velocidade desses veículos depende do ritmo, cadência e compasso das canções entoadas nos meandros do amor.

As pausas das ondas sonoras, quando melodia se desenvolve, são o combustível do motor das palavras, circulando em direção sempre tortuosa ao destino incerto disparado pela ignição.

Na maioria das vezes, o destino esperado na partida, não é encontrado, impossível, permanece amolecido. Eles mudam de lugar em volúpias desconcertantes. Os que são observados antes do veículo-palavra começar seu movimento, já não mais existe. Durante a passagem pelas lacunas, uma melodia, combustível errante, sustenta-se.

Os habitantes dessa cidade não têm relógio, só têm pulso, o que resta. Pois o tempo deles não é contado. Às vezes não há noite, às vezes não há dia. O tempo está em consonância com a dança esvoaçante das palavras que cambaleiam. E as letras? Essas brincalhonas! Alteram suas posições, criando novos sentidos para o movimento dos veículos. Letras ondulantes, nos fonemas musicais e musicados.

O significado das palavras, mesmo com incansáveis travessuras das letrinhas, crianças arteiras, não está nelas como se fosse uma
imutável realidade. O significado das palavras está no percurso que elas realizam, embaladas pelo som do sentimento. Pois o que move esses veículos-palavras, como já foi falado, é o que não pode nunca parar de falar.

Ondas sonoras, os afetos que pulsam, saltitantes, latejantes. E que por pulsarem, não formam nem se transformam em outras palavras. Sem essas ondas circulares e vibrantes, impossíveis de sentido, pois é só sentir, as palavras perdem o seu ritmo, descolorem, envergam em pontas afiadas cravadas no obscuro, viram puras superfícies redondas, no lar soterradas e no ar, esquecidas.

O que não tem sem sentido em si, as vias pelas quais movimentam-se as palavras. Sons, desordens, ordens, ondas em dissimétricas avenidas, corredores abismados, palcos inusitados.

A vida em Carapira, não é um mar de rosas, acidentes acontecem. E na colisão entre as palavras em seus volantes desdobrados e divididos, por um desejo negado ou por força estranha que escapa, faz nascer, desse choque das vias eróticas na gramática, uma terceira palavra desamparada e órfã.

Essa palavra nascida pelo encontro vocálico com o rasgão semântico dos veículos desvairados, sem rumo, deve ser cuidada, desejada, para que o vocabulário da vida de Carapira não entre em extinção. E mesmo que Carapira se esvaia em lágrimas, é só por essas mesmas lágrimas que as palavras escorrem nas vias da emoção, combustíveis fluídicos num movimento que jamais cessará.

texto escrito por Alex Azevedo.

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