Um raio cortou a paisagem enegrecida por uma densa miragem. Gritos virulentos e vociferações das trovoadas, marcam o regresso da matéria ao ventre da terra mãe. Aristides, deitado em sua cama, entrou novamente em contato com o medo perdido em sua infância.
Lembrou da época em que sua mãe dizia que os trovões sinalizavam a ira de seu pai, falecido antes mesmo de seu nascimento. Sua mãe quase não falava desse pai morto. Ele só retornava ao gozo da vida, quando sua mãe, sem saber a quem recorrer para educar Aristides, ensinando-lhe boas maneiras, evocava o fantasma do pai.
Vindo em auxílio do chamado materno, apaziguava a angústia de lhe faltar algo como mãe, afastando a idéia de que não havia mais um pai, pois estava desamparada. Para Aristides, era como se o pai trabalhasse num lugar muito distante, tendo um emprego cansativo, que o ocupava integralmente, fazendo-o se estressar com frequência. Mas suas viagens duravam dias, às vezes semanas eternas.
Acontecia também que voltasse repentinamente, causando surpresa. Algumas vezes prolongava a temporada em casa, deixando sua presença pelos assovios dos ventos e vibrações das trovoadas no alicerce instável da casa. Aristides temia as trovoadas, pois sabia que seu pai voltara para tirar satisfação sobre seus erros mais íntimos.
Ele ficava estático, em êxtase, vulnerável. Mas esse temor também tinha outro lado, não menos devastador, pois só nessas condições que Aristides sente seu pai mais vivo do que nunca, doando seu amor.
Certa vez, estremecendo em sua cama, suando frio, teve intensos arrepios. O trepidar do corpo em movimentos ondulatórios e espasmódicos o consumia. Relutava contra a sensação de que a ira de seu pai batia à porta com tanta veemência, sem clemência, que a única barreira existente para conter a nefasta presença, a porta, fronteira do desconhecido, poderia ser derrubada. A ameaça, inominável, sem esse anteparo frágil, teria a crueldade de uma invasão sem um suplício marginal.
O pavor da tirania de seu pai se debatia à porta de sua casa. Esse fantasma, como toda criatura, teve sua criadora, pois foi produzido pela aflição da perda. O fantasma evocado no discurso de sua mãe, atravessou o moribundo corpo de Aristides, com dores cortantes, assim como os trovões rasgavam os céus de uma noite chuvosa.
A mãe, depois que a noite acabou, chegou ao seu quarto, e perplexa com a cena grotesca que se desenrolava diante de si, em desespero que seu filho sucumbisse à desgraça, foi em direção à janela, tentar abri-la. Diante de uma bela manhã de sol, com um cintilante céu azul, deixou que a balsâmica aragem depositasse seu sorriso no semblante angustiado de seu filho, entregue a um sono atormentado.
Aristides, de súbito, desperta. A imagem que se formou em seu campo de visão, foi mais onírica do que em seu próprio sonho. Aquela luz bruxuleante que incidiu em seu rosto, no ato da abertura da janela, por sua mãe, conseguiu fazê-lo acordar.
Mas ao descerrar suas pesadas pálpebras, observou que estava encarcerado num quarto úmido, escuro, e sem janelas nem portas. Não havia saída nem entrada. Estava encaixotado num cômodo vazio. Já não mais podia ouvir os trompetes e as cornetas da natureza. Os trovões revoltados, que anunciavam a presença do seu pai, silenciaram-se.
Não havia som, tudo ficou inaudível, inapreensível, opaco. O ar estava rarefeito, não existia nenhum canal, nenhuma passagem que sua esperança pudesse criar, como miragem. Sua respiração ficou cada vez mais escassa, impossível. O corpo de Aristides já não mais estremecia, não mais reverberava pela presença trovejante de seu pai.
Aristides estava plácido, perene. Não ouvia, não via, não falava. As marcas de seu pai desapareceram, e com elas, Aristides perdeu seu nome, virou uma matéria inerte.
Como um raio que corta a paisagem enegrecida por uma densa miragem, Aristides regressa ao ventre da terra mãe.
escrito por Alex Azevedo
Um comentário:
Curiosa a forma como aquilo que é desconhecido pode assustar... Aristides não conhecera o pai, mas tem medo dele pelas impressões que a mãe lhe passou!
Você retratou esse sentimento perfeitamente, Alex! Mais um belo exemplo do que as entrelinhas podem dizer muito, doutor!
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