Ninfo Girassol
Nas labaredas de sua fiel discórdia, Ninfo matutava. Passava horas, dias, meses, com o corpo largado, cabeça pendida e repousada sobre o ombro direito, braços lânguidos e noturnos depositados sobre o espaldar de uma cadeira de balanço.
Quem de fora, ao longe ou há pouca distância o via, nenhuma vida era captada de suas lívidas e amarelecidas faces. Parecia uma escultura decadente. Em sua catatonia, Ninfo permanecia lá, imóvel, paralisado... Nem um fiapo de músculo era contraído. Todos os tipos de insetos usavam seus membros hirsutos como trampolim para ganharem impulsos em seus vôos desafiadores ou preparando táticas para que seus alimentos fossem atraídos com maior liberdade.
Do seu olhar cristalizado e estático, uma fina luminosidade cortava os ventos castigados por uivos de lamúrias. Ninfo estava condenado a maquinar. A turbulência da vida agora reduzida ao invisível, sem que os fenômenos rompessem a crueldade dos olhinhos curiosos dos transeuntes. Ninfo pensava ininterruptamente, desbotado, desvairado, a mente girando, tumultuada, incandescente, consumido pela fogueira das reminiscências.
Como tantos pensamentos podiam vagar naquela mente, com aquele corpo sentado, jogado, sem nem ao menos mexer o diafragma para respirar? Um corpo morto, inerte, mas ainda assim, vivo?
Anos se passaram, os vizinhos, os pedestres esporádicos e curiosos que por ali passaram e com tanta insistência tentavam trocar algumas palavras com Ninfo, mas que apenas eram monólogos desesperados, começaram a perder o interesse, até o absoluto isolamento assolar o ambiente em que jazia o corpo vivo de Ninfo.
Houve uma época na qual os habitantes do local desistiram de tentar tocar, sacodir, empurrar o corpo de Ninfo, na esperança de que reagisse, respondesse, manifestasse algum sopro de vida. Na verdade, as pessoas sentiam a ferida em suas vaidades por não terem a capacidade realizada de suas virtudes curandeiras, de ressuscitarem Ninfo. Todos achavam, cada um por si, que só suas palavras mágicas, de pessoas predestinadas e missionárias, serviriam como bálsamos salvadores que despertaria Ninfo de sua síndrome de Lázaro. Mas Ninfo continuava lá, sem nenhuma ação visível, apenas seus pensamentos pulsavam.
Sob a ação resoluta do tempo, a figura de Ninfo foi incorporada à paisagem local. Por algum poder daqueles que a natureza não explica, Ninfo foi visualizado pela apaixonada religiosidade do povo, como uma entidade mística, emanando vibrações esotéricas, pela crendice desamparada de fiéis romeiros. Eles se encatavam quando em suas romarias e procissões, vislumbravam aquele ser coisificado agarrado à sua cadeira de balanço.
Assim como a Santa que chora, composta pela imaginação aflitiva e carente dos devotos, Ninfo foi associado a uma estatueta santificada de carne humana. Milagre!
Formaram-se filas gigantescas, pessoas vindas das mais longínquas regiões. Forasteiros fervorosos, curiosos desavisados, todos queriam ter a oportunidade de que a graça divina concedesse cinco minutos com aquela estatueta humana, investido com um poder místico conferido pelo reino dos céus.
As pessoas gritavam, caiam em prantos enroscadas nas pernas de Ninfo e clamavam pela salvação. A multidão que se agregava ao redor de Ninfo, pedindo graças e misericórdias, era tamanha, que até a polícia foi acionada pelo governo federal para coibir possíveis balbúrdias. Muitos forasteiros e ciganos que ali chegavam, instalavam-se nos arredores com suas animadas farândolas, constituindo comércios e movimentando o capital.
A polícia passou a intervir, dispersando os desordeiros, pois a agitação do povo, em busca de graças divinas, ameaçava a pacificação dominante das auréolas políticas. Logo, os forasteiros formaram povoados e aldeias, dominaram a economia local e reivindicaram melhores salários para os operários. O governo, apavorado, sob a ameaça de perder a autoridade e hegemonia, baixou um decreto, isolando o corpo de Ninfo, objeto de adoração. De sagrado, Ninfo foi tombado pelo patrimônio cultural da república.
Temendo a agitação religiosa que afetava a economia do governo, Ninfo foi desmistificado pelo Estado laico, que rapidamente o batizou com uma plaquinha de cobre, informando que aquela estatueta humana representa um revolucionário da história de fundação da cidade, um mártir, que contribuiu para sua independência.
De entidade mística, Ninfo passou para ponto turístico. Como a mente da maioria só funciona movida pelo sobrenatural, na esperança de receber graças e de ser vítima de milagres e mistérios do desconhecido, e como ninguém tem tempo para saber sobre sua própria história, então Ninfo foi logo esquecido.
Virou uma mancha solitária numa paisagem mofada e esverdeada. Os musgos e as teias de aranha cobriram todos os espaços do corpo de Ninfo. Os pássaros em sua cabeça, fizeram mansões em forma de ninho. As aldeias e os povoados foram desmanchados, pois não havia mais interesse para que as instalações do povo ali se demorassem. Todos partiram e o único vestígio deixado, foi um Ninfo santo que ficou tombado pela falta de memória.
As estações do ano transcorriam furiosamente, o tempo devorador consumia as gerações que se sucediam, alterando claramente a paisagem. O único elemento constante que permanecia imóvel, compondo a marcação do tempo desalmado, era a figura hirsuta e rígida de Ninfo.
As teias e os musgos caiam combalidos pela força dos ventos, os filhotes dos pássaros nasceram esfomeados, com seus biquinhos abertos, e os ninhos se desfizeram da cabeça de Ninfo, mas logo retornavam para aquele corpo que tão docilmente e passivo os acolhia, em outras primaveras.
Ninfo estava abandonado pelo povo sedento de compaixão e amor a si. Em sua cadeira de balanço, cabeça pendida para o lado, repousando sobre o ombro direito, com seus braços lânguidos e depositados no espaldar, Ninfo jazia vivo, inerte, pulsando apenas seus invisíveis pensamentos.
Foi quando, de repente, num estalo em paroxismo, viu as sementes de girassol em seu pensamento. Deu um salto, desenferrujando as juntas, e abandonou aquela posição imóvel que por décadas manteve sem pestanejar. Ninfo entrou em casa, pegou um saquinho plástico na gaveta da cômoda, deslocou-se até o jardim. Lá, encontrou uma caixa de papelão, colocando-a no braço de sua cadeira, e fez alguns buraquinhos com uma espátula. Depois, "plantou" as sementes na caixa e exclamou com satisfação: "É a flor que virará para o Sol!"
Assim, depois de regar a caixa de papelão, voltou a se sentar na sua cadeira de balanço, apertou um botão imaginário e foi assistir à sua "televisão". Retornou a sua antiga posição imóvel. Não movia nem um músculo. Em sua cabeça, um único pensamento... esperar os girassóis crescerem em direção ao Sol, da tela de sua "televisão". Com o pescoço dobrado, repousando a cabeça no ombro direito, um fino raio de sol brilhava em sua envelhecida pele cor de musgo.
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Lágrimas de Vidro
A ventania anuncia a tempestade. A vidraça colonial, pela qual me entrego absorto à paisagem bucólica, tamborila com as primeiras gotas de chuva. Resisto em abrir a janela. Prefiro mantê-la trancada. Assim evito que a água escorra pelo meu rosto adormecido.
Com as mãos apoiadas no vidro, encosto a testa na janela, observando o embaçar de minha respiração tardia. Vejo algumas aves tentando encontrar abrigo e proteção, contra as gotas de chuva que engrossam a passos largos. Caminho na contra mão do tempo, tropeçando nas ondas que me levam a margens negadas.
Mesmo dentro de casa, longe do alcance das nuvens que desmancham e desabam seu suor sobre a suave superfície do gramado no jardim, estou exposto a minha devastação exterior. Ásperas gotículas brotam de meus poros fósseis, esmaecidos, hidratando uma pele enrugada e quebradiça.
As rugas não foram desenhadas como resultado final de uma longa vida, mas pelas dobras da ausência de tempo. São rugas fabricadas para escoarem as lágrimas numa estranha e sinuosa face que não me pertence, mas que apenas identifico a semelhança com outro que nunca fui, diante do espelho.
O céu chora com espasmos, contorce em risos gélidos, mas essas lágrimas não podem me tocar. Meu contato com esse mundo cruel e vibrante, é impenetrável. Só pelos relâmpagos que posso imaginar, nos vidros de meus olhos, sempre através da janela fechada.
A água que escorre do lado de fora, na janela, coincide com a mesma trilha ressecada que belisca minhas pálpebras taciturnas. Por que a janela deixa rolar a sua chuva, enquanto meus olhos continuam latentes, vazios, secos?
Encosto meus olhos na vidraça, e a lágrima que rola lá fora, é a mesma que rola em meu rosto transparente. Meu rosto é aquela janela! Deslizo meus dedos no vidro chuvoso, e não sinto sua textura. É liso e gelado. Fico atônito e começo a implorar ao anjo demoníaco que envidraçou o meu rosto, que o enquadrou no vidro inanimado.
Minhas mãos tremem, perderam o tato, adormeceram. Procuro desesperadamente os meus olhos, mas nada vejo... não os encontro. As lágrimas, do lado de fora, continuam descendo do rosto de vidro, sem vida. Tento sorrir, mas não sinto o meu sorriso, nada existe... só água, água e mais água... Só tem água, descendo, rolando. Porém, meu rosto está seco, liso e frio.
Onde estão minhas rugas? Não tenho mais boca, não posso falar. Não tenho mais nada... só uma frágil superfície envidraçada. No que me tornei? Que criatura grotesca está surgindo, sem que eu possa tocar, nem olhar, nem sentir? Preciso destruir esse monstro, esse eu disforme e inanimado, de vidro! Abominável...
Peguei distância, tomei impulso... e... atirei-me contra o meu próprio rosto de vidro. Bati com tanta força naquela fina camada espelhada, com a esperança que meu rosto perdido, envidraçado, voltasse para o lugar.
Um líquido quente e viscoso desceu de minha cabeça. Mas não é mais frio como a chuva que continua a cair do lado de fora. Estou exultante, acabei com a morte!
Opondo a minha alegria de breve duração, empalideci! Fiquei apavorado quando percebi que meu rosto se quebrou com o impacto. Milhares de caquinhos cortantes e brilhantes, caíram sobre meus pés. A chuva fria e o vento bruto invadiram meu quarto, consumindo-me.
Olhei para cada caquinho do meu rosto despedaçado e fiquei admirado e perplexo quando me dei conta que em cada pedaço de vidro do meu rosto partido, pares de olhos me fitavam. Meu rosto se reproduziu, multiplicou-se em todos os caquinhos. Estou aprisionado nos cacos de vidro, mas descobri minha identidade. Sou imortal, estou espelhado em infindáveis pares de olhos!
O que está acontecendo? O líquido quente e viscoso que insiste em escorrer de minha cabeça, agora encobriu quase todo o meu lívido corpo, colorindo-o. Não mais consigo ficar em pé. Não tenho mais face, mas percebo o líquido grosso descendo com volúpia de minha cabeça. Meu choro vermelho caiu em todos os vidrinhos pelos quais meu rosto de multiplicou.
Meu choro tingiu de uma coloração avermelhada, a minha face estilhaçada, animando-a com o tom da vida. Eis a cor da vida! Estou quase... quase... quase...
E seu corpo pálido, já sem uma gota de sangue, despencou inerte sobre os inúmeros cacos de vidro, todos tingidos pela cor da vida, que foi transferida, e a eles se fundiu.
escritos por Alex Azevedo