quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Morte na Folia.













A penúltima agremiação já estava chegando à Dispersão. Aquela extensão do sambódromo foi construída para que todos os integrantes e ritmistas da escola se agrupassem, saudando o público. Mas era um espaço exíguo demais e não havia tempo suficiente para tal apresentação apoteótica. Alfredo, imerso num mar de plumas e paetês, fantasias, adereços e alegorias monumentais, desejava ser um anônimo na multidão. Mas em meio à radical falta de identidade dos mascarados, da massa homogênea de foliões, não se sentida seguro. Qualquer um poderia ser o seu potencial assassino.

A única certeza que latejava em sua alma, era que estava jurado de morte. Tentou se preservar, imiscuindo-se ao frêmito das massas divinizadas em exaltação foliônica. Mas quanto mais se dissolvia no anonimato dos mascarados, mais sua angústia sinalizava uma devastadora presença. Seria alvo fácil? Será que alguém o observava? Por baixo das festivas vestimentas de qualquer um, poderia se esconder o autor do futuro crime, aquele que o aniquilaria.

(...)

Um pouco antes das primeiras manifestações carnavalescas do ano seguinte, precisamente no mês de outubro, Alfredo se encontrava na residência de um estimado amigo, há muito sumido, o Péricles. Prosearam animadamente, atualizando assuntos extintos ou esquecidos numa época remota. Péricles serviu com satisfação o amigo, oferecendo apetitosos quitutes e petiscos, brindando-o com um não menos excitante coquetel que só ele sabia fazer.

- Estou muito contente em poder revê-lo, meu amigo! – Exclamou Alfredo com lágrimas nos olhos.

- Eu que estou lisonjeado em recebê-lo no meu humilde lar.

Ao visualizar sua cinemateca particular, Alfredo afirmou:

- Vejo que você continua amante dos diretores europeus...

Péricles pegou um filme do Buñuel, retirou a contra capa que continha a sinopse e argumentou:

- Este cineasta espanhol foi o responsável por uma das mais apreciadas receitas do esplêndido drinque que estamos saboreando agora, o destilado dry martini.

- Sim... Um homem versátil... Seu paladar apurado vai além de seu refinamento magistral na Sétima Arte. Buñuel sabia apreciar este aperitivo com elegância ímpar.

- Saber degustar uma boa bebida é condição sine qua non para a qualidade de qualquer cineasta que se preze.

- Sempre achei que sua capacidade de crítico de cinema foi desperdiçada. Você deveria ter trilhado uma carreira mais jornalística, dando ênfase aos estudos cinematográficos. Deveria ter investido na literatura. Admiro sua declarada paixão pelo cinema!

- Sou um homem de negócios, meu caro. Não tenho tempo a perder com prazeres fúteis. Só me entrego à apreciação de boas bebidas e de bons filmes quando estou prestes a realizar projetos ambiciosos. Minha vida é clara e distintamente direcionada às especulações econômicas, ao jogo do câmbio flutuante, às milionárias aplicações nas Bolsas de Valores, aos investimentos em ações.

Visivelmente constrangido pelo modo imperativo e frio com o qual seu amigo definiu o interesse pela arte, associando-a à ganância comercial, às frivolidades mercadológicas, Alfredo tentou abordar amenidades, puxar assuntos que envolvessem mais a intimidade familiar. Alfredo não estava distraído. Percebeu logo pelas palavras do amigo, já que estavam bebendo, que naquele encontro, Péricles trataria apenas de negócios com ele.

- E sua esposa e filhos, por que não estão aqui?

- Não estou mais casado, meu caro. E filhos?! Sempre fui contra tê-los.

- Mas eu me recordo com vivacidade dos seus filhos! Como você agora me diz que não tem filhos?

- Eu não estou dizendo isso só “agora”, pois realmente nunca tive filhos.

Prevendo que aquele diálogo seria reduzido a uma absurda discussão, Alfredo resolveu contemporizar e conduzir a conversa para outras plagas.

- Você tem visto alguém dos tempos de faculdade?

Embaraçado pelo silêncio de Péricles, Alfredo prosseguiu, reformulando sua pergunta:

- E a Karina e a Alessandra? Sei que você tinha certa quedinha por elas... e...

- Basta de trivialidades! Vamos direto ao assunto que lhe trouxe aqui.

Péricles estava com uma fisionomia rígida, cenho franzido, dedos crispados sobre o criado mudo.

- Mandei uma equipe de confiança para acompanhar seus passos durante todo tempo. Também andei observando-o pessoalmente. E constatei que você é o cara ideal para o serviço.

Ainda mais assustado, Alfredo indagou com relativa gagueira:

- Mas que serviço?

- Você é um sujeito honesto, trabalhador, pai de um casal de lindas filhas. Está acima de qualquer suspeita. Encaixa-se perfeitamente, como uma luva, para o perfil do homem que eu preciso contratar.

- Não estou alcançando seu raciocínio, Péricles.

- Oferecer-lhe-ei uma boa quantia. Irrecusável! Sei também que você está passando por dificuldades financeiras, que contraiu algumas dívidas com empréstimos bancários. Esta será uma grande chance! Ótima oportunidade que só um amigo como eu poderia lhe dar.

- Você está me deixando apreensivo.

- Não fique, não fique! Acredito em você! Por mais que o mundo resista em valorizar seus talentos, eu os reconheço e admiro! Você trabalhará para mim.

- Mas o que terei que fazer?

- Calma, meu velho companheiro! Primeiro farei minha proposta sobre a quantia que você receberá.

- Certo... mas... Não estou conseguindo compreendê-lo. Aonde você quer chegar?

- Você tem um saldo positivo comigo, meu caro. Mesmo com antecedência, tenho convicção que você cumprirá com êxito a missão para a qual o instruirei. Por isso, pagarei todas as suas dívidas – que não são poucas – e darei todo o conforto para você e sua família pelo resto de suas vidas. Terão uma vida à altura da realeza.

Com uma ligeira afonia, Alfredo balbuciou:

- Mas... mas... Por que eu?

- Ora, já disse! Resumindo, você é um dos meus mais confiáveis amigos!

- Já estamos afastados há anos. Nunca mais nos vimos, desde a faculdade.

- Você não me viu, meu caro. Você que não me viu. Eu o acompanhei em cada segundo de sua vida. Não deixei escapar nada. Investiguei cada detalhe. Então, confirmou-se a minha hipótese em sua eficiência e honestidade.

- Ok. O que você quer que eu faça?

- Bem... Tem um empresário grego, o Sr. Karagounis, proprietário de uma grande rede de lojas de departamento, que está atravessando meus negócios. Preciso absorver sua firma para assumir a liderança empresarial de suas filiais, preservando a matriz.

- Entendo... Mas o que quer que eu faça? Não tenho nenhuma formação empresarial. Não sei nada desse mundo dos negócios.

- Mas você sabe segurar um revólver. Sabe apertar um gatilho. Sabe matar! Quero que o mate, meu caro.

- Ahm... Nãoo... Nãoo posso...

- Pode, pode! – Disse calmamente Péricles.

Péricles estendeu a mão com algo embrulhado num pano preto.

- Tome... Ensiná-lo-ei a manuseá-la.

Tremendo, Alfredo desembrulhou o revólver. Sua vista ficou turva e mal via o rosto do amigo. Enquanto Péricles dava as instruções para utilizar o revólver, Alfredo só pensava em sua família, em suas alegrias, mas também em suas tristezas, e titubeava, oscilando suas emoções. Logo em seguida, Péricles começou a instruí-lo sobre algumas técnicas e artimanhas para o amigo entrar na mansão do Karagounis. Explicou o funcionamento do sistema de alarme, informou sobre seus horários e a exata maneira de limpar todas as evidências do crime, para não deixar pistas para a polícia.

Alfredo ouviu atentamente as instruções do amigo. Em diversos instantes sofreu princípios de desmaio, mas resistiu com rara firmeza para não alarmar a confiança que Péricles depositou em seus ombros. Suas pernas tremiam como vara verde. Mas se manteve bravamente aprumado. No final do treinamento verbal que recebeu do amigo, apertaram as mãos e Alfredo se retirou da casa de Péricles.

Ao chegar à varanda de sua casa, permaneceu por longos minutos contemplando a arquitetura de um antigo sonho concretizado. Já era noite, quando resolveu entrar. Todos já dormiam. Foi ao quarto das filhas, que ainda eram pequenas, a mais nova de 6 anos e a mais velha de 8 anos, beijou-as delicadamente na testa para não acordá-las e saiu.

Logo depois caminhou para o seu quarto, encontrando a sua bela esposa entregue a um gostoso sono. Sentiu leve amargura, um medo de perdê-la. Hesitou em realizar a operação para a qual fora instruído. Sua esposa era tão linda... Mas logo retomou sua obstinação quando se recordou das vantagens que daria à família se fosse bem sucedido em sua empreitada.

A esposa, notando sua presença a observando ao pé da cama, abriu um pouco os olhos, e carinhosamente o chamou para se deitar. Alfredo respondeu com delicadeza e se acomodou ao seu lado. Mas durante toda a noite, não relaxou um só segundo.

(...)

No mês de fevereiro, conforme o combinado, Alfredo estava preparado para impetrar o crime. Certificou-se da ausência dos seguranças. Desarmou os sensores de calor e desativou os alarmes. Estava dentro da mansão do Sr. Karagounis. Uma onda de adrenalina percorreu sua espinha. Nunca matara nem uma mosca. Sempre fora um homem honesto e respeitado, porém desvalorizado pelos seus patrões, sempre lhe usurpando suas merecidas promoções e gratificações.

Já não mais estava paralisado pelo medo. Agora obedecia a um impulso agressivo, homicida que talvez sempre estivesse habitando seu íntimo, mas que jamais acordara como naquele exato instante. Seus olhos estavam vermelhos como duas bolas incandescentes. Seu rosto, inexpressivo, pela concentração sanguínea, exibia uma plácida fúria.

Não necessitou nem fazer uma recapitulação de sua incumbência, parecia que tinha nascido para aquela circunstância. Ansiava ouvir o grito de dor, últimos suspiros de um corpo agonizante, baleado num crime perfeito. Mas se lembrou do seu treinamento, e a morte seria praticamente indolor. Lamentou essa parte das instruções. Adaptou o silenciador em sua pistola e finalmente alcançou o quarto no qual Karagounis repousava.

Quando abriu a porta, constatando a volumosa presença do grego deitado em sua cama, após apontar o revólver para a nuca de sua vítima, sentiu uma pancada lancinante no alto de sua cabeça, parecia um porrete de madeira maciça. Urrou de dor e imediatamente desabou no chão daquele quarto, deixando respingar algumas gotas de sangue, manchando o valioso carpete.

(...)

Alfredo acordou, com uma penetrante dor de cabeça, ainda desorientado, encostado num poste em plena Avenida Getúlio Vargas, no centro do Rio de Janeiro. Era tarde da noite. A Avenida estava interditada, parecia que havia alguns festejos mais adiante. Quando ele se levantou, cambaleando, com muita dificuldade, recebeu um telefonema. Um homem com uma voz metalizada, que não quis se identificar, dizia que estava sob a mira de um matador de aluguel, um assassino profissional que não perdia nenhum de seus movimentos. Estava jurado de morte. A única forma de sobreviver, era se encontrar com uma pessoa usando uma máscara veneziana do libertino Giacomo Casanova, durante os desfiles das Escolas de Samba, na Dispersão da penúltima agremiação daquela noite. Logo após a última orientação, a ligação foi cortada.

Apavorado, seguiu em direção ao sambódromo. Estava ainda no início da Presidente Vargas, por isso demorou muito até visualizar a intensa iluminação, o aglomerado de pessoas entulhadas na passarela do samba e nas arquibancadas. Levou tempo também para ouvir a batucada estridente dos desfiles, propagada pelos amplificadores de som que ficavam espalhados na Avenida Marquês de Sapucaí, transversal à Presidente Vargas.

A princípio, ao se misturar na multidão de mascarados, vestindo uma fantasia que estava abandonada no canto da calçada, sentiu-se seguro. Foi prontamente integrado à homogênea massa. Estava protegido pelo total anonimato. Deixou transparecer até uma pontinha de satisfação, contagiado pela cadência do samba e pela alegria transmitida pelos foliões.

Mas quando novamente se deu conta da trágica situação em que estava envolvido até o pescoço, redobrou-se em um estado de generalizada paranóia. Quando a penúltima escola já cruzava a Dispersão na Apoteose, teve uma taquicardia, intensificando ainda mais seu estado paranóico, desconfiando de todos aqueles que pulavam aparentemente felizes ao seu redor. Poderia ser qualquer um. Eram todos idênticos. Não tinha a menor condição de discernir um potencial assassino.

De repente, relembrou as orientações da sinistra voz. Precisava encontrar, naquele justo momento, a tal pessoa usando a fantasia da personalidade dissoluta do Casanova. Mas como distingui-la no meio de uma quantidade infinita de mascarados? Logo que fez essa consideração, avistou o Casanova. Um sujeito enorme, esguio, imóvel, parado à sua frente. Pensou em recuar. Mas continuou se aproximando da figura medonha. Ao tocá-lo, perdeu novamente os sentidos.

(...)

Eram 2 horas da tarde de uma terça-feira gorda. Alfredo tinha sido convidado para um baile carnavalesco na casa de um amigo seu que há muito tempo não via, o Péricles. Estava se arrumando quando recebeu um telefonema avisando que a festa foi cancelada. Quis saber o motivo. A voz do outro lado da linha deu a notícia da morte de Péricles. A causa do óbito foi um infarto fulminante.

Alfredo estava ainda de ressaca pela noite anterior regada de muita bebedeira em um clube tradicional na Lapa. Sacudiu a cabeça, na tentativa de afugentar estranha sensação. Ainda reverberava uma nítida memória que esteve na casa do Péricles alguns meses antes. Mas como? Eles não se viam há muitos anos, desde a faculdade. Aquela notícia de sua morte deixou-o ainda mais intrigado e confuso. Reclinou-se em seu sofá com um saco de gelo pressionado em sua testa.

Alfredo estava sozinho como sempre estivera. Invejava os homens que optaram pelo casamento, por terem esposa e filhos. Mas ele sempre esteve envolvido com negócios. Gerenciava uma lucrativa empresa. Nunca teve tempo para os afetos familiares, por isso, jamais se vinculou à qualquer mulher por mais de uma noite. Péricles era um desses homens, objeto de sua inveja. Ele era casado com uma bela mulher e tinha duas filhinhas. Como sua família vai se sustentar em sua ausência, sem o seu amor?

Continuou por longas horas, pensativo, em seu sofá, até adormecer. Sonhou que havia reencontrado o amigo Péricles. Ele estava satisfeito com a sua visita. Péricles ainda demonstrava profunda gratidão pela mulher que Alfredo lhe apresentou ainda na época da faculdade. Ele imediatamente previu que aquela seria a mãe de seus filhos. Meses depois, casaram-se. Péricles havia convidado o amigo Alfredo, que era o padrinho de seu casamento, para celebrarem juntos, suas tão esperadas Bodas de Prata.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS

8 comentários:

Lucas Montenegro disse...

Desculpa Alex, mas seu conto merece que eu pare e leia com toda a atenção, e agora infelizmente não posso! Amanhã vou voltar aqui e "degustá-lo" como deve ser, pode confiar!

Lucas Montenegro disse...

Cara, ótimo conto gostei muito! Mas vou ter que admitir que não entendi muito bem o final, quando, ao que me parece, a vida dos dois se inverte. Podia me explicar essa parte?

Alex Azevedo Dias disse...

Lucas, eu priorizei neste conto, a narrativa do inverossímil. Uma espécie de realismo fantástico, no qual as personagens, aparentemente triviais e cotidianas, ganham contornos de uma linguagem do absurdo. Sempre que eu escrevo, tenho a experiência de me capturar pelo enigma de minha própria escrita. Então, antes de finalizar a estória, eu mesmo não sei como será o desfecho da trama. Também me surpreendo com a dinâmica durante meu processo criativo de escrita. Como leitor de minhas produções, pude compreender que o instante final em que o protagonista sonha, o Alfredo, é que se presentifica a única certeza, a única realidade viável. O restante do conto, que não se passa num sonho, devo sublinhar, é quando as personagens estão mais submersas num universo totalmente onírico. Está aí o paradoxo. É justamente no parágrafo final, que eu descrevo o sonho, o momento mais factual, mais realista e sóbrio de todo o meu conto. Abraços cordiais.

Lucas Montenegro disse...

Entendi! Genial!
Na verdade eu pensei quase nisso. Um bom texto (assim como o seu)não deve dar tudo ao leitor, mas deve incitá-lo a interpretar a história de acordo com sua própria pessoa, fazendo com que ela seja única, e quando pensei nisso que você falou, confesso que achei que eu mesmo estivesse viajando demais hehe
Mas gostei muito!

Alex Azevedo Dias disse...

Sim, é indispensável viajar ao ler minhas estórias!!

Victor Von Serran disse...

engraçado como não temos tempo para o afeto e como com o tempo nos vemos forçados por ele a mudar nossas vidas !


abraço meu grande novo amigo de blogosfera !

http://universovonserran.blogspot.com - Especial ano novo - Ao caminhar na tempestade

blog premiado - sigo e comento quem seguir e comentar !!!

tambem denuncio calotes !

Anônimo disse...

Você fascinantemente brinca com real e imaginário, com concreto e abstrato e ainda mistura tempo nisso... Passeia entre presente e passado e prende quem lê, pois sabemos que ali naquele conto há algo mais.
Muito bom!

Anônimo disse...

Ola,
Vc é mesmo um poeta da alma.
Como é bom ler o que vc escreve.
Acho o Pedro Bege tao "todos" nós.
Vc é pura arte expresa em palavras, e consegue trazer o que está no incosciente de quem o lê, nesse momento nao é mais vc e sim que o lê (eu).
Obrigada por tais maravilhas!
bjbj
Andrea