sábado, 16 de julho de 2011

Tramar e Amar.














Os tiros explodiam lá fora, vibrando a vidraça empoeirada. A revolução chegara às ruas com os rebeldes amotinados na marginalidade conspiratória. Era somente na alcova que se tramava o futuro da resistência. Enquanto grupos mais radicais aderiam às armas de fogo, Jôsi e Théo guerreavam com as armas de tinta e das notas musicais. Era somente na escuridão das residências silenciosas que as inquietas lógicas apaixonadas traçavam o futuro da pátria. O risco de grampos telefônicos e de escutas espalhadas por algum agente do governo infiltrado, potencializava o clima paranóico de que quaisquer paredes ouviam muito bem.

O lar já não mais representava segurança, embora o refúgio fosse inevitável. Os manifestos políticos que Jôsi escrevia, assinando com um pseudônimo, foram descobertos, associados à sua autoria. Ela estava jurada de morte nas perversas entrelinhas da lei do seu solo materno. Precisando de abrigo, e recusando a opção do exílio, Théo, um velho amigo e exímio violinista, convidou-a para se esconder em seu modesto apartamento no Catete. Ironicamente, esse bairro carioca remetia aos aspirantes a oficiais militares, representantes do sórdido governo que tanto combatiam - os cadetes do exército. Era só trocar uma letra - o "t" para o "d" - que logo passaria de Catete para Cadete. O bairro do Catete foi a sede do poder Executivo até às vésperas do golpe militar - mais uma ironia. Jôsi prontamente assentiu o convite de Théo - irrecusável na ocasião , mudando-se para seu apartamento só com a roupa do corpo para não levantar suspeitas pela movimentação da mudança.

Théo mantinha uma posição quase apolítica, sem muitas participações nos inflamados debates que aconteciam sempre aos sussurros e às escuras. Ele era um músico em início de carreira, mas já conquistara um público vasto e fiel. Compunha importantes concertos em orquestra de câmara. Temia destruir sua promissora carreira, envolvendo-se com a subversiva esquerda revolucionária. Mas ao ver sua amiga em apuros, não hesitou em chamá-la para seu apartamento, mesmo tendo absoluta consciência de que Jôsi era uma militante de esquerda. Há anos não se viam. Jôsi sabia da existência de Théo pois acompanhava o noticiário. Nos suplementos de arte dos jornais, seu nome era citado com frequência como um violinista renomado, apesar de jovem. Théo sabia que Jôsi era escritora. Já lera alguns de seus romances, mas jamais desconfiara que ela fosse autora daqueles subversivos textos. Impulsionado por um estranho sentimento - estranho, pois nunca manifestara nada por ela -, ele não se fez de rogado e, mantendo as devidas precauções, conseguiu entrar em contato com a moça fugitiva.

Jamais passara pela cabeça de Théo a possibilidade de seu nome ser estampado nas principais manchetes dos jornais, não como músico de sucesso - que já era -, mas como foragido da polícia naqueles tempos de chumbo. Sabia que agora, abrigando uma subversiva, mais cedo ou mais tarde teria seu "crime" descoberto pelo DOI-CODI. O serviço secreto da polícia o perseguiria implacavelmente. Desde que Jôsi chegara, ele não mais dormia direito. Quando conseguia conciliar o sono, acordava apavorado no meio da noite, suando, após sair de um pesadelo em que quebravam-lhe os dedos, torturando-o para confessar o inconfessável. Nunca mais poderia tocar seu instrumento tão adorado por ávidas platéias - pelo som ímpar que só ele conseguia tirar do violino.

No início, Jôsi e Théo quase não se falavam. Apenas trocavam alguns tímidos olhares. Théo havia cedido o seu quarto a ela. Jôsi recusou, pois o quarto era amplo e muito iluminado, e ela não poderia dar esse luxo de exposição, entendido como um suicídio programado. Ela preferiu se instalar num quartinho de empregada humilde que ficava bastante afastado, nos fundos do apartamento. Lá ela passava horas escrevendo, quase o dia inteiro. Embora dividissem a casa, às vezes Théo ficava um dia inteiro sem ver Jôsi, como se ela não estivesse presente.

Angustiado, Théo ameaçou não sair mais de casa, mas Jôsi, sussurrando, logo interviu, advertindo-o que tal procedimento iria levantar suspeitas e que ele deveria se esforçar ao máximo para levar uma vida normal. Desconfiado, ele seguiu seus conselhos. Continuou participando dos concertos, ia ao mercado fazer compras e ensaiava diariamente em seu quarto. Para que não estranhassem o excesso de comida, eles combinaram de racionar os alimentos por um tempo para que Théo não comprasse em dobro - o que os entregaria, denunciando que ele hospedara alguém de maneira duvidosa.

Os dias foram passando e os dois se aproximando. Théo já acompanhava Jôsi em seus escritos no apertado quartinho de empregada. Ela pedia sua opinião e ele se enveredava gradativamente na tão temida política de esquerda. Jôsi, na calada da noite, também ia ao quarto de Théo para visitá-lo. Queria ouvi-lo tocando seu violino. Quando escrevia, solitária, no quartinho, e ouvia Théo ensaiar do seu quarto, ela imediatamente parava, recostava no espaldar da cadeira e se deixava embalar pela divina melodia. Mas Jôsi não podia entrar no quarto de Théo durante o dia por causa da iluminação e à noite, ouvi-lo tocar, também levantaria suspeitas - afinal, ele nunca ensaiara à noite. As visitas ficaram cada vez mais frequentes.

Falando baixinho, os dois passaram das conspirações de uma esquerda subversiva, às subversões do desejo. A paixão os arrebatava. Não mais a paixão pelo violino de Théo. Não mais a paixão pelo discurso político de Jôsi. Ambos não foram descobertos pela polícia, mas descobriram o amor. Numa noite, deitaram-se juntos. Tiveram uma inesquecível conspiração sensual, consensual, lasciva. Assim como a subversão política, a lascívia também era condenada pela censura, mas aquela cumplicidade erótica, nos sussurros da alcova, era apenas testemunhada pelas paredes surdas do quartinho de empregada. Os ouvidos pertenciam ao casal que tocava seus corpos em êxtase debaixo dos lençóis puídos. Théo tocava o corpo de Jôsi como um enfático dedilhar das cordas de seu violino. Era música! Jôsi apalpava Théo como se inscrevesse a linguagem única de uma excitação intransmissível.

Na manhã seguinte, enquanto do quarto iluminado de Théo ouviam-se os estampidos dos revólveres ordinários, do quartinho de empregada, na penumbra, nada de fora se ouvia. Jôsi e Théo só eram sensíveis aos sussurros do prazer. Naquele dia, ambos não saíram da cama. Eles haviam sido protagonistas da revolução: A revolução apaixonada do encontro ácido de seus corpos. Eles fizeram história. Tornaram-se gente. Não pelas armas, mas pelo sexo.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

2 comentários:

Ravi Barros disse...

Seus textos de um modo geral, contem ficções interessantes... Subjetismo bacana

Anônimo disse...

Adorei o texto ;) vou passar sempre nesse blog
www.mundoablog.blogspot.com