O corte profundo anunciava o fim. seu infortúnio sempre fora seu maior deleite, sua fortuna. Ter sua pele arranhada era o mínimo dos prazeres que poderia sentir, um acréscimo humilde de gozo. Não que tivesse apreço pelo flagelo como os penitentes. Jamais pensara em pagar promessas. Não se imaginava subindo a infinita escadaria de um outeiro, de joelhos, para agradecer a graça gentilmente cedida pelos deuses. Tinha aversão ao ler nos livros de história sobre a punição impingida aos escravos infratores. A visão da chibata ardendo no lombo causava-lhe ânsia de vômito.
Há tempos não obtinha tanto prazer quanto o de ser achincalhado por mãos femininas. O filete sanguíneo que despontava das feridas assemelhava-se ao gotejar das lágrimas, ao suor que brotava do orgasmo e ao líquido seminal depositado na glande exausta. Ele havia aperfeiçoado uma tática infalível para abordar as mulheres mais selvagens. Baseando-se em estudos esotéricos, apostou na potência dos nomes como parâmetro de personalidade. Frequentava botequins de quinta categoria e puxava assunto com as mais variadas mulheres - a maioria prostitutas - até que elas lhe dissessem seus nomes completos. Apesar de quase nenhuma revelar a verdadeira identidade, ele insistia. Elas, já aborrecidas por sua perseverança patética, apenas lhe informavam o "nome artístico" - ou de guerra -, como costumava ser chamado pelos zombeteiros bebedores compulsivos.
Ele desenvolveu um método de avaliação que chegou ao sobrenome "Silva" como um ideal de agressividade espontânea. Num cálculo etimológico, descobriu que "Silva" se originou de "Selva". Os indígenas, por seus hábitos selvagens, foram tecnicamente rotulados de "silvícolas". Então, concluiu, as mulheres com esse sobrenome, Silva, seriam logicamente mais enfurecidas na cama. Algumas mulheres, interessadas em migalhas monetárias e já entediadas pela repetitiva pergunta daquele homem esquisitão - possível cliente -, diziam que tinham "Silva" como nome do pai. Outras, que o "Silva" vinha da mãe. Pouco importava. Ele se satisfazia, calava a boca, e as convidava para sua casa, pagando-lhes o programa. Algumas se assustavam com o comportamento extravagante do rapaz. Ele pulava na cama, ficava em pé, soltava gritos histéricos e se contorcia moderadamente como elástico velho.
A maioria de suas parceiras chegava ao ponto de se apavorar, ameaçar chamar um médico - quando parecia que ele fora vítima de ataque epilético -, ou mesmo a polícia - quando a esdrúxula cena se comparava a dos mais perigosos maníacos sexuais. Muitas nem esperavam para receber o pagamento. Simplesmente viravam as costas e corriam desesperadas para a rua. Quando ele recobrava a consciência, não via mais nenhuma mulher ao seu lado, muito menos seus tão queridos arranhões. Por não ter obtido êxito com o minucioso estudo dos nomes, partiu para o cara-a-cara. Ele passou a encarar as mulheres. Tentava identificar algum traço que transmitisse o temperamento intempestivo ideal para realizar seus sonhos de retalhamento orgástico.
Depois de muitas investidas fracassadas, ele finalmente encontrou aquela que seria a encarnação do seu gozo, sua alma gêmea, seu algoz sexual. Ela exibia um semblante harmônico, equilibrando na medida certa um olhar irascível com a doçura de lábios bem desenhados. Um misto de ternura com ódio brutal. O odor da sensualidade tirânica antecipava o instante supremo de ser trucidado pelo prazer. Aproximou-se dela com a convicção típica dos santos e dos paranóicos.
Não foi capaz de cuspir palavras sujas, como as escritas por autores anônimos na latrina dos banheiros públicos. Não que as palavras de baixo calão lhe faltassem na hora "h" - ou no ponto "g", pouco importa -, mas porque a libido as envelopava como cartas-bomba para que fossem entregues a um destinatário desprovido de destino. As palavras inexistiam. Agora o ato, em sua dolorosa verdade como boa bofetada, ridiculamente real - justamente o que ele mais ansiava -, era a única ferramenta comunicativa de que dispunha. A comunicação em sua mais radical violência. Estupidamente erótica.
Quando já estavam na cama, o carrasco e sua vítima se revezavam avidamente como num jogo infantil digno de reformatórios. Ela por cima, de pernas abertas, enganchada em seu tronco, açoitava-lhe verbalmente enquanto cavalgava com obstinação. Ele firme, esbelto, como um cavalo puro sangue, alternando rebeldia - para cravar com maior virilidade o membro -, com a submissão dos selvagens adestrados. Ao sentir os primeiros espasmos do orgasmo que lhe subia pela espinha, eriçando sua nuca, ela enfiou as unhas febris na carne úmida do seu homem-cavalo. Um uivo de prazer fora entoado como a nota mais aguda de um soprano. Se houvesse alguma taça de cristal na alcova, certamente não resistiria e explodiria como uma ejaculação quente - não de sêmen, mas do mais viscoso sangue. Os encontros corrosivos, antes ponderados, mais suaves e semanais, tornaram-se diários e cada vez mais intensos, famintos, com direto a dentadas, cera derretida no escroto e anzóis nos mamilos.
Uma noite, no auge da sandice, ela tirou da bolsa um garrote feito com dois bastões de alumínio e um potente fio de náilon. Sem que ele percebesse, ela iniciou lentamente o estrangulamento. Enquanto o fio apenas encostava em sua garganta, ele nada sentira. No início, o regozijo se apresentava em sua mais exuberante manifestação. Mas quanto mais ela apertava o garrote com os braços já cruzados em seu pescoço, mais ele sufocava numa dramática exibição de suplício. Naquele instante ele se desesperou. Sentiu a morte iminente. Já estava quase sendo sumariamente degolado. A asfixia o deixara de olhos arregalados e com a língua pendurada, como quisesse abandonar sua boca. O sangue escorreu-lhe pelo queixo, pois mordera a mesma língua que, vencida entre os dentes pontiagudos, desfalecera. O náilon já lhe atravessara as cordas vocais, tocando, como última melodia, o instrumento de solitária nota. Os espasmos de agonia substituíram os de prazer. O sangue descia quente como a seiva bruta que escorre de um tronco roletado.
Após o derradeiro trepidar de um corpo inconsciente, ela se afastou, limpou as mãos ensanguentadas nas coxas e na vagina - fecundando-se com a morte - manteve o garrote fincado no pescoço do cadáver, apanhou todo o dinheiro em sua carteira, guardou-o na bolsa também respingada de sangue e saiu da alcova com uma absoluta sensação de dever cumprido. Já na rua, em direção ao local em que faz ponto, no botequim, contando o dinheiro, satisfez-se por se sentir muito bem paga. Tinha total consciência que fizera um favor à sua vítima. Ela lhe deu o que ele mais desejava: Morreu em seu próprio gozo. Fora asfixiado pelo prazer.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
Nenhum comentário:
Postar um comentário