quinta-feira, 7 de julho de 2011

Apenas Um Sonho.















Todos o aguardavam ansiosos. O grande gênio da psicanálise estaria ali para nos doar pitadas de sua quase infinita sabedoria. O auditório estava lotado. Alguns em silêncio, já concentrados. Outros, como eu, agitados e falando baixinho para seus vizinhos de cadeira, sobre a demora do palestrante. Seu nome foi anunciado. Surpresos pela notícia, não se contentando pela espera, os convidados se viraram em direção ao portão de entrada. Como chibata estalando no ar em pleno açoite, Lacan atravessa a soleira da porta e dispara até a plataforma na qual se acomodará.

Os que estavam em silêncio agora cochicham. Os que tagarelavam ansiosos, agora redobraram a atenção numa quietude fascinada. O símbolo máximo, padrasto da psicanálise - pois alguns reivindicam a paternidade da invenção freudiana ao mestre francês - inicia um discurso triunfante. Boquiabertos com tais eloquentes palavras, siderados por sua divina figura, a platéia se reduz a testemunhas cegas, surdas e mudas, presenciando a onisciência daquele homem sedutor. Sua gravata borboleta quase girava como um catavento em contato com o pomo-de-Adão arrebitado.

Mal notamos o encerramento da palestra e o Lacan já havia se retirado, não aguardando os aplausos entusiasmados. Estávamos congelados em nossas cadeiras. Sofríamos da febre do seu saber - ou sabor, não sei. Quando conseguimos abrir os olhos, após a desintoxicação do venenoso encantamento, deparamo-nos com sua ausência. Apenas um leve odor de desodorante passado ainda se demorava no auditório. Ninguém abandonou seu lugar. Nos entreolhamos atônitos, aguardando que Lacan retornasse ou que um abnegado mestre de cerimônias declarasse o fim evento. Mas não. Deveríamos encarar a dura realidade. Lacan havia ido embora. Sua saída era inegável. Talvez ele tivesse se despedido, mas não ouvíamos o homem, apenas o mito.

O primeiro se levantou, recolheu seu material de anotações e se debandou. Num típico efeito dominó, todos repetiram o gesto e se retiraram. Eu fui um dos últimos a sair. Com os que sobraram, lamentando não terem apertado as mãos do mestre francês, combinamos de montarmos um acampamento na saída da universidade para que tivéssemos a oportunidade de trocarmos algumas palavrinhas - mesmo que apenas o tão sonhado aperto de mão. Pedir autógrafo seria exagerado. Afinal, não se tratava de uma celebridade efêmera, que nasce e morre nos realitys shows. Era Lacan, um pensador. Ele talvez ficasse incomodado com a tietagem.

Uma preciosa informação nos foi bondosamente cedida: Lacan estava conversando com alguns professores na sala do mestrado. Sabíamos que em breve ele passaria por onde iríamos nos instalar. Rapidamente pegamos algumas cadeiras emprestadas e nos deslocamos para o local aonde esperaríamos sua gloriosa passagem de despedida. Como fazia muito frio e a noite já caíra, um dos nossos colegas ficou encarregado de comprar um cobertor com o qual nos abrigássemos dos ventos cortantes. Ele chegou com uns panos robustos que pareciam qualquer coisa, menos cobertores. Eram feitos de tecidos grossos, meio rasgados, barbantes e espumas prensados como se fossem restos colados de alguma lixeira de alfaiates e costureiras. Ele disse que não havia outro e que popularmente se chamava "cobertor peleja", fama que conquistou por enrolar uma parte do corpo e desenrolar a outra - ao tentar cobrir uma parte, descobre-se a outra e vice versa. Sem alternativa, nos contentamos com o que tínhamos. Tudo era tolerável, mesmo a maior precariedade, para cumprimentarmos nosso mestre querido.

Escolhemos o cantinho menos esburacado e úmido para, enfim, nos aconchegarmos. Tentamos nos posicionar atrás de uma larga pilastra, mas não queríamos que nossa visibilidade fosse prejudicada. Não poderíamos perder nenhum detalhe da movimentação dos transeuntes para que nosso ilustríssimo não escapasse facilmente da contínua vigilância. Então, ficamos expostos ao frio castigante. Nos embrulhamos com os cobertores metidos à besta e ficamos lá, paradinhos, só esperando. Não movíamos nenhum músculo sequer. O tempo passou. Passou. Menos Lacan. Ele não passava. Estranhávamos sua falta. Onde estaria? Não sabíamos. Só sabíamos que ele ainda não havia saído da universidade, senão o veríamos. Mas nada. Nem sinal dele.

Nesse meio tempo, uma jovem de feições suaves e desembaraçadas, veio ao meio encontro. Num gesto espontâneo, como se me conhecesse, agachou-se diante de mim, deu um sorriso matreiro e beliscou meu queixo com o polegar e o dedo indicador em formato de pinça. Fiquei intrigado com aquela reação. Quem era ela? Não fazia a menor ideia. Olhei para os meus colegas para receber um sinal de cumplicidade com minha inquietação. Mas eles pareciam que dormiam. Observei-os novamente. Não dormiam. Seus olhos estavam abertos, mas eram olhos de peixes mortos. Passei a mão repetidas vezes para cima e para baixo em frente às suas vistas. Nenhuma reação. Eles não tinham olhos para mais nada além da expectativa da passagem do grande ídolo. Mas o mártir Lacan não aparecia. Desejei ardentemente seguir aquela misteriosa mulher. Acho que era o que ela queria - que eu a seguisse. Estava interessada em mim. Ela me queria por perto. Olhei mais uma vez para meus colegas. Nada. Estava envergonhado. Não queria que eles soubessem que eu desviava minha atenção para outros fins - menos sublimes do que apertar a mão do mestre francês.

Titubeei. Titubeei mais um pouco. Mais ainda... E... Fui. Tentei me comunicar, explicar que não estava abandonando-os, que eu retornaria para os acompanhar naquela espera bem-aventurada, cheia de boas intenções. Eles não me ouviam, ou simplesmente meneavam as cabeças apenas afirmativamente, revelando menos assentimento do que total ignorância. Eles me ignoravam. Queria que eles soubessem que eu desejava mais do que ninguém me encontrar com Lacan. Não suportava a ideia de ser um filho desgarrado. Não suportava ser tido como um desinteressado. Precisava demonstrar interesses nobres e não me deixar fisgar por futilidades. Mas espere um pouco! Qual a fronteira da nobreza com a futilidade? Talvez seus valores estejam invertidos. Esperar Lacan enrolado em cobertores pestilentos, ao relento, à porta da universidade, com a gélida noite cada vez mais avançada, era um gesto de nobreza? Será? Encontrar-me com a bela moça, aquecer-me em seus braços, deitar-me em seus calorosos seios, era fútil? Será?

Levantei-me sem olhar para trás. Só ouvi uns murmúrios esparsos - vindos talvez dos mortos-vivos que permaneciam enrolados em suas cadeiras cativas. Procurei pela bela mulher que me esperava. Eu a encontrei no alto de uma escadaria, após cruzar a longa via universitária, em sentido oposto, pela qual as pessoas ganhavam a rua. Eu a cumprimentei formalmente. Ela rompeu o meu embaraço, amassou a formalidade, abraçou-me e me beijou longamente. Ficamos assim por mais algum tempo. Abraçados, descemos as escadas. Seguimos o fluxo das pessoas que saíam da universidade. Já quase na rua, ainda abraçados, instintivamente eu olhei para o lado e notei que passávamos em frente aos sôfregos homens acampados. Eles mantinham a mesma posição. Continuavam sem mover nenhum músculo. Tive medo que eles me endereçassem um olhar de reprovação. Mas isso quase já não mais me interessava. Eles se tornaram minha platéia.

Eles me viam sair abraçado com uma mulher ao invés do adorado Lacan. Aqueles homens sujos, maltrapilhos, já quase fedorentos, sentindo frio, enrolados em cobertores mal-acabados. Eles todos lá, reunidos, vendo-me passar. Eram testemunhas da noite de sexo que me aguardava. Eles não sabiam, mas Lacan já havia morrido. Esperavam um homem morto. No ano seguinte à sua morte, eu nasci.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

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