sábado, 9 de julho de 2011

Cafeteria Hospitalar.














Numa sexta-feira à tarde, voltando do trabalho, procurei uma cafeteria na qual pudesse relaxar. Por toda a extensão da rua em que passava - repleta de casas velhas e abandonadas, com um denso matagal decorando-as, nem sinal de um cantinho para saborear um bom café. Cheguei a pensar naquelas lojas que oferecem o precioso líquido negro como cortesia em encardidas garrafas térmicas, servindo o homem que espera "pacientemente" as compras da mulher. Mas também não havia por perto nenhuma dessas lojinhas. Caminhei, caminhei caminhei... E, de repente, senti o aroma de um cafezinho fresco, que acabara de ser coado.

Olhei para um lado... Para o outro... Cadê? Não tinha cafeteria. Concluí que o cheiro vinha da casa de alguém, pois já estava num ponto em que os espigões de milionárias construtoras cercavam-me, bordando a rua com um traçado irregular. Intrigado pela origem daquela invisível e hipnótica fumacinha, andei mais um pouco. Parei em frente a um hospital especializado em cardiopatias. Dois grandes cilindros de oxigênio bombeavam o gás por não menores tubulações, perdendo-se no interior do hospital. A porta automática se abriu. Do tapete vermelho estendido para o exterior como uma careta, uma elegante senhora deslizou graciosamente ao estilo das andorinhas. Observei atentamente. A fachada parecia mais um sedutor portal de um shopping center convidando os consumidores a esvaziarem seus ricos bolsinhos.

Já quase retomando meu caminho, o cheiro do café voltou a me invadir, acariciando meu desejoso olfato. Dei um passo para trás e novamente fiquei perante o sofisticado nosocômio. Bem... Uma estrutura arquitetônica um pouco sem noção e realmente cômica. Não sem estranheza e espanto, tive que reconhecer que o fascinante aroma vinha do hospital, sem sombra de dúvidas. Quando a porta automática se abriu, empaquei no meio. Fiquei lá estatelado ao ver a decoração estonteante da cafeteria. Um garçom, notando menos a baba que escorria no canto da minha boca, do que demonstrando preocupação em desobstruir a passagem inconvenientemente entupida pelo meu corpo petrificado, sugeriu que eu me sentasse a uma mesa. O susto que se estampava em minha cara deve ter aguçado a sensibilidade dos abnegados enfermeiros de plantão. Mas, pasmem! Mão haviam enfermeiros de plantão. Só garçons adequadamente arrumados para um digna festa de gala.

Por alguns segundos eu quis recuar e sair correndo dali. Mas continuei lá. Acabei de entrar e segui a sugestão de me sentar. Aquilo era tudo, menos um hospital. Fato! Se os funcionários se comportassem como se estivessem num hospital, certamente teriam me jogado numa maca e me levado para o CTI, visto a minha cara de babaca, não acreditando no que estava diante dos meus olhos. Percebi que as evidências também enganam. Ainda sem confiar nos meus sentidos, dei uma olhadinha ao meu redor. A movimentação dos clientes e a maneira que os garçons os serviam, eram as mesmas de qualquer lanchonete que se preze - sem contar a pitada de requinte e elegância que a maioria das cafeterias não tem. Não poderia negar. Aquele lugar, como um hospital, era uma excelente cafeteria, obviamente merecedora de ser incluída no circuito gastronômico da cidade. Mas acredito que o tabu por se localizar num ambiente hospitalar não permitiria que figurasse em nenhum catálogo indicativo das melhores opções gourmet.

Rompi a barreira do alerta geral que foi ligado em mim - pois estava atento por causa da hipótese dos cafés estarem envenenados. Afinal, eles poderiam ter feito algum acordo ou pacto com o diretor do hospital, envenenando suas bebidas para causar ataques cardíacos, aumentando o faturamento dos seus comércios. Mas descartei essa possibilidade, pois o preço que o proprietário já estaria pagando para manter aquele espaço - aluguel gentilmente cedido pelo hospital - deveria ser tão exorbitante que poderia arrancar o olho do dono do café. Aí, não seria ali que iriam tratar de um caolho. Acho que a segunda hipótese era a mais economicamente viável.

Não totalmente relaxado, mas já tendo a desconfiança vencida, pedi uma xícara de café carioca. Não estava muito disposto. A concentração do expresso me tombaria facilmente. Por isso pedi com um pouquinho mais de água. Fui servido numa bandejinha com o açúcar mascavo como mais uma opção além do adoçante e do açúcar refinado. Não adocei com o mascavo porque o sabor se alteraria de tal maneira que ninguém distinguiria o café do caldo de cana. Comi o biscoitinho amanteigado que veio de cortesia, molhando-o antes no café. Recostei na confortável poltrona hospitalar da cafeteria e comecei a observar as pessoas que, como eu, também se deliciavam com os quitutes e aperitivos.

Sei que na emergência do hospital, muitos pacientes e seus familiares dão entrada no mais absoluto desespero. Muitos são internados e submetidos a cirurgias. A maioria dos familiares - os que não torcem para que o parente abastado morra rapidamente, tendo acesso às heranças - sofrem mais do que os enfermos. Alguns pessimistas tem convicção que os hospitais são a porta de entrada dos cemitérios. Eu que não sou adepto desse ceticismo, prefiro entender que os hospitais são os portadores das nem sempre tão disputadas chaves de São Pedro. Mas paraíso mesmo era aquela cafeteria. Impossível que alguém morresse ali.

Esse hospital tinha entrada por duas ruas paralelas. Suas instalações atravessavam o quarteirão. Do lado da emergência, a rua era calma e florida, como de uma cidadezinha do interior. Do lado oposto, no qual se encontrava a cafeteria, a rua era agitada e barulhenta. Talvez a direção do hospital acreditasse que passar pela rua silenciosa auxiliaria, como numa terapia, aos doentes que chegassem à emergência em fase terminal. Ou talvez a rua vazia ajudasse a entrada e saída das viaturas socorristas. As ambulâncias não passavam pela rua de acesso à cafeteria. Acho que se invertessem as posições, colocando a cafeteria no lugar da emergência, certamente quando os pacientes moribundos vissem a obra de arte e o frescor de vitalidade do elegante café, se recuperariam instantaneamente - assim como o macarrão japonês miojo. Se alguém tivesse a ousadia de tentar morrer ali, o garçom a curaria prontamente.

Todos que usufruíam do lugar estavam divinamente ornamentados. Gente finíssima. A conversa girava sobre todos os assuntos, menos sobre doença e morte. A maioria das discussões abordava os temas prediletos da futilidade, mas ainda assim negavam qualquer possibilidade de tocar as farpas das doenças e das mortes. Pela primeira vez tive a experiência de estar num hospital em que a morte não existia, como as sujeirinhas faceiramente varridas para debaixo do tapete persa. Uma jovem rodeada por familiares que pareciam visitá-la em sua juventude e vigor, ao invés de visitarem algum paciente à míngua, do alto de sua beleza e formosura - com seus finíssimos saltinhos - contava para uma platéia embasbacada, a glamorosa história de seu passeio pela Europa.

Ela chegou a falar que tinha acabado de fazer uma visitinha à tia hospitalizada - mas isso era o de menos. O que importava é que estava prestes a se casar e os preparativos chiquérrimos do casamento não poderiam falhar de nenhuma maneira. Ela tirou da bolsa um embrulhinho que segundo ela continha uns docinhos finos. Perguntaram-na sobre o nome dos doces. Ela disparou com um fluente francês parisiense que se tratava de "petit-gateau", e que não deixaria que eles experimentassem, que deveriam esperar até seu casamento.

Encantado, tendo já esvaziado quase completamente minha xicarazinha de porcelana - deixando apenas um restinho no fundo, como manda a fina etiqueta -, eu me retirei com a doce sensação que em vez de ter saído de um hospital, acabara de me despedir dos elegantes convidados de uma festa da alta sociedade. Talvez eu devesse ter adoçado meu café com o açúcar mascavo. Assim poderia ter eliminado qualquer resíduo do seu característico amargo.



CRÔNICA ESCRITA por ALEX AZEVEDO DIAS.

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