domingo, 31 de julho de 2011

No Balcão de Feltro.









Puxou um cigarrinho da carteira de couro sintético. O balconista inexplicavelmente demorava para lhe atender o pedido. Sentou-se no banco de costas para o balcão. Acendeu o cigarro com fósforo, riscando-o numa velha caixinha que o acompanhava no bolso. Não era adepto de modernidades. Apesar de que isqueiro não fosse nada moderno - concluía em voz baixa.

Cruzou as pernas e se recostou no balcão, apoiando ambos os cotovelos na superfície de feltro. Ficou lá, relaxado, olhando para o vai-e-vem dos clientes que não cessava. Inclinou-se mais no balcão, como se já deitasse, tragando seu cigarrinho com a parcimônia dos que já estão com a vida ganha.

Sentiu uma mão pesada tocando o seu ombro esquerdo. Ficou alerta, mas não intimidou-se. Quando já se preparava para reagir àquela ameaça, sorveu a fumaça esparsa do cafezinho que fora servido e já estava à sua espera. Contrastando com a quentura da bebida, um frio percorreu-lhe as vísceras quando se imaginou vulnerável à iminência do ataque.

Logo se recompôs. Nem vestígio do garçom que lhe servira o café. Talvez estivesse lá dentro, preparando o pedido de outro cliente. Tomou a circunferência da xícara entre os dedos, dispensando a pequena asa de porcelana para que não queimasse a mão. Não se importava com o calor da bebida. Aquela temperatura, fumegante, possibilitava um choque de realidade. Precisava sentir a musculatura dos dedos encrespando como torradas na assadeira de pão.

Não se limitou a pequenas porções. Ingeriu goladas do líquido fervente como se bebesse água para matar a sede. Realmente ele estava com sede. Mas era outro tipo de sede. Era sede de vingança. Não ponderou muito sobre aquele momento. Desde que lhe desonraram, não mais pôde pensar em outra coisa. Sua mente alternava entre o ódio insano e um vazio espontâneo que às vezes o deixava ausente no canto de casa.

Por não possuir porte de armas de fogo, nem querer mexer com nada que lhe parecesse um revólver, resolveu levar sua velha faquinha de estimação. Com ela, realizou façanhas em outros tempos. Reservado para aquele encontro, apenas a cara, a coragem, e sua faca de aço inoxidável, bem afiada, embainhada na cintura. Foi a uma loja de cutelaria e comprou um material abrasivo, no formato de pedra, para que o fio de seu instrumento cortante ficasse com a amolação correta.

Avistou um vulto que se movimentava vagarosamente. Associou-o, pelo sombreado, o volume do corpo, à vítima de sua fúria. Antes mesmo que pudesse retirar a faca da cintura para empunhá-la em direção à sombra que se aproximava, um estampido fora ouvido pelos demais clientes. Não houve alvoroço. Os clientes continuaram sentados, bebendo, comendo e conversando. Só nos segundos que seguiram ao estrondo oco do revólver, silenciaram, mas rapidamente normalizaram como se nada de estranho houvesse acontecido.

No impacto, o projétil que lhe perfurou o crânio, lançou sua cabeça para trás até que batesse a nuca no balcão. O feltro amorteceu o barulho de carne esmagada. A xícara de café continuou firme entre os seus dedos rígidos. Apenas algumas gotinhas caíram em seu sapato de camurça marrom - agora também misturado ao sangue que lhe escorria do furo na testa. Com um esponja úmida e já encardida, o garçom esfregou o feltro do balcão para impedir que o sangue secasse e manchasse o pano de pelinhos verdes. Com uma pá de lixo, retirou os miolos que se espalharam no chão do bar.

Um bêbado que estava passando pelo local, viu aquele sujeito sentado de costas para o balcão, segurando uma xícara de café, com os cotovelos apoiados no feltro verde e a cabeça virada. Aproximou-se, e com um sorriso nos lábios, brindou sua garrafa de cerveja na xícara do cadáver. Falou algumas palavras de incentivo para o defunto. Exortou-o. Sentou-se ao seu lado e lhe perguntou se estava de ressaca, se sofria por alguma mulher. Sem obter respostas, o bêbado não insistiu. Ficou por ali, mudo, em solidariedade ao cadáver que, para ele, era um pobre coitado que sofria por amor.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

7 comentários:

Juliana S . disse...

ee o amor quem um dia podera entender, seus contos sempre sao surpreendentes !

Blog UaiMeu! disse...

Vc tem uma sensibilidade muito grande nos seus textos!
Adorei!
Passa lá no nosso!
Abraços
Renata
http://uaimeu10.blogspot.com/

Artur disse...

Um final tragicômico para um texto bem escrito :)

Fabiane Daz disse...

Nossa.. Bem escrito o texto.. Com calma, é de uma leitura gostosa!

Guilherme Augusto disse...

Tudo ficou banal que o único que se importa com ele é quem a sociedade não se importa ao ver...

Vitor disse...

hahahh, meu bom amigo! Quanto tempo, não? Desculpe por isso.
Mas indo ao que importa, esse post me suscita um monte de pitacos. Metáfora de morte para o amor, a importância do último café, o bêbado solidário. Mas de todas, a minha preferida é o Sean Connery em Intocáveis, falando da merda que é levar uma faca para um tiroteio. ahahahah
E também estou intrigado com esse balcão, que parece uma mesa de sinuca!!

Alex Azevedo Dias disse...

Pois então, meu caro Vitor... É o dilema... Já dizia a sabedoria da expressão popular "sinuca de bico"... O feltro verde da sinuca e do balcão... Qual a diferença entre debruçar-se numa mesa de sinuca ou num balcão de bar? Talvez nenhuma. Só que bom jogador leva cerveja para o feltro da sinuca. Mau jogador, leva café para o feltro do balcão, e ainda o derrama. E o bico? Ah... Esse é fácil... Biquinho de beijo, de susto e de bebedor de café! Abraços!!