quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Katie













- Tenho pensado muito em Katie...

- Não sabia que você ainda pensava nela. Já se passaram 16 anos e nunca mais ouvi você tocar em seu nome.

- Pois é... Achei que tivesse superado. Mas às vezes sofro em silêncio; rumino lembranças. Para mim, mesmo tendo passado tanto tempo, ainda parece que foi ontem. Não me sinto bem falando sobre ela. Gosto de mantê-la guardada só comigo.

-Você não teve mais nenhum relacionamento depois que Katie desapareceu?

- Nada significativo... Apenas a Joyce despertou novamente meus sentimentos.

- E o que houve com ela?

- Comecei a ver a Katie nela, a trocar seu nome... Essas repetições se estenderam demasiadamente. Foram tão patéticas... Ultrapassaram o limite do tolerável. Mas não a culpo por isso, pois devo estar seriamente adoecido pela falta da Katie.

- Por que você insiste em não escutar minhas sugestões de procurar um especialista?

- Eu agradeço a sua preocupação comigo. Sei que desde o início você me sugeriu procurar ajuda, mas isso não trará a Katie de volta.

- Sim, porém...

- Além do mais, só em imaginar que minhas intimidades serão apalpadas por mãos estranhas, repugna-me.

- Mas você...

- Vamos deixá-las quietas, adormecidas, intocadas... Eu tenho direito de não dividir minhas lembranças e histórias com ninguém. Embora sofridos, são meus bens mais preciosos.

- Você sabe que não é assim que funciona, não sabe?

- Sim... Eu sei...

- E então...?!

- Então, já está anoitecendo, e os primeiros pingos da chuva de um previsível temporal, começaram a cair.

- Ok. Vamos nos apressar antes de desabar a chuva.

- Vamos lá...

Raul estava com 35 anos quando Katie, com quem se casara há 10 anos, sumiu inexplicavelmente e nunca mais fora encontrada. A princípio, as evidências indicavam que havia sofrido um acidente fatal, uma queda de um penhasco que a vitimou. Mas como a perícia não identificou pistas objetiváveis, a dúvida fez Raul sucumbir, não podendo sequer assimilar a dor de uma perda, dificultando seu luto.

Para comemorarem uma década de casamento feliz, Raul e Katie se inscreveram em um programa ambientalista, uma colônia de férias, incluindo um acampamento numa idílica região silvestre, na qual se realizaria a renovação de seus votos matrimoniais.

Na tarde que antecedeu a esperada viagem, o casal apaixonado nunca esteve tão exultante por ter chegado àquela data, estando às vésperas da concretização de uma planejada segunda Lua de Mel. Os dois arrumaram freneticamente suas bagagens e a barraca de camping, e mal ouviam a balbúrdia nas largas avenidas que cortavam sua residência, devido à época das festas de final de ano.

Durante a viagem, como também ao longo de um tempo determinado, entregues à natureza, com a barraca devidamente instalada, tudo transcorreu dentro da mais perfeita ordem e normalidade. Fizeram trilhas, escalaram pequenas montanhas, tomaram banho de cachoeira e até desafiaram pegar uns peixes num riacho que se localizava há uma distância considerável do lugar no qual o casal escolheu para armar a barraca de camping. À noite, ainda se reuniam com os vizinhos das outras barracas, faziam fogueiras, assavam batatas doces e espigas de milho verde, conversavam com muita animação, e também cantavam modinhas ao violão.

Após dois dias em que a mais absoluta paz reinou, um inquietante acontecimento perturbou a transitória harmonia no camping. Alegando tomar ar fresco, durante uma madrugada, quando o sol já estava quase raiando, Katie saiu da barraca em direção a uma grande pedra que muito a encantara quando se banharam na cachoeira que ficava nas proximidades de uma aldeia indígena, isolada como área de preservação ambiental. Depois de longa caminhada, como nos arredores da região silvestre ainda estava escuro, Katie se perdeu, não podendo reconhecer mais nenhuma referência naquele vasto e sombrio território de mata virgem.

Tateando algum ponto em comum que pudesse identificar seu paradeiro, ela chegou a um córrego que supostamente, ao margeá-lo, daria acesso à cachoeira, destino de sua empreitada inicial. Seguiu a margem do rio por muito tempo, afastando-se cada vez mais do acampamento. Exausta, sentou-se num lugar em que havia pomares e frutinhas suculentas. Para amenizar a angústia de ter se perdido, sozinha, naquela imensidão inexplorável, respirou fundo, debruçou-se no leito do rio para pegar um pouco de água com as palmas das mãos em formato de cuia e molhou o rosto. Com a refrescante sensação do contato da água com a pele, tentou afugentar a tensão da dúvida e aclarar as ideias. Precisava pensar como reencontrar o exato percurso que a levaria de volta à barraca de seu marido.

Mas ao inclinar seu corpo para alcançar as frutinhas vermelhas de um tímido arbusto, ainda com as vistas embaçadas pela luz do sol que começara a se fortalecer naquela jovial manhã, não percebeu que o arbusto escondia um penhasco, quase invisível pela cobertura de sua frondosa folhagem. Esforçando-se cada vez mais para apanhar a frutinha, desequilibrou-se e se precipitou irreversivelmente, atravessando sem titubear o limite seguro da beirada do abismo. Seu corpo despencou em queda livre. Pela distância, nenhum som noticiando a tragédia foi ouvido. Só a natureza foi testemunha daquele cruel destino.

As buscas persistiram por semanas intermináveis, mas nenhum resíduo que indicasse a passagem da moça, ou rastros que denunciassem seu itinerário fatal havia se descortinado à obstinada equipe de socorristas do bombeiro. Até que, com a falta de evidências, mesmo sem encontrar o corpo da vítima, esposa de Raul, para ser velado, as buscas foram declaradas encerradas, restando como saldo um fracasso inconsolável.

Raul tentou reconstruir sua vida ao passar do tempo, mas a insistente convicção que Katie não havia morrido começou a consumi-lo. A falta do corpo de sua mulher representava uma esperança de vida a Raul de maneira tão impeditiva, que todas as suas relações afetivas posteriores foram constantemente permeadas pelo fantasma de uma morte que não pôde nem ao menos ser concluída para libertá-lo de seu passado.

(...)

“- Então, já está anoitecendo, e os primeiros pingos da chuva de um previsível temporal, começaram a cair.”

- “Ok. Vamos nos apressar antes de desabar a chuva.”

- “Vamos lá...”

Após a despedida de Raul, cumprimentando o amigo, Mauro permaneceu lá por alguns minutos, pensativo. Sabia que não era certo esconder por tanto tempo as provas que só ele possuía, revelando a verdadeira identidade de Katie. Mas justamente pela condição de amizade e respeito recíproco, Mauro não tinha coragem de contar tudo o que estava mantido em segredo. Temia a reação de Raul. Não queria machucá-lo. Era a sua dignidade como amigo que deveria ser honrada, ao dizer que Katie talvez não fosse exatamente a Katie que habitava os pensamentos de Raul. Várias correspondências escritas com aquela tal inconfundível caligrafia, que certamente, se chegassem às mãos de Raul, seriam assassinas cruéis da verdade à qual ele tanto confiava a sua vida.

(...)

Katie, ainda deitada em sua cama, espreguiçou suavemente, alongando seus braços e relaxando seu corpo. Havia acabado de acordar de um sono reparador. Contudo, guardava ainda fortes impressões de um sonho surpreendente que muito a intrigou. Sonhou com um atraente jovem de um pouco mais de 30 anos, mas não conseguia distinguir seus traços faciais. Pareceu-lhe que eram casados. De início, satisfez-se ao visualizar as doces feições daquele moço. Porém, uma onda de intensos enjoos rompeu a plácida cena que se desenrolava à sua frente. Foi arremessada com violência para um campo vazio, no qual ninguém aparecia.

Quando acordou, uma sensação nostálgica persistia em sua memória. Ficou na cama ainda por alguns minutos, ainda refletindo sobre a estranheza de seu sonho. Mas tal meditação foi interrompida pelo chamado de sua mãe.

- Katie! Katie!

- Estou aqui, mãe!

- Acorde, minha filha! Já está muito tarde... Você não se comprometeu em ajudar nos preparativos do casamento de sua irmã?

- Sim, mãe... Vou me arrumar. Levarei o vestido que ela me pediu para usar no chá de panela.

- Faça isso... Estou muito feliz por ela! Mas e você? Quando encontrará um pretendente que lhe fará feliz e com o qual se casará?

- Ainda não sei, mãe. Não é possível adivinhar os mistérios do coração.

- Você é tão jovem e bonita, minha filha! Mas o que aconteceu com aquele rapaz que sua prima lhe apresentou?

- Não fez o meu tipo. Achei-o arrogante e pretensioso demais.

- Nesse caso, você está certa. Não quero minha filha andando com qualquer um.

- Sabe, mãe... Nessa noite eu tive um sonho que me deixou um pouco estranha...

- Conte!

- Foi com um belo e romântico rapaz. Eu sentia que ele me amava. Foi tão maravilhosa essa emoção do amor! Mas ele não tinha rosto! Não conseguia vê-lo...

- Curioso! E aí?

- E aí que eu fiquei surpresa com meus sentimentos. Parecia que estava apaixonada por ele. Jamais senti algo semelhante. Acho que estou apaixonada por um homem cujo rosto não tenho a menor ideia de como seja.

- Ai, ai, minha filha! Você vive nas nuvens! Apaixonar-se por um homem irreal, que só existe nos seus sonhos, e ainda sem rosto! Sim... Você está precisando sair mais, conhecer pessoas...

- Mas eu estou bem assim...

- Vamos logo à casa de sua irmã! Não podemos nos atrasar! Vamos...

E mãe e filha seguiram juntas para os preparativos daquele que seria o primeiro de muitos casamentos na atual geração da família de Katie.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

4 comentários:

Liz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Junior disse...

Cara adorei o texto muito bom, mas não compreendi, o que aconteceu com katie? e raul? não tem fim?


abraço

passa la tbm

Alex Azevedo Dias disse...

Junior, agradeço seu comentário! Katie e Raul, assim como enunciado ao longo do meu conto, podem não ser exatamente personagens concretas e individuais. Podem não ter identidades próprias como os sujeitos que circulam na vida real, de carne e osso. Tente ler pelo viés de estranhas figuras e criaturas que habitam as múltiplas manifestações do inconsciente humano.
Um grande abraço!

Junior disse...

Acho que entendi, ou talvez não heaueha, ele pode ser imterpretado de varias formas?

tipo raul era um sonho de katie e vice e versa?

vou te seguir, seus textos são muito bons,

valeu pelo comentario no meu blog, gostei