Passou a mão no peito e suspirou. Não era a primeira vez que estava apaixonada. Sabia de todas as mazelas do término de um amor por experiência própria. Não queria sofrer novamente. Jamais. Já havia tomado uma potente vacina contra as consequências do amor não correspondido ou abruptamente rompido sem a menor explicação. Mas apesar disso, a imunidade não alcançava aquele órgão pulsante sobre o qual Pascal afirmou ser o portador de razões além da razão humana.
Opondo-se a suas amigas alienadas, que repetiam sucessivamente uma determinada condição da qual tinham ojeriza, sem que pudessem admitir suas escolhas, Débora era consciente de seus atos. Não duvidava de sua condenação aos amores e desamores. Nunca se imaginou vitimada por estranhas forças sobre as quais não exercia nenhum domínio. A única coisa que Débora não conhecia era o motivo dessa incapacidade de acertar no que verdadeiramente queria. Quando um novo amor surgia, ela possuía a certeza que tudo, mais cedo ou mais tarde, ruiria. Acabaria tragicamente como em todas as outras vezes.
No início, chorava com amargura pelos cantos da casa, sendo consolada por uma amiga que também fracassava em matéria de coração, com a diferença que a amiga acreditava que eram os homens que não prestavam. Débora não se submetia à repetição do fracasso. Não porque ela descobrira uma forma de interromper essa sina repetitiva - pois recusava a ingenuidade das amigas -, mas porque não queria perder a exclusividade como causadora de suas desgraças afetivas.
Contrariando expectativas, a continuação dos fracassos não possibilitou que Débora adquirisse maior aprendizado da vida. Seus erros não produziam acertos. Numa lógica primária, quanto mais errava, apenas errava ainda mais. No seu caso, o erro só levava a maiores sofisticações do próprio erro. Errava de maneira cada vez mais elaborava. Na primeira vez, um namorado a deixara numa longa conversa a luz de velas num restaurante elegante da cidade. Ele a havia convidado para jantar, preparou os maîtres para a situação, decorou e ornamentou aquele encontro, também levando flores e uma caixinha de bombons. Débora não se conformou ao ser informada que seu namoro chegara ao fim. A delicadeza e cortesia do rapaz em dizer o sonoro "não!", a sensibilizou. Pelo menos teve a oportunidade de xingá-lo e estragar o clima romântico. Aquilo lhe fez um bem enorme. Havia ridicularizado-o na frente de todos daquele restaurante chique. Perdeu o namorado, mas não perdeu a dignidade.
Só que já na segunda vez que perdeu um amor, o rapaz nem se preocupou em organizar um evento para lhe dar a notícia. Ele simplesmente chegou à sua casa - sem levar nenhum mimo -, segurou suas mãos, pediu que sentasse com ele na mesma cama que fora palco de noites memoráveis, olhou fundo nos seus olhos e disse: "Está tudo acabado". Só isso. Diante da revolta de Débora, ele apenas virou as costas com uma relutante lágrima nos olhos que insistia em ficar presa nos cílios, e foi embora para sempre.
Já o rapaz do terceiro namoro, terminou com ela sem nem ao menos olhar em seus olhos. Ele terminou por telefone. Fez uma única ligação e, revelando um pouco de constrangimento, despejou suas verdades insipientes, rompendo de modo frio e distante. Débora tentou ligar para ele diversas vezes, mas não atendia seus telefonemas. Ela chorou, mas demorou menos para se conformar. O quarto rompimento foi por e-mail. O rapaz lhe enviou uma mensagem sucinta justificando seus motivos, sem nem ter dado aviso prévio, e desapareceu. O quinto então nem se fala. Depois de uma noite quente de amor, ele nunca mais deu as caras. Ele a riscou do mapa sem nenhum e-mailzinho.
E os rompimentos foram aumentando e evoluindo em termos de sofisticação. Nesse caso, a palavra "sofisticação" não se refere ao complexo e ao mais bem elaborado. Muito pelo contrário. Caso fosse assim, o primeiro, o do jantar de velas, seria o mais sofisticado. Mas essa palavra tem a ver com a escala decrescente. Significa que com o passar do tempo, Débora testemunha - sem ser vítima, ela sabia muito bem - uma maneira de romper o relacionamento cada vez mais líquida e evasiva. Então, ela só pôde compreender que se os caras a largavam sem nem participarem de uma conversinha sequer, a sofisticação em expulsá-los inconscientemente só poderia estar do lado dela. Era ela, e mais ninguém, a responsável por acabar com seus amores. Mas qual seria seu requinte de crueldade? - Ela avaliava. Será que mordia? Mas mordiscar incrementava o sexo, levando-os a excitações que não estavam no gibi. Não sabia a causa. Só sabia que a causa estava nela.
Débora passou um tempo sem arranjar namorado. Apenas saía com as amigas e se divertia em animadas conversas regadas com muita cerveja. Até que um dia reencontrou seu primeiro namorado - o que terminou com ela a luz de velas. Ele tinha se casado com outra mulher e o casamento não ia bem das pernas. Disse que desde que romperam, ele sentia sua falta. Nunca mais sentira prazer com nenhuma mulher do mesmo jeito que sentia com Débora. Ele a abraçou na frente das amigas - já alterado pela bebida, pois também bebia com amigos na mesa ao lado -, deitou a cabeça em seu colo, chorando. Débora ficou comovida com aquele gesto suplicante. Ele levantou a cabeça e tentou beijá-la. Ela recuou, colocando as mãos espalmadas em seu rosto, como um sinal para que se afastasse. Ele então subiu na cadeira e gritou que a amava. Débora o fez descer e o conduziu em silêncio até uma mesinha reservada na parte de trás do bar. Sentaram-se. Ele em prantos, soluçando, pegou suas mãos entre os copos da mesa e disse que não viveria mais sem ela. Débora ouviu tudo sem dizer nenhuma palavra.
Enquanto o rapaz discursava em absoluta aflição, Débora teve um lampejo de verdade. Aquele homem se debulhando em lágrimas só podia significar uma coisa: Eles terminavam com ela porque se sentiam impotentes para assumirem que só ela seria o amor de suas vidas. Ela se recriminou esse tempo todo à toa. A solução sempre fora objetiva. Débora continuava, em silêncio, sendo iluminada pela razão. O rapaz, chorando copiosamente, deu um tapa na mesa, agarrou os ombros de Débora, olhando profundamente em seus olhos e começou a repetir sem parar que não vive sem ela de jeito nenhum. Ela disse que compreendia perfeitamente, e esboçou um sorriso. Disse que ficasse calmo, pois ela estava entendendo tudo.
Não tinha mais nenhuma dúvida sobre a missão para a qual fora eleita: Débora era uma deusa reprimida num corpo de mulher que causava o amor dos homens e os enlouquecia. Eles rompiam com ela por não mais poderem viver com tanto amor. Não eram capazes de revelarem seus segredos. A linguagem não era suficiente para traduzir tal excessivo sentimento. Só seu primeiro namorado, em desespero, pôde sintetizar e transmitir-lhe sua aflição. Débora sabia o que tinha que fazer. Ele não poderia viver sem ela, e ela não poderia viver com ele. A solução para que ele encontrasse a paz estava por vir.
Débora abriu a bolsa em seu colo. Pegou um objeto pontiagudo. Olhou fixamente para o rapaz em franca aflição. Com uma das mãos acariciou o rosto daquele homem que era seu primeiro namorado. Tentou acalmá-lo com afagos. Foi aí que, com um movimento brusco, levou a mão com o objeto ao pescoço do rapaz, e massageou-o com as pontas dos dedos. Imediatamente, ainda com o pescoço seguro entre o polegar e o indicador, beliscando-o levemente, deixou cair o objeto sobre a mesa. Ele parou de chorar, olhou em direção ao objeto e se surpreendeu com um porta-retratos em formato de batom, contendo a fotografia de Débora. Ela sabia que com a sua foto ele jamais sentiria sua falta. Deixaria na cabeceira de sua cama. Quando sentisse saudades, abraçaria o porta-retratos e ficaria em paz. Débora se levantou convicta, deixou o rapaz quieto sentado à mesa, e foi beber com suas amigas. Já se passara muito tempo que estava ausente. Não poderia abandoná-las - além de estar com muita sede... de cerveja... é claro!
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.