domingo, 28 de agosto de 2011

O Esquecimento entre a Consciência e o Inconsciente.


Neste presente artigo, focarei a relação existente entre a consciência e o inconsciente, articulando-a com a questão do esquecimento.

Em psicanálise, o esquecimento ganhou uma nova perspectiva. As tradicionais bases biológicas saíram de cena para que as causas inconscientes subissem ao palco do sujeito humano.

Há uma frase dita por Freud que foi considerada como a terceira grande ferida na vaidade do conhecimento e do poder dos homens: - A consciência não é a senhora em sua própria casa! Historicamente, a primeira ferida no orgulho da humanidade foi a revolução de Copérnico, astrônomo que descobriu que a Terra não é o centro do universo, mas sim o Sol. A Terra, planeta supostamente grandioso em torno do qual os outros míseros planetinhas giravam, foi rebaixada à categoria de mais um planetinha em órbita no sistema solar - sem nada especial em relação aos demais.

A segunda ferida derivou das pesquisas de Darwin sobre a evolução das espécies, gerando enorme abalo nas teorias cristãs sobre a gênese. Enquanto o criacionismo atribuía um surgimento divino aos homens, herdeiros de Adão e Eva - criações diretamente das mãos de Deus -, já o evolucionismo de Darwin impôs a descoberta que o homem não descende de Deus, mas sim dos símios, ou seja, de macacos e de chimpanzés.

Para ilustrar essa questão trazida por Darwin, recordo-me de um livro do Umberto Eco, “Em Nome da Rosa”, que foi adaptado para o cinema, abordando, dentre outros temas, o tabu das proximidades do homem com os animais. Na Idade Média, o riso era condenado pelo clero secular como heresia, pois rir transformava a fisionomia humana em animal. Ao rir, o homem abandonava a sua característica divina - de ser à imagem e semelhança de Deus -, tornando-se idêntico aos macacos. No filme, um livro da poética de Aristóteles, uma comédia que versava sobre as virtudes do riso, perdeu-se na abadia. Esse acontecimento gerou uma série de assassinatos internamente à igreja, alardeando o guardião da biblioteca do mosteiro, um monge cego para o qual a perda desse livro poderia acarretar a contaminação da nobreza humana com a deformidade e a bestialidade dos animais irracionais. A identidade humana, modelada pelas mãos de Deus, seria abalada pelo riso, que significava inferioridade e degradação. Por isso, a revelação darwiniana ocasionou um forte abalo nas estruturas narcísicas da sociedade.

Como curiosidade, enquanto o riso foi condenado e proibido na Idade Média, atualmente houve uma inversão. Nos dias de hoje, o riso passou a ser recomendado como necessidade vital, remédio contra o mal. A tristeza, no nosso mundo, é que passou a ser a grande vilã. Ninguém mais tem o direito de estar triste. Atualmente, é a tristeza que é condenável. Mas é interessante notar que o ato de sorrir e o de chorar são bem parecidos fisicamente, mexendo com a mesma quantidade de músculos. Tem pessoas sobre as quais não sabemos identificar quando estão rindo ou chorando. Mas o essencial é que tanto rir quanto chorar são afetos tipicamente humanos.

Já na teoria freudiana, associada à terceira ferida narcísica, foi descoberto que a razão perdeu a posição central. O inconsciente é o verdadeiro comandante, legítimo senhor na casa da consciência. Tudo aquilo que escapa à consciência, fonte de impulsos repetitivos, mesmo que realizados com resistência e censura, é determinado pela lógica do inconsciente.

A consciência, diferentemente da expressão conhecida como “tomar consciência”, ou “conscientizar-se”, é uma instância psíquica regulada pelo que Freud chama de princípio da realidade. Essa realidade, que responde por uma ficção particular e coletiva para garantir o laço-social, funciona como uma peneira que separa o conteúdo que deve ou não deve ser inscrito na consciência. O problema - ou solução - é que essa operação de filtragem da consciência, que é o lugar das fantasias do ego, sempre deixa alguma falha, fracassando em conter a totalidade dos impulsos indesejáveis.

O “esquecimento” - que não é um esquecimento qualquer - consiste nessa operação de falha, quando o que deveria continuar no inconsciente vem à tona, insistindo em comparecer. Quando isso ocorre, o ego dispara um mecanismo de defesa conhecido em psicanálise pelo nome de “recalque”. O recalque é aquilo que sempre retorna, exigindo ganhar um contorno, um lugar existente, um valor na vida do sujeito. Mas o sujeito nada quer saber do seu material recalcado. O que ele quer é não se haver com seus desejos inconscientes. Só que são esses desejos inconscientes, esquecidos, o que há de mais íntimo e determinante na vida de cada pessoa. Por mais que tentemos esconder, camuflar, censurar e resistir, o recalque sempre retorna, buscando meios diversos para ser exteriorizado.

Quando o inconsciente se manifesta, a tendência é de não reconhecermos seus impulsos como advindos de nossa mais íntima realidade psíquica. O psicanalista Lacan chama esse lugar em que os desejos recalcados estão inscritos, de grande Outro. Esse Outro não é nem alguém, nem alguma coisa, mas sim o discurso do inconsciente. O sujeito está dividido entre o seu querer consciente, e o material reprimido do seu desejo inconsciente. E é sempre ao falar, que o sujeito manifesta a linguagem inconsciente. Nos tropeços, equívocos e lapsos, quando o sujeito fala uma coisa querendo ter falado outra, é que o inconsciente, conteúdo que mais lhe concerne intimamente, mas que justamente por isso está mais esquecido, acaba vindo à tona com força total.

Freud, sobre essa questão, exemplifica com o caso de um presidente de um órgão público, responsável por abrir uma sessão, que constata a presença dos membros e diz o contrário do que pretendia dizer, declarando que a sessão estava encerrada, em vez de aberta.

Conscientemente ele teria que abrir a sessão, mas inconscientemente desejava encerrá-la. Por isso, a linguagem do seu inconsciente escapou da vigilância do ego, invertendo o que ele queria dizer.

O que está mais esquecido, é exatamente o que há de mais importante na vida de alguém. Sempre que um sujeito esquece, não é à toa. É claro que existem causas orgânicas para os esquecimentos, como lesões fisiológicas. Porém, na maioria das vezes, o que esquecemos está subordinado a uma causa psíquica. Aquilo que mais diz respeito a nós mesmos, mas que nos ameaça a identidade social, acaba se transformando no material recalcado do inconsciente.

Para ilustrar essa dinâmica do recalque, Freud dá o exemplo de uma pessoa assistindo a alguma conferência num auditório, tumultuando tudo, ao invés de ficar em silêncio. Se essa pessoa é convidada a se retirar por seguranças, para restabelecer a paz no recinto, ela, mesmo do lado de fora, pode ficar socando as portas. O que invade o auditório já não é mais a presença da pessoa, mas o som produzido pelas pancadas e pelos gritos de revolta da pessoa no lado de fora. O auditório está para a consciência, assim como a pessoa que foi expulsa, gritando e batendo do lado de fora, está para o retorno do recalcado.

É nesse sentido que o retorno do recalcado, o discurso do Outro, que é o inconsciente, impõe à consciência medidas urgentes de defesa contra o que ela não é capaz de assimilar. A consciência interpreta o material recalcado como oriundo de eventos traumáticos, associando-o a impulsos hostis e indesejáveis. É por isso que Freud compreende que quanto mais um desejo familiar retorna do inconsciente, mais o ego fica estranhamente inquieto. Porém, é justamente essa estranheza que retorna do inconsciente, o que há de mais familiar para um sujeito.

É nesse ponto que a função do “sintoma” é convocada para suprir as necessidades de um ego fragilizado. Quanto mais o recalque pressiona para voltar, mais o ego regride às origens dos primeiros eventos traumáticos responsáveis pelo recalque, que são principalmente originados na infância do sujeito - fase na qual as instâncias psíquicas vão se constituindo intimamente.

Freud diz que o ego é o maior dos sintomas, pois ele tenta bloquear esses impulsos do inconsciente. Só que o sintoma é uma espécie de calosidade feita pelo excesso do recalque que é derramado no ponto em que a defesa falha. Ao mesmo tempo em que o sintoma tenta conter o recalque, para não invadir a consciência, o sintoma é feito pela própria matéria-prima do recalcado.

O conceito de sintoma em psicanálise nada tem a ver com o que a medicina entende por sintoma. Em psicanálise, o sintoma é um mal necessário, pois organiza a realidade do sujeito em sua vida pessoal e social. O sintoma obsessivo-compulsivo, por exemplo, como aquele de sempre voltar ao mesmo lugar para verificar algo, ou lavar as mãos diversas vezes, ou mesmo girar a maçaneta e a chave de uma porta repetidamente, causa um grande incômodo para o sujeito, mas é exatamente isso que evita que esse sujeito entre em contato direto com o seu desejo inconsciente - associado a um impulso hostil, a um evento traumático que acaba se mantendo afastado da memória afetiva do sujeito. É quando esse sintoma desconfortável começa a falhar que o sujeito se sente exposto às suas verdades inconscientes que o determinam, mas sobre as quais ele nada quer saber.

O inconsciente não é uma continuidade em relação à consciência. Não tem ligação com aquilo que alguns chamam de “subconsciente”, que está abaixo da consciência. Para a psicanálise, o inconsciente é uma instância psíquica individual, que tem suas leis e sua própria lógica.

Para concluir, o esquecimento em psicanálise nunca é por acaso. O esquecimento, conhecido como “recalque”, quando não é por lesão orgânica, está associado ao retorno dos impulsos inconscientes que insistem na livre expressão, rejeitada pela consciência. Num tratamento psicanalítico, o conteúdo inconsciente vai gradativamente ganhando espaço, sendo assimilado e reconhecido até chegar à elaboração psíquica com os recursos simbólicos do paciente. Em alguns casos, o material recalcado que não ganha expressão, também pode ser convertido no aspecto de lesões corporais, tendo como causa a atividade do psiquismo. Afinal, o inconsciente busca expressão. Caso os conteúdos recalcados não sejam realizados simbolicamente, na expressão da fala do sujeito, ele retorna no corpo, ganhando expressão orgânica.


ARTIGO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Amor em Outra.














Ela me pegou pela mão. Puxou-me com delicadeza para a área gramada - um extenso espaço entre os prédios da faculdade. Notando o meu semblante infantil, tripudiou de minha inexperiência com um sorriso malicioso. Quis agarrar-me a ela. Seu corpo desvaneceu. Pensei tê-la perdido. Enquanto eu permanecia na borda do canteiro, hesitante, ela reapareceu dançando entre as árvores. Com um chamado doce, posicionando levemente a palma da mão nos lábios contraídos, exalou aquele sopro aromático que me tirou da inércia extasiada. Fui com ela.

Exercendo uma vocação nínfica, saltando e cantando, seduzindo sem se aproximar, afastando para tocar, convidou-me para vê-la em ato. Novamente me pegou pela mão e me levou até um fino banquinho armado entre dois troncos espessos. Pediu-me para que sentasse na grama, aos seus pés. beliscou-me o queixo devagar. Fiquei lá, inebriado pelo que nela ainda não vivia, por uma promessa ondulando no ar. Ela me fez recuar. Ainda sentado eu a vi dar um impulso, segurando nas cordas do que talvez fora um balanço. Apoiando-se nos troncos, deu um salto certeiro. Ficou de pé sobre o banquinho.

Cantou, cantou, cantou... Insinuava se esconder, deixando entrever apenas o mínimo do seu corpo. Tinha prazer em me enganar. Mas talvez se escondesse de si, não de mim. Quanto menos eu a via, mais eu a sentia, mais eu a possuía. As partes do seu corpo que se alternavam, mostrando-me na fantasia o que não podia ser visto - ela toda - causavam em mim um medo súbito, regado pela estridente paixão que se acercava de minha pele infantil. Já era um homem, crescido, mas não adulto. Sentia-me inocente diante do feitiço feminino. No jogo da presença e ausência, não havia opção, fatalmente perderia. Não havia mais nada a ser visto além dela - seu corpo nu, apesar de bem vestido.

Não tive outra reação além de contemplá-la. Aquilo me invadia, me tensionava, me atraía. Estava submetido à mágica aparição que desaparecia num piscar de olhos, para se deslocar e reaparecer em outro lugar - meus afetos e desafetos. Ela bailava, esvaía, ricocheteava e eu, reprimia. Ela articulada, gozando de minha demora em despertar. Eu embasbacado, de queixo caído, engessado, vendo-a levitar.

Canções, interpretações, um repertório sem fim. Dançava para uma platéia de cegos, reduzida ao único afeto que a mobilizava mais e mais: O meu assombro. Ao resvalar no meu olhar tímido, erógeno e pueril, ela se enterneceu. Subitamente estancou os passos da dança, aos quais se entregara. Inclinou-se para melhor me enquadrar em sua visão bucólica, e voltou a se sentar no banquinho entre as árvores. Contemplou a paisagem da baía. O espetáculo do pôr do sol, que concentrava multidões - gazeadores de aula - para lhe assistir, ainda demoraria. Tínhamos muito tempo sozinhos.

Ela esticou os braços, espreguiçando-os, e laçou os dois troncos por trás, simultaneamente, com os pulsos ligeiramente amolecidos e preguiçosos. Jogou o corpo como se fosse se balançar, e espichou as pernas nuas, cruzando os pés na altura dos tornozelos. Esses sutis movimentos retraíram sua pequena saia de seda, concedendo um pouco mais a visão de suas bem modeladas coxas ao desejo fugaz que se expandia em luzes contidas pelo gramado orvalhado.

O vento mudou de direção. Roubou algumas folhas que giraram em redemoinho. Seus cabelos esvoaçaram, livres. Ela me contava algumas histórias. Era sua vida confidenciada ao estranho imaturo. Não estava preparado para ouvi-las. Quanto mais falava, mais me permitia ser levado com as folhas aos ventos. Repetia a violência radiante da natureza. Eu queria ouvir tudo. Não queria perder nada, nenhuma palavra que me era segredada. Uma força desconhecida, um desejo, me impelia a ficar, a beber e saborear suas histórias de mulher com meus ouvidos de moleque.

Após muito me maltratar, entregando-me ao deleite em sua companhia, saiu em disparada. Despediu-se rapidamente. Disse, virando-se para trás, em direção a minha distante presença cada vez menor, que voltaria. Quem sabe um esbarrão aqui ou acolá? Mas ela não mais voltou. Não mais nos vimos. Só a sua lembrança - o que dela me pertencia - um pouco embaçada e iludida, admito!, insistiu em não se despedir. Minha memória, responsável por esculpir belezas indescritíveis em sua ausência, cravou um prego solitário e agônico na madeira de lei do meu coração.

Muito tempo se passou. Eu abandonara a peraltice envergonhada com a qual eu a conhecera. Um pouco mais adulto, por que não? Já estava terminando a faculdade. Ela ressurgiu. Parecia um pouco mais criança. Já eu, adulto. Nossos lugares se inverteram. Aqueles anos foram suficientes para que me tornasse homem, embora pouco tivesse envelhecido. Nos esbarramos, como prenunciou antes de partir. Ficamos frente a frente. Nos encaramos. Depois sorrimos. Nos demos as mãos. Eu estava confiante. Mesmo que a idade cronológica denunciasse realidade diversa, eu estava mais velho do que ela.

Com a condição que se impôs, namoramos. Aquele calor de todo início de relação... Independente do amadurecimento, regredíamos. Viramos dois adolescentes, como se fosse a primeira paixão. E era, apesar de já sermos experientes. Quando, desamparada, ela procurou o conforto e a segurança em meu peito, fora inesquecível. A primeira vez que meu corpo servira de aconchego para seus medos e privações. Mas era tão difícil nos entregarmos totalmente, dizermos que nos amávamos... Nós dois. Só Deus sabe o quanto ficamos tímidos para expressar as três palavrinhas mágicas: "Eu te amo". Criávamos mil artifícios para dizê-las sem que disséssemos nada. Ou talvez sem dizer nada, era aí que mais dizíamos.

Quando conseguimos falar, quando não tivemos mais medo de nos machucarmos, quando o passado já não mais se apresentou como fantasmas a serem comparados com a atualidade, pudemos nos entregar plenamente. Nada mais existia ao nosso redor. Só nós dois. Seguimos assim, nos amando, por um longo tempo. Mas a fatalidade de que éramos dois, e não um, bateu à porta com a ira de quem descumprira o mandamento da descontinuidade entre as criaturas. Os desejos assimétricos, que antes nos uniram, revelaram-se maquiavélicos. Uma prudência que nada mais se animava para reinventar. Desmorecemos. Fomos nos apagando, nos perdendo.

Até que a luz sumiu definitivamente. E, no escuro, só podia me apalpar. Senti-la em mim. Após o rompimento, ainda nos vimos mais algumas vezes. Tentamos reacender a chama. Tentamos resgatar a paixão. E ela, a paixão, deu as caras em alguns instantes, não vou negar!, mas quanto mais eu a tocava, menos a sentia. Ela não estava mais nela. Ela se transferiu para mim, internalizou-se. "Ela não estava mais nela", que coisa estranha!, mas era verdade. Talvez tenha se desmaterializado. Ganhou vida própria, independente de um corpo. Estava em mim. Só em mim. Só, em mim.

Na minha ânsia em encontrar alguma justificação para o injustificável, pensei no latim - uma língua morta. Assim como o meu amor já não mais habitava o corpo do meu amor - a saudade que eu sentia dela não se realizava em sua presença - o latim já não mais existia no próprio latim. O latim se disseminara como uma entidade invisível, fertilizando a maioria dos idiomas vivos do nosso velho e novo mundos. Era isso! Ela e o latim. Duas entidades mortas que criavam vida, a raiz do vocabulário latino, da gramática do amor que jamais apontaria para um lugar comum, pois estaria sempre em outro lugar - distante ou perto, não importa mais.

Tentamos nos ver mais e mais. Tentativas frustradas. Quanto mais a via, menos ela existia para mim. Quanto menos a via, mais seu afeto se fortalecia dentro de mim. Eu a amava em silêncio. Eu a amava em sua ausência. Eu a odiava em sua presença. Como eu não queria apagá-la de minha vida - pois ela já estava mergulhada em mim - não mais a vi. Deixei que seu fluido me dominasse. Ela é o latim. Uma língua morta. Mas responsável por fecundar as riquezas do francês, do espanhol, do português, do italiano... Eu a amo. Eu não a amo. Eu só a amo quando não estou com ela. Uma condenação. Eu só a vejo... em outra. Eu só a sinto... em outra. Ela mesma... nunca mais.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 6 de agosto de 2011

A Sós.














Quase toda a noite, caminhava pelas ruas desertas até a casa dele. Só se encontravam lá. Às escondidas. Ela se questionava sobre essa condição. Pressionava-o. Achava que ele não queria apresentá-la aos amigos, que se envergonhasse dela por alguma razão. Ele reagia, com ponderada virilidade, às suas exigências para arrancá-lo da alcova. Ela queria que a relação ganhasse visibilidade máxima. Torná-la pública era o seu objetivo. Achava que só assim confirmaria que ela a amava, a assumia.

Ele ficava irredutível. Contra-argumentava. Dizia que ela era tão importante que ele a queria com exclusividade. Não desejava compartilhá-la com olhares estrangeiros. Ele falava, falava e ela acabava cedendo. Deixava-se convencer. Não porque confiasse no poder de persuasão dele, mas não resistia àquela voz roufenha e melodiosa. Ela detestava confessar isso, mas sentia calores indecorosos sempre que se via tomada brutalmente de forma intrépida, passageira e, acima de tudo, clandestina, por aquele homem.

O encaixe, perfeito. Amavam-se como nenhum outro amante fora capaz. Resolviam suas rusgas quando ambas as línguas verbalizavam libidos inauditas. O resfolegar sinfônico das carnes. Naquele instante, inexistiam. Realização da nostálgica unidade perdida. Apesar de jamais terem renunciado suas diferenças, eram elas, em sua força demoníaca, que executavam o re-ligare em sua dimensão mais fluida.

Juntos, sentia-se completa. Na inevitável separação após cada noite de amor, sentia-se desamparada, carente, aflita pela promessa do que sabia ser impossível: Assumir seu amor publicamente. Quando não estava na casa do namorado, ela evocava o seu nome, trazia-o para perto de si, atribuindo-lhe uma das memórias mais belas. Embora se esforçasse para tê-lo, emoldurando-o com begônias e tulipas de sua imaginação, ela só conseguia se agarrar à devastadora ausência. E sua questão insistia, não calava, repetia: "Por que ele não me apresenta para os amigos?". "Por que eu tenho que ir sempre à casa dele?". "Só lá podemos nos encontrar?".

O tempo passava, e essa situação não mudava. Mantinha-se melancolicamente idêntica. Sempre. Invariavelmente. Mesmo não aceitando, irritada, magoada, ela seguia, durante certa hora da noite, o mesmo trajeto solitário até a casa do namorado. Pensava em desistir, endereçar-lhe impropérios, xingá-lo, vociferar, terminar o namoro. Mas uma estranha familiaridade a impulsionava para o destino cruel. Resignava-se, até gostava quando o corpo nu daquele homem apaixonante desfilava pelos seus sentidos, como louca aparição, saborosa alucinação. Ela não sabia como ele era na sua ausência. Também não se falavam ao telefone. Mas tinha certeza que seu pacato semblante sofria metamorfose inigualável ao se dar conta que a mulher amada estava presente, ao seu lado.

Numa noite, enquanto o esperava no banho, ela, sentada na beirada do colchão, encaracolava suas sedosas madeixas com o indicador. Enrolava os cabelos em movimentos espiralados até esticar a raiz, levantando quase totalmente o braço, bem acima da cabeça. Depois, num ato desavergonhado, deixava-os cair resolutos, modelando os cachos que se insinuavam, salientes, na direção em que o amado se banhava. Ao sair do banho, ele a flagrou em seu sedutor ritual, e hipnotizado pela faceirice da mulher, abraçou-a por trás num gesto impulsivo. Aturdida, sem esperar aquela reação, num gemido súbito de gozo, involuntária e reflexiva ação, lançou o cotovelo para trás com toda a força, contorcendo de prazer.

Ouviu um estrondo. Imediatamente olhou em direção ao barulho. Estava lá. Seu Adônis, nu, fatalmente estendido no chão, desfalecido. Apavorada, ligou para o pronto-socorro. Enquanto a ambulância não chegava, ela se ajoelhou, também nua, envolveu aquele corpo que já lhe presenteara com tantos orgasmos, inclinou a cabeça sobre seu peito e se pôs a chorar. Um choro fluido, livre, como jamais pôde chorar.

Na sala de espera da emergência, a notícia. Ele estava bem. Ela lhe atingira com uma invejável pontaria, na têmpora direita, o que lhe causou o desmaio. O médico lhe conduziu ao encontro do amado. No leito, os pais do rapaz lhe esperavam. Era a primeira vez que tinha seus "sogros" à sua frente. Enquanto ele dormia - efeito de sedativos - ela sorria de felicidade por oficializar - mesmo em inusitada situação - o namoro publicamente.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

domingo, 31 de julho de 2011

No Balcão de Feltro.









Puxou um cigarrinho da carteira de couro sintético. O balconista inexplicavelmente demorava para lhe atender o pedido. Sentou-se no banco de costas para o balcão. Acendeu o cigarro com fósforo, riscando-o numa velha caixinha que o acompanhava no bolso. Não era adepto de modernidades. Apesar de que isqueiro não fosse nada moderno - concluía em voz baixa.

Cruzou as pernas e se recostou no balcão, apoiando ambos os cotovelos na superfície de feltro. Ficou lá, relaxado, olhando para o vai-e-vem dos clientes que não cessava. Inclinou-se mais no balcão, como se já deitasse, tragando seu cigarrinho com a parcimônia dos que já estão com a vida ganha.

Sentiu uma mão pesada tocando o seu ombro esquerdo. Ficou alerta, mas não intimidou-se. Quando já se preparava para reagir àquela ameaça, sorveu a fumaça esparsa do cafezinho que fora servido e já estava à sua espera. Contrastando com a quentura da bebida, um frio percorreu-lhe as vísceras quando se imaginou vulnerável à iminência do ataque.

Logo se recompôs. Nem vestígio do garçom que lhe servira o café. Talvez estivesse lá dentro, preparando o pedido de outro cliente. Tomou a circunferência da xícara entre os dedos, dispensando a pequena asa de porcelana para que não queimasse a mão. Não se importava com o calor da bebida. Aquela temperatura, fumegante, possibilitava um choque de realidade. Precisava sentir a musculatura dos dedos encrespando como torradas na assadeira de pão.

Não se limitou a pequenas porções. Ingeriu goladas do líquido fervente como se bebesse água para matar a sede. Realmente ele estava com sede. Mas era outro tipo de sede. Era sede de vingança. Não ponderou muito sobre aquele momento. Desde que lhe desonraram, não mais pôde pensar em outra coisa. Sua mente alternava entre o ódio insano e um vazio espontâneo que às vezes o deixava ausente no canto de casa.

Por não possuir porte de armas de fogo, nem querer mexer com nada que lhe parecesse um revólver, resolveu levar sua velha faquinha de estimação. Com ela, realizou façanhas em outros tempos. Reservado para aquele encontro, apenas a cara, a coragem, e sua faca de aço inoxidável, bem afiada, embainhada na cintura. Foi a uma loja de cutelaria e comprou um material abrasivo, no formato de pedra, para que o fio de seu instrumento cortante ficasse com a amolação correta.

Avistou um vulto que se movimentava vagarosamente. Associou-o, pelo sombreado, o volume do corpo, à vítima de sua fúria. Antes mesmo que pudesse retirar a faca da cintura para empunhá-la em direção à sombra que se aproximava, um estampido fora ouvido pelos demais clientes. Não houve alvoroço. Os clientes continuaram sentados, bebendo, comendo e conversando. Só nos segundos que seguiram ao estrondo oco do revólver, silenciaram, mas rapidamente normalizaram como se nada de estranho houvesse acontecido.

No impacto, o projétil que lhe perfurou o crânio, lançou sua cabeça para trás até que batesse a nuca no balcão. O feltro amorteceu o barulho de carne esmagada. A xícara de café continuou firme entre os seus dedos rígidos. Apenas algumas gotinhas caíram em seu sapato de camurça marrom - agora também misturado ao sangue que lhe escorria do furo na testa. Com um esponja úmida e já encardida, o garçom esfregou o feltro do balcão para impedir que o sangue secasse e manchasse o pano de pelinhos verdes. Com uma pá de lixo, retirou os miolos que se espalharam no chão do bar.

Um bêbado que estava passando pelo local, viu aquele sujeito sentado de costas para o balcão, segurando uma xícara de café, com os cotovelos apoiados no feltro verde e a cabeça virada. Aproximou-se, e com um sorriso nos lábios, brindou sua garrafa de cerveja na xícara do cadáver. Falou algumas palavras de incentivo para o defunto. Exortou-o. Sentou-se ao seu lado e lhe perguntou se estava de ressaca, se sofria por alguma mulher. Sem obter respostas, o bêbado não insistiu. Ficou por ali, mudo, em solidariedade ao cadáver que, para ele, era um pobre coitado que sofria por amor.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 30 de julho de 2011

Pescador de Almas.


Enrolou a linha de náilon no molinete cromado, herança dos tempos de pesca com seu pai. Comprou um anzol que não enferruja. A isca, adquiriu numa loja especializada em brinquedos. A vara não era de bambu, como de alguns índios, ou de plástico frágil, mas sim de carbono sólido e flexível, emborrachada na extremidade.


Jesus, o pescador de almas - ele lera na bíblia em um dos encontros dominicais. Sabia de sua missão. Não se enganara. Estava preparado para assumir tarefa tão benemérita.


Subiu ao andar no qual residia, o vigésimo segundo. Colocou o embrulho na mesa da cozinha. Foi ao armário da sala e guardou em uma gaveta o excesso de linha - sobra do molinete. Encaixou todas as peças como se as equipasse numa espingarda ou em outra ferramenta letal.


Fez o sinal da cruz. Abriu a janela do quarto. Com a vara em punho, tomou impulso e lançou a linha como se a jogasse em águas profundas. Com um soldadinho de chocolate enfiado no anzol, a linha desceu até o décimo terceiro andar. Um menino que brincava próximo à janela do seu quarto, maravilhou-se com o bonequinho de chocolate bailando diante de seus olhos como pêndulo hipnótico.


Subiu numa cadeira. A janela não tinha grade de segurança. Eufórico, o menino fazia força, com a boca bem aberta, para alcançar o doce - a isca no anzol. O garoto já estava por um fio, pendendo no vazio de treze andares que o separava da rua, quando o pai chegou. Antes mesmo que pudesse gritar, deu um salto - como os competidores na corrida de obstáculos - e conseguiu segurar o menino. Ainda atônito, com o suor deslizando incessante pelo seu rosto, absoluta afonia, retirou o anzol que quase cravara na úvula retraída de sua garganta.


A polícia chegou. Procurou o culpado, insano, criminoso. Não encontrou ninguém. No vigésimo segundo andar, apenas alguns peixes estragados, atraindo moscas, foram descobertos na pia da cozinha.



MINI-CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

Destino Selado.

















Deu alguns passos para trás, abaixou-se e bateu na terra com a mão espalmada. A poeira alvoroçou-se até tampar a visão do compadre Técio. Apenas com alguns resíduos de terra moída sobrevoando seus olhos, percebeu que Pai Tunho continuava na mesma postura. Contemplava o vazio. Pensou em bater em seu ombro para trazê-lo novamente à realidade. Mas recuou, temendo interromper o transe. Soube que, assim como os sonâmbulos que ao serem acordados podem cair duros no chão, se as pessoas em transe fossem sacudidas, incorporariam alma de outro mundo para sempre. Técio se afastou mais e descansou o corpo ao encostar no espesso tronco de uma mangueira do tipo carlotinha.

Pai Tunho havia flexionado o joelho esquerdo - no qual apoiara o queixo -, mantendo a planta do pé em contato com a terra, enquanto permanecia com o joelho da perna direita encostado no chão. Suspirou fundo. Procurou Técio com as velhas vistas. Ergueu o braço que não servia de base para sustentá-lo naquela posição cansativa, e pediu ao companheiro para que o ajudasse a se levantar. Técio saiu rapidamente do ostracismo e saltou ao encontro daquele homem para o qual devia a própria vida.

Quando jovem, Técio era conhecido na cidade de Barro Batido como um exímio capoeirista. Desafiava todos os mestres e iniciados do vilarejo para jogar e dançar. Poucos se arriscavam. A maioria esmagadora saía derrotada sem que Técio encostasse um dedo sequer em seus oponentes. Eles tombavam exaustos por não suportarem o ritmo frenético de sua ginga.

Próximo à roda de capoeira, havia um homem que, com seriedade, ficava sempre por ali apreciando a diversão dos meninos. Todos sempre estranharam a presença taciturna de Tunho. Vestido com uma longa bata branca, diversos colares e fumando seu inseparável cachimbo, Tunho demorava-se sentado numa cadeirinha de madeira para assistir à capoeira. Quase ninguém tinha coragem para chegar perto de tamanho macumbeiro - temia a crendice popular. Achavam até que se fosse encarado por mais de dois segundos, os curiosos seriam vítimas de mandinga e reza brava.

A fama de Técio se alastrara para além das fronteiras da humilde Barro Batido. Forasteiros souberam do nome daquele camarada tinhoso que enfrentava quaisquer briguentos que entrassem na roda. Um dia, um malandro que já tinha o orgulho ferido por outras pendengas, apostou com os comparsas que mataria Técio. Ele escondeu uma peixeira por baixo dos farrapos do que fora uma espécie de quimono e pulou na roda para jogar. Quando esse forasteiro malicioso, esquivando de um golpe de Técio, desembainhou a peixeira do cinturão, e estava prestes a perfurar-lhe o abdômen, Pai Tunho surgiu na frente do sujeito mal-intencionado e lhe arrancou a faca. Ninguém compreendeu aquela aparição. Era improvável que Tunho tivesse saído de sua cadeira, plenamente acomodado, e, de um salto, chegasse entre os dois para desarmar o adversário de Técio. Fora inexplicável tal façanha. O que se sabe é que o forasteiro, perplexo, ajoelhara as pés de Tunho e ficara lá, mudo, por longos minutos, até virar-se de costas e sair correndo para nunca mais voltar.

A partir de então, Pai Tunho tornou-se querido por todos, principalmente por Técio - que passou a segui-lo incondicionalmente - e pelas crianças que rodeavam-no para que lhes contasse histórias fantásticas dos seus antepassados. Técio, além de seguir Pai Tunho, virou um dos seus mais dedicados e promissores aprendizes. Fora batizado pelos orixás, recebendo justamente o nome Técio - seu nome civil era desconhecido -, iniciado e doutrinado pelas entidades espirituais que lhes protegiam e davam deveres para cumprimento e a disciplina do povo.

O tempo passou, compadre Técio já estava se preparando para suceder Tunho em sua missão de Pai, mas as questões começaram a aflorar. Tunho já estava cansado, bem velho. Logo desencarnaria para se juntar às entidades as quais se dedicou durante toda a vida de humilde servidor. Técio fora nomeado para sucedê-lo. Porém, ele não se sentia preparado e sabia que não teria a mesma capacidade e abnegação para continuar o sublime trabalho de Pai Tunho.

Técio estava se ajeitando para se despedir e tentando arrumar difíceis palavras para dizer a seu mestre, quando, à sombra daquela frondosa mangueira, Pai Tunho ajoelhou-se. Técio não conseguiu abrir a boca para pronunciar as palavras de despedida, muito menos para se explicar de sua covarde decisão. Pai Tunho, em transe, silenciou-se, de olhos fechados. Recolheu-se em sua insignificância perante os orixás, e recebeu a graça de ouvir sagradas orientações. Foi nesse instante que Técio, encostado na mangueira, como para não perder o equilíbrio da razão, num conflito irredutível e trágico entre a sua vocação, seu desejo, para a qual dedicou-se desde que Pai Tunho o salvou, e a vontade medrosa de se esquivar, fugir para cidade, refazer sua vida distante do lugar no qual, de suas raízes, brotariam cactos e flores.

Pai Tunho estendeu a mão. Técio saiu do seu conforto sob os galhos da mangueira para erguer o velho. Quando sentiu seus dedos tocarem a áspera e enrugada mão de Tunho, Técio percebeu a força dos ventos que sopravam em sua direção, assoviando ao atravessarem as lâminas cortantes das folhas novas. Não conseguia abrir os olhos, pois a força era tanta que suas pálpebras não se mexiam. No momento em que pôde ver, Pai Tunho havia rejuvenescido, mas não perdera o vigor e a sabedoria de um homem nobre. Fixou os olhos. A imagem se embaçara. Notou certa semelhança e familiaridade.

Surpreendido, Técio não pôde mais duvidar. Era ele o novo Pai. Tunho já desencarnara havia tempos. Aquele Tunho jovem que surgira diante de seus olhos, não era Tunho. Era um Pai, mas não Tunho. Técio estava diante de um espelho d'água cristalino refletindo áurea imagem no muro branco do quintal. Técio era agora, Pai Técio. Seguiu seu destino. Assimilou sua condição transmitida pelo amor. Destino selado - trágico e belo.



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Partido.
















Passou a mão no peito e suspirou. Não era a primeira vez que estava apaixonada. Sabia de todas as mazelas do término de um amor por experiência própria. Não queria sofrer novamente. Jamais. Já havia tomado uma potente vacina contra as consequências do amor não correspondido ou abruptamente rompido sem a menor explicação. Mas apesar disso, a imunidade não alcançava aquele órgão pulsante sobre o qual Pascal afirmou ser o portador de razões além da razão humana.

Opondo-se a suas amigas alienadas, que repetiam sucessivamente uma determinada condição da qual tinham ojeriza, sem que pudessem admitir suas escolhas, Débora era consciente de seus atos. Não duvidava de sua condenação aos amores e desamores. Nunca se imaginou vitimada por estranhas forças sobre as quais não exercia nenhum domínio. A única coisa que Débora não conhecia era o motivo dessa incapacidade de acertar no que verdadeiramente queria. Quando um novo amor surgia, ela possuía a certeza que tudo, mais cedo ou mais tarde, ruiria. Acabaria tragicamente como em todas as outras vezes.

No início, chorava com amargura pelos cantos da casa, sendo consolada por uma amiga que também fracassava em matéria de coração, com a diferença que a amiga acreditava que eram os homens que não prestavam. Débora não se submetia à repetição do fracasso. Não porque ela descobrira uma forma de interromper essa sina repetitiva - pois recusava a ingenuidade das amigas -, mas porque não queria perder a exclusividade como causadora de suas desgraças afetivas.

Contrariando expectativas, a continuação dos fracassos não possibilitou que Débora adquirisse maior aprendizado da vida. Seus erros não produziam acertos. Numa lógica primária, quanto mais errava, apenas errava ainda mais. No seu caso, o erro só levava a maiores sofisticações do próprio erro. Errava de maneira cada vez mais elaborava. Na primeira vez, um namorado a deixara numa longa conversa a luz de velas num restaurante elegante da cidade. Ele a havia convidado para jantar, preparou os maîtres para a situação, decorou e ornamentou aquele encontro, também levando flores e uma caixinha de bombons. Débora não se conformou ao ser informada que seu namoro chegara ao fim. A delicadeza e cortesia do rapaz em dizer o sonoro "não!", a sensibilizou. Pelo menos teve a oportunidade de xingá-lo e estragar o clima romântico. Aquilo lhe fez um bem enorme. Havia ridicularizado-o na frente de todos daquele restaurante chique. Perdeu o namorado, mas não perdeu a dignidade.

Só que já na segunda vez que perdeu um amor, o rapaz nem se preocupou em organizar um evento para lhe dar a notícia. Ele simplesmente chegou à sua casa - sem levar nenhum mimo -, segurou suas mãos, pediu que sentasse com ele na mesma cama que fora palco de noites memoráveis, olhou fundo nos seus olhos e disse: "Está tudo acabado". Só isso. Diante da revolta de Débora, ele apenas virou as costas com uma relutante lágrima nos olhos que insistia em ficar presa nos cílios, e foi embora para sempre.

Já o rapaz do terceiro namoro, terminou com ela sem nem ao menos olhar em seus olhos. Ele terminou por telefone. Fez uma única ligação e, revelando um pouco de constrangimento, despejou suas verdades insipientes, rompendo de modo frio e distante. Débora tentou ligar para ele diversas vezes, mas não atendia seus telefonemas. Ela chorou, mas demorou menos para se conformar. O quarto rompimento foi por e-mail. O rapaz lhe enviou uma mensagem sucinta justificando seus motivos, sem nem ter dado aviso prévio, e desapareceu. O quinto então nem se fala. Depois de uma noite quente de amor, ele nunca mais deu as caras. Ele a riscou do mapa sem nenhum e-mailzinho.

E os rompimentos foram aumentando e evoluindo em termos de sofisticação. Nesse caso, a palavra "sofisticação" não se refere ao complexo e ao mais bem elaborado. Muito pelo contrário. Caso fosse assim, o primeiro, o do jantar de velas, seria o mais sofisticado. Mas essa palavra tem a ver com a escala decrescente. Significa que com o passar do tempo, Débora testemunha - sem ser vítima, ela sabia muito bem - uma maneira de romper o relacionamento cada vez mais líquida e evasiva. Então, ela só pôde compreender que se os caras a largavam sem nem participarem de uma conversinha sequer, a sofisticação em expulsá-los inconscientemente só poderia estar do lado dela. Era ela, e mais ninguém, a responsável por acabar com seus amores. Mas qual seria seu requinte de crueldade? - Ela avaliava. Será que mordia? Mas mordiscar incrementava o sexo, levando-os a excitações que não estavam no gibi. Não sabia a causa. Só sabia que a causa estava nela.

Débora passou um tempo sem arranjar namorado. Apenas saía com as amigas e se divertia em animadas conversas regadas com muita cerveja. Até que um dia reencontrou seu primeiro namorado - o que terminou com ela a luz de velas. Ele tinha se casado com outra mulher e o casamento não ia bem das pernas. Disse que desde que romperam, ele sentia sua falta. Nunca mais sentira prazer com nenhuma mulher do mesmo jeito que sentia com Débora. Ele a abraçou na frente das amigas - já alterado pela bebida, pois também bebia com amigos na mesa ao lado -, deitou a cabeça em seu colo, chorando. Débora ficou comovida com aquele gesto suplicante. Ele levantou a cabeça e tentou beijá-la. Ela recuou, colocando as mãos espalmadas em seu rosto, como um sinal para que se afastasse. Ele então subiu na cadeira e gritou que a amava. Débora o fez descer e o conduziu em silêncio até uma mesinha reservada na parte de trás do bar. Sentaram-se. Ele em prantos, soluçando, pegou suas mãos entre os copos da mesa e disse que não viveria mais sem ela. Débora ouviu tudo sem dizer nenhuma palavra.

Enquanto o rapaz discursava em absoluta aflição, Débora teve um lampejo de verdade. Aquele homem se debulhando em lágrimas só podia significar uma coisa: Eles terminavam com ela porque se sentiam impotentes para assumirem que só ela seria o amor de suas vidas. Ela se recriminou esse tempo todo à toa. A solução sempre fora objetiva. Débora continuava, em silêncio, sendo iluminada pela razão. O rapaz, chorando copiosamente, deu um tapa na mesa, agarrou os ombros de Débora, olhando profundamente em seus olhos e começou a repetir sem parar que não vive sem ela de jeito nenhum. Ela disse que compreendia perfeitamente, e esboçou um sorriso. Disse que ficasse calmo, pois ela estava entendendo tudo.

Não tinha mais nenhuma dúvida sobre a missão para a qual fora eleita: Débora era uma deusa reprimida num corpo de mulher que causava o amor dos homens e os enlouquecia. Eles rompiam com ela por não mais poderem viver com tanto amor. Não eram capazes de revelarem seus segredos. A linguagem não era suficiente para traduzir tal excessivo sentimento. Só seu primeiro namorado, em desespero, pôde sintetizar e transmitir-lhe sua aflição. Débora sabia o que tinha que fazer. Ele não poderia viver sem ela, e ela não poderia viver com ele. A solução para que ele encontrasse a paz estava por vir.

Débora abriu a bolsa em seu colo. Pegou um objeto pontiagudo. Olhou fixamente para o rapaz em franca aflição. Com uma das mãos acariciou o rosto daquele homem que era seu primeiro namorado. Tentou acalmá-lo com afagos. Foi aí que, com um movimento brusco, levou a mão com o objeto ao pescoço do rapaz, e massageou-o com as pontas dos dedos. Imediatamente, ainda com o pescoço seguro entre o polegar e o indicador, beliscando-o levemente, deixou cair o objeto sobre a mesa. Ele parou de chorar, olhou em direção ao objeto e se surpreendeu com um porta-retratos em formato de batom, contendo a fotografia de Débora. Ela sabia que com a sua foto ele jamais sentiria sua falta. Deixaria na cabeceira de sua cama. Quando sentisse saudades, abraçaria o porta-retratos e ficaria em paz. Débora se levantou convicta, deixou o rapaz quieto sentado à mesa, e foi beber com suas amigas. Já se passara muito tempo que estava ausente. Não poderia abandoná-las - além de estar com muita sede... de cerveja... é claro!



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Alegria na Cara.














Valter se segurava para não ceder ao irresistível impulso de virar a mão na cara de alguém. Não suportava mais o acúmulo de tensão pela vontade reprimida de distribuir pancadas a torto e a direito. Tentou puxar da memória alguma pessoa que lhe causasse aversão. Não achou nenhuma. Todos eram seus amigos, lamentavelmente amigos. E isso era o pior de tudo. Sua cabeça parecia oca, sem lembranças de desafetos para alimentar sua ira. Era bastante consciente que não se irritava facilmente. A vontade de espancar as pessoas não era motivada pelo humor explosivo ou revoltado. Valter sempre foi muito calmo e de bem com a vida. O desejo de quebrar algumas cabeças não excluía seu temperamento alto-astral.

Palavras amigas de reconforto, gentileza e solidariedade jamais faltaram no vocabulário de Valter para que as ofertasse aos amigos nos momentos mais difíceis. E a recíproca era mais do que verdadeira. Quando passava por apertos, sejam emocionais ou financeiros, seus amigos sempre se dispunham a ajudá-lo prontamente, sem que precisassem pensar duas vezes. Tinha muitos amigos e nenhum inimigo. Nada o tirava do sério. Jamais se aborrecia. Sua sensibilidade para a alegria funcionava como antenas para boas companhias, atraindo todo tipo de gente que se deliciava com suas história e bom humor.

Para Valter, nunca o clima esquentava. Não havia mal tempo. Sua alegria contagiava até os vitimados pela baixa autoestima. Embora continuasse distribuindo sorrisos - e isso não era nem um pouco cansativo -, ele queria inovar, acrescentar mais possibilidades à sua vida. Valter queria distribuir socos e pontapés a todos ao seu redor. Quanta satisfação teria se pudesse aleijar alguns narizes! Ele acreditava que se realizasse seu desejo de espancamento, certamente seria um homem completo. Não seria mais alegre do que já era, pois sua alegria já chegara ao máximo que um ser humano pode sentir. Mas tinha plena convicção de que produzir hematomas no meio da cara das pessoas representaria a glória plena na Terra. Pensou, pensou, e não chegou a lugar nenhum. Por mais esforço que fizesse não era capaz de extrair a mínima desavença em sua história que justificasse um ato agressivo de sua parte. A felicidade generalizada fazia-o malograr em sua nobre intenção de amassar umas cacholas.

Diziam que Valter possuía excepcional poder persuasivo. Confiante nesse dom, começou a elaborar um plano para convencer os seus amigos que levar pancadas sem renunciar a paz interior, significaria a aquisição da maior das virtudes: A Bem-Aventurança. Ao colocar em prática seu teorema, enfrentou a resistência pacífica dos sujeitos mais inquietos. Eles alegaram que tal comportamento se aproximava de um tipo de masoquismo resignado, típico das donas de casa que apanham de seus maridos em silêncio, sem soltar nenhum pio, como santas imaculadas. Valter recorreu à sua infinita sapiência e reavivou o exemplo de abnegação de Mahatma Gandhi.

Esse líder político, adepto da não-violência, pregava a desobediência civil para libertar a Índia do domínio inglês. Gandhi se impôs diversos estigmas, como greves de fome - longos jejuns - como estratégia reformista. Conta-se que certa vez, Gandhi e seus discípulos foram duramente reprimidos por oficiais britânicos. Eles imploravam pela liberdade e pelo fim do massacre econômico. Os soldados riram daqueles homens raquíticos e desarmados que se aproximavam. Então, para divertirem, os ingleses desafiaram os desnutridos indianos para que se conseguissem bater em um deles, concederiam alguns benefícios, permitindo-os que atravessassem a rua.

Gandhi humildemente se abaixou e ofereceu a cabeça para que os ingleses lhe desferissem golpes. Logo todos os seus discípulos repetiram o gesto do líder. Os soldados estranharam aquela bizarra atitude, não acreditando no que viam. Mas obedeceram. Bateram tanto nas cabeças dos indianos que ficaram completamente exaustos. Já não aguentando mais depois de tanto baterem, acabaram caídos e vencidos. Os indianos ,então, mesmo machucados, saíram vitoriosos. Valter quis transmitir uma lição de moral, citando as conquistas heróicas de Gandhi.

Seus argumentos traçavam considerações elogiosas sobre os benefícios de levar cacetadas na moleira. Gandhi foi um vitorioso levando porrada e passando necessidades. Quanto mais apanhava, mais ganhava a guerra e inscrevia seu nome como benfeitor da humanidade. Os amigos de Valter ouviam-no com atenção. Eles acompanharam seu raciocínio até serem dobrados pela lábia digna de um político brasileiro. Valter novamente resgatou a memória do mestre indiano para acrescentar uma valiosa observação: Gandhi alcançou a paz e a plenitude, levando porrada dos ingleses. Ele não era masoquista. Ele era um homem que conhecia a verdadeira felicidade - Afirmou Valter.

As pessoas às quais Valter endereçava seu discurso não se surpreendiam com a facilidade do amigo em abordar as cicatrizes humanas - assuntos que abalariam a maioria dos ouvintes - sem esboçar a menor angústia. Ninguém questionava que por trás daquele sorriso meigo algum tipo de perversão jazia camuflada. Caso houvesse algum distúrbio, Valter ignorava. Ele acreditava piamente em suas boas intenções. Um dos amigos, apoiando-se na leitura de um filósofo esloveno que sempre citava, afirmou que os movimentos pacíficos que resultam em grandes reformas sociais, são de extrema violência, pois mudam toda uma crença popular. Mudar a forma de pensar é a violência das violências.

Após as considerações finais do grupo de amigos, já devidamente convencidos pelas generosas alusões e milagrosas evocações do discurso de Valter, eles ficaram tão eufóricos que se despiram e lhe ofereceram pedaços de galhos e as fivelas dos cintos - que já não mais eram usados para segurar suas calças - para que Valter iniciasse o ritual de espancamento. Viraram-se todos de costas para o bem-aventurado Valter. Recebendo essa resposta afirmativa de total confiança em suas palavras e aceitação de suas nobres intenções, Valter não se conteve e soltou um berro de contentamento.

Imediatamente, ainda com a mão suspensa - já com o cinto em punho -, ele desabou fulminado. Por não sentir nenhuma pancada, um dos amigos se virou e deu de cara com o corpo de Valter estendido no chão. Ele morrera com o braço para cima, o mesmo que empunhava o cinto, e com um semblante de extrema felicidade. Ao invés de chorarem, eles se alegraram com aquela partida maravilhosa. Em sua lápide, os amigos mandaram que a frase que mais representasse o espírito feliz de Valter fosse inscrita: "Segue para a eternidade, o homem mais feliz do mundo!"



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Morrer de Prazer.













O corte profundo anunciava o fim. seu infortúnio sempre fora seu maior deleite, sua fortuna. Ter sua pele arranhada era o mínimo dos prazeres que poderia sentir, um acréscimo humilde de gozo. Não que tivesse apreço pelo flagelo como os penitentes. Jamais pensara em pagar promessas. Não se imaginava subindo a infinita escadaria de um outeiro, de joelhos, para agradecer a graça gentilmente cedida pelos deuses. Tinha aversão ao ler nos livros de história sobre a punição impingida aos escravos infratores. A visão da chibata ardendo no lombo causava-lhe ânsia de vômito.

Há tempos não obtinha tanto prazer quanto o de ser achincalhado por mãos femininas. O filete sanguíneo que despontava das feridas assemelhava-se ao gotejar das lágrimas, ao suor que brotava do orgasmo e ao líquido seminal depositado na glande exausta. Ele havia aperfeiçoado uma tática infalível para abordar as mulheres mais selvagens. Baseando-se em estudos esotéricos, apostou na potência dos nomes como parâmetro de personalidade. Frequentava botequins de quinta categoria e puxava assunto com as mais variadas mulheres - a maioria prostitutas - até que elas lhe dissessem seus nomes completos. Apesar de quase nenhuma revelar a verdadeira identidade, ele insistia. Elas, já aborrecidas por sua perseverança patética, apenas lhe informavam o "nome artístico" - ou de guerra -, como costumava ser chamado pelos zombeteiros bebedores compulsivos.

Ele desenvolveu um método de avaliação que chegou ao sobrenome "Silva" como um ideal de agressividade espontânea. Num cálculo etimológico, descobriu que "Silva" se originou de "Selva". Os indígenas, por seus hábitos selvagens, foram tecnicamente rotulados de "silvícolas". Então, concluiu, as mulheres com esse sobrenome, Silva, seriam logicamente mais enfurecidas na cama. Algumas mulheres, interessadas em migalhas monetárias e já entediadas pela repetitiva pergunta daquele homem esquisitão - possível cliente -, diziam que tinham "Silva" como nome do pai. Outras, que o "Silva" vinha da mãe. Pouco importava. Ele se satisfazia, calava a boca, e as convidava para sua casa, pagando-lhes o programa. Algumas se assustavam com o comportamento extravagante do rapaz. Ele pulava na cama, ficava em pé, soltava gritos histéricos e se contorcia moderadamente como elástico velho.

A maioria de suas parceiras chegava ao ponto de se apavorar, ameaçar chamar um médico - quando parecia que ele fora vítima de ataque epilético -, ou mesmo a polícia - quando a esdrúxula cena se comparava a dos mais perigosos maníacos sexuais. Muitas nem esperavam para receber o pagamento. Simplesmente viravam as costas e corriam desesperadas para a rua. Quando ele recobrava a consciência, não via mais nenhuma mulher ao seu lado, muito menos seus tão queridos arranhões. Por não ter obtido êxito com o minucioso estudo dos nomes, partiu para o cara-a-cara. Ele passou a encarar as mulheres. Tentava identificar algum traço que transmitisse o temperamento intempestivo ideal para realizar seus sonhos de retalhamento orgástico.

Depois de muitas investidas fracassadas, ele finalmente encontrou aquela que seria a encarnação do seu gozo, sua alma gêmea, seu algoz sexual. Ela exibia um semblante harmônico, equilibrando na medida certa um olhar irascível com a doçura de lábios bem desenhados. Um misto de ternura com ódio brutal. O odor da sensualidade tirânica antecipava o instante supremo de ser trucidado pelo prazer. Aproximou-se dela com a convicção típica dos santos e dos paranóicos.

Não foi capaz de cuspir palavras sujas, como as escritas por autores anônimos na latrina dos banheiros públicos. Não que as palavras de baixo calão lhe faltassem na hora "h" - ou no ponto "g", pouco importa -, mas porque a libido as envelopava como cartas-bomba para que fossem entregues a um destinatário desprovido de destino. As palavras inexistiam. Agora o ato, em sua dolorosa verdade como boa bofetada, ridiculamente real - justamente o que ele mais ansiava -, era a única ferramenta comunicativa de que dispunha. A comunicação em sua mais radical violência. Estupidamente erótica.

Quando já estavam na cama, o carrasco e sua vítima se revezavam avidamente como num jogo infantil digno de reformatórios. Ela por cima, de pernas abertas, enganchada em seu tronco, açoitava-lhe verbalmente enquanto cavalgava com obstinação. Ele firme, esbelto, como um cavalo puro sangue, alternando rebeldia - para cravar com maior virilidade o membro -, com a submissão dos selvagens adestrados. Ao sentir os primeiros espasmos do orgasmo que lhe subia pela espinha, eriçando sua nuca, ela enfiou as unhas febris na carne úmida do seu homem-cavalo. Um uivo de prazer fora entoado como a nota mais aguda de um soprano. Se houvesse alguma taça de cristal na alcova, certamente não resistiria e explodiria como uma ejaculação quente - não de sêmen, mas do mais viscoso sangue. Os encontros corrosivos, antes ponderados, mais suaves e semanais, tornaram-se diários e cada vez mais intensos, famintos, com direto a dentadas, cera derretida no escroto e anzóis nos mamilos.

Uma noite, no auge da sandice, ela tirou da bolsa um garrote feito com dois bastões de alumínio e um potente fio de náilon. Sem que ele percebesse, ela iniciou lentamente o estrangulamento. Enquanto o fio apenas encostava em sua garganta, ele nada sentira. No início, o regozijo se apresentava em sua mais exuberante manifestação. Mas quanto mais ela apertava o garrote com os braços já cruzados em seu pescoço, mais ele sufocava numa dramática exibição de suplício. Naquele instante ele se desesperou. Sentiu a morte iminente. Já estava quase sendo sumariamente degolado. A asfixia o deixara de olhos arregalados e com a língua pendurada, como quisesse abandonar sua boca. O sangue escorreu-lhe pelo queixo, pois mordera a mesma língua que, vencida entre os dentes pontiagudos, desfalecera. O náilon já lhe atravessara as cordas vocais, tocando, como última melodia, o instrumento de solitária nota. Os espasmos de agonia substituíram os de prazer. O sangue descia quente como a seiva bruta que escorre de um tronco roletado.

Após o derradeiro trepidar de um corpo inconsciente, ela se afastou, limpou as mãos ensanguentadas nas coxas e na vagina - fecundando-se com a morte - manteve o garrote fincado no pescoço do cadáver, apanhou todo o dinheiro em sua carteira, guardou-o na bolsa também respingada de sangue e saiu da alcova com uma absoluta sensação de dever cumprido. Já na rua, em direção ao local em que faz ponto, no botequim, contando o dinheiro, satisfez-se por se sentir muito bem paga. Tinha total consciência que fizera um favor à sua vítima. Ela lhe deu o que ele mais desejava: Morreu em seu próprio gozo. Fora asfixiado pelo prazer.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 16 de julho de 2011

Tramar e Amar.














Os tiros explodiam lá fora, vibrando a vidraça empoeirada. A revolução chegara às ruas com os rebeldes amotinados na marginalidade conspiratória. Era somente na alcova que se tramava o futuro da resistência. Enquanto grupos mais radicais aderiam às armas de fogo, Jôsi e Théo guerreavam com as armas de tinta e das notas musicais. Era somente na escuridão das residências silenciosas que as inquietas lógicas apaixonadas traçavam o futuro da pátria. O risco de grampos telefônicos e de escutas espalhadas por algum agente do governo infiltrado, potencializava o clima paranóico de que quaisquer paredes ouviam muito bem.

O lar já não mais representava segurança, embora o refúgio fosse inevitável. Os manifestos políticos que Jôsi escrevia, assinando com um pseudônimo, foram descobertos, associados à sua autoria. Ela estava jurada de morte nas perversas entrelinhas da lei do seu solo materno. Precisando de abrigo, e recusando a opção do exílio, Théo, um velho amigo e exímio violinista, convidou-a para se esconder em seu modesto apartamento no Catete. Ironicamente, esse bairro carioca remetia aos aspirantes a oficiais militares, representantes do sórdido governo que tanto combatiam - os cadetes do exército. Era só trocar uma letra - o "t" para o "d" - que logo passaria de Catete para Cadete. O bairro do Catete foi a sede do poder Executivo até às vésperas do golpe militar - mais uma ironia. Jôsi prontamente assentiu o convite de Théo - irrecusável na ocasião , mudando-se para seu apartamento só com a roupa do corpo para não levantar suspeitas pela movimentação da mudança.

Théo mantinha uma posição quase apolítica, sem muitas participações nos inflamados debates que aconteciam sempre aos sussurros e às escuras. Ele era um músico em início de carreira, mas já conquistara um público vasto e fiel. Compunha importantes concertos em orquestra de câmara. Temia destruir sua promissora carreira, envolvendo-se com a subversiva esquerda revolucionária. Mas ao ver sua amiga em apuros, não hesitou em chamá-la para seu apartamento, mesmo tendo absoluta consciência de que Jôsi era uma militante de esquerda. Há anos não se viam. Jôsi sabia da existência de Théo pois acompanhava o noticiário. Nos suplementos de arte dos jornais, seu nome era citado com frequência como um violinista renomado, apesar de jovem. Théo sabia que Jôsi era escritora. Já lera alguns de seus romances, mas jamais desconfiara que ela fosse autora daqueles subversivos textos. Impulsionado por um estranho sentimento - estranho, pois nunca manifestara nada por ela -, ele não se fez de rogado e, mantendo as devidas precauções, conseguiu entrar em contato com a moça fugitiva.

Jamais passara pela cabeça de Théo a possibilidade de seu nome ser estampado nas principais manchetes dos jornais, não como músico de sucesso - que já era -, mas como foragido da polícia naqueles tempos de chumbo. Sabia que agora, abrigando uma subversiva, mais cedo ou mais tarde teria seu "crime" descoberto pelo DOI-CODI. O serviço secreto da polícia o perseguiria implacavelmente. Desde que Jôsi chegara, ele não mais dormia direito. Quando conseguia conciliar o sono, acordava apavorado no meio da noite, suando, após sair de um pesadelo em que quebravam-lhe os dedos, torturando-o para confessar o inconfessável. Nunca mais poderia tocar seu instrumento tão adorado por ávidas platéias - pelo som ímpar que só ele conseguia tirar do violino.

No início, Jôsi e Théo quase não se falavam. Apenas trocavam alguns tímidos olhares. Théo havia cedido o seu quarto a ela. Jôsi recusou, pois o quarto era amplo e muito iluminado, e ela não poderia dar esse luxo de exposição, entendido como um suicídio programado. Ela preferiu se instalar num quartinho de empregada humilde que ficava bastante afastado, nos fundos do apartamento. Lá ela passava horas escrevendo, quase o dia inteiro. Embora dividissem a casa, às vezes Théo ficava um dia inteiro sem ver Jôsi, como se ela não estivesse presente.

Angustiado, Théo ameaçou não sair mais de casa, mas Jôsi, sussurrando, logo interviu, advertindo-o que tal procedimento iria levantar suspeitas e que ele deveria se esforçar ao máximo para levar uma vida normal. Desconfiado, ele seguiu seus conselhos. Continuou participando dos concertos, ia ao mercado fazer compras e ensaiava diariamente em seu quarto. Para que não estranhassem o excesso de comida, eles combinaram de racionar os alimentos por um tempo para que Théo não comprasse em dobro - o que os entregaria, denunciando que ele hospedara alguém de maneira duvidosa.

Os dias foram passando e os dois se aproximando. Théo já acompanhava Jôsi em seus escritos no apertado quartinho de empregada. Ela pedia sua opinião e ele se enveredava gradativamente na tão temida política de esquerda. Jôsi, na calada da noite, também ia ao quarto de Théo para visitá-lo. Queria ouvi-lo tocando seu violino. Quando escrevia, solitária, no quartinho, e ouvia Théo ensaiar do seu quarto, ela imediatamente parava, recostava no espaldar da cadeira e se deixava embalar pela divina melodia. Mas Jôsi não podia entrar no quarto de Théo durante o dia por causa da iluminação e à noite, ouvi-lo tocar, também levantaria suspeitas - afinal, ele nunca ensaiara à noite. As visitas ficaram cada vez mais frequentes.

Falando baixinho, os dois passaram das conspirações de uma esquerda subversiva, às subversões do desejo. A paixão os arrebatava. Não mais a paixão pelo violino de Théo. Não mais a paixão pelo discurso político de Jôsi. Ambos não foram descobertos pela polícia, mas descobriram o amor. Numa noite, deitaram-se juntos. Tiveram uma inesquecível conspiração sensual, consensual, lasciva. Assim como a subversão política, a lascívia também era condenada pela censura, mas aquela cumplicidade erótica, nos sussurros da alcova, era apenas testemunhada pelas paredes surdas do quartinho de empregada. Os ouvidos pertenciam ao casal que tocava seus corpos em êxtase debaixo dos lençóis puídos. Théo tocava o corpo de Jôsi como um enfático dedilhar das cordas de seu violino. Era música! Jôsi apalpava Théo como se inscrevesse a linguagem única de uma excitação intransmissível.

Na manhã seguinte, enquanto do quarto iluminado de Théo ouviam-se os estampidos dos revólveres ordinários, do quartinho de empregada, na penumbra, nada de fora se ouvia. Jôsi e Théo só eram sensíveis aos sussurros do prazer. Naquele dia, ambos não saíram da cama. Eles haviam sido protagonistas da revolução: A revolução apaixonada do encontro ácido de seus corpos. Eles fizeram história. Tornaram-se gente. Não pelas armas, mas pelo sexo.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 9 de julho de 2011

Cafeteria Hospitalar.














Numa sexta-feira à tarde, voltando do trabalho, procurei uma cafeteria na qual pudesse relaxar. Por toda a extensão da rua em que passava - repleta de casas velhas e abandonadas, com um denso matagal decorando-as, nem sinal de um cantinho para saborear um bom café. Cheguei a pensar naquelas lojas que oferecem o precioso líquido negro como cortesia em encardidas garrafas térmicas, servindo o homem que espera "pacientemente" as compras da mulher. Mas também não havia por perto nenhuma dessas lojinhas. Caminhei, caminhei caminhei... E, de repente, senti o aroma de um cafezinho fresco, que acabara de ser coado.

Olhei para um lado... Para o outro... Cadê? Não tinha cafeteria. Concluí que o cheiro vinha da casa de alguém, pois já estava num ponto em que os espigões de milionárias construtoras cercavam-me, bordando a rua com um traçado irregular. Intrigado pela origem daquela invisível e hipnótica fumacinha, andei mais um pouco. Parei em frente a um hospital especializado em cardiopatias. Dois grandes cilindros de oxigênio bombeavam o gás por não menores tubulações, perdendo-se no interior do hospital. A porta automática se abriu. Do tapete vermelho estendido para o exterior como uma careta, uma elegante senhora deslizou graciosamente ao estilo das andorinhas. Observei atentamente. A fachada parecia mais um sedutor portal de um shopping center convidando os consumidores a esvaziarem seus ricos bolsinhos.

Já quase retomando meu caminho, o cheiro do café voltou a me invadir, acariciando meu desejoso olfato. Dei um passo para trás e novamente fiquei perante o sofisticado nosocômio. Bem... Uma estrutura arquitetônica um pouco sem noção e realmente cômica. Não sem estranheza e espanto, tive que reconhecer que o fascinante aroma vinha do hospital, sem sombra de dúvidas. Quando a porta automática se abriu, empaquei no meio. Fiquei lá estatelado ao ver a decoração estonteante da cafeteria. Um garçom, notando menos a baba que escorria no canto da minha boca, do que demonstrando preocupação em desobstruir a passagem inconvenientemente entupida pelo meu corpo petrificado, sugeriu que eu me sentasse a uma mesa. O susto que se estampava em minha cara deve ter aguçado a sensibilidade dos abnegados enfermeiros de plantão. Mas, pasmem! Mão haviam enfermeiros de plantão. Só garçons adequadamente arrumados para um digna festa de gala.

Por alguns segundos eu quis recuar e sair correndo dali. Mas continuei lá. Acabei de entrar e segui a sugestão de me sentar. Aquilo era tudo, menos um hospital. Fato! Se os funcionários se comportassem como se estivessem num hospital, certamente teriam me jogado numa maca e me levado para o CTI, visto a minha cara de babaca, não acreditando no que estava diante dos meus olhos. Percebi que as evidências também enganam. Ainda sem confiar nos meus sentidos, dei uma olhadinha ao meu redor. A movimentação dos clientes e a maneira que os garçons os serviam, eram as mesmas de qualquer lanchonete que se preze - sem contar a pitada de requinte e elegância que a maioria das cafeterias não tem. Não poderia negar. Aquele lugar, como um hospital, era uma excelente cafeteria, obviamente merecedora de ser incluída no circuito gastronômico da cidade. Mas acredito que o tabu por se localizar num ambiente hospitalar não permitiria que figurasse em nenhum catálogo indicativo das melhores opções gourmet.

Rompi a barreira do alerta geral que foi ligado em mim - pois estava atento por causa da hipótese dos cafés estarem envenenados. Afinal, eles poderiam ter feito algum acordo ou pacto com o diretor do hospital, envenenando suas bebidas para causar ataques cardíacos, aumentando o faturamento dos seus comércios. Mas descartei essa possibilidade, pois o preço que o proprietário já estaria pagando para manter aquele espaço - aluguel gentilmente cedido pelo hospital - deveria ser tão exorbitante que poderia arrancar o olho do dono do café. Aí, não seria ali que iriam tratar de um caolho. Acho que a segunda hipótese era a mais economicamente viável.

Não totalmente relaxado, mas já tendo a desconfiança vencida, pedi uma xícara de café carioca. Não estava muito disposto. A concentração do expresso me tombaria facilmente. Por isso pedi com um pouquinho mais de água. Fui servido numa bandejinha com o açúcar mascavo como mais uma opção além do adoçante e do açúcar refinado. Não adocei com o mascavo porque o sabor se alteraria de tal maneira que ninguém distinguiria o café do caldo de cana. Comi o biscoitinho amanteigado que veio de cortesia, molhando-o antes no café. Recostei na confortável poltrona hospitalar da cafeteria e comecei a observar as pessoas que, como eu, também se deliciavam com os quitutes e aperitivos.

Sei que na emergência do hospital, muitos pacientes e seus familiares dão entrada no mais absoluto desespero. Muitos são internados e submetidos a cirurgias. A maioria dos familiares - os que não torcem para que o parente abastado morra rapidamente, tendo acesso às heranças - sofrem mais do que os enfermos. Alguns pessimistas tem convicção que os hospitais são a porta de entrada dos cemitérios. Eu que não sou adepto desse ceticismo, prefiro entender que os hospitais são os portadores das nem sempre tão disputadas chaves de São Pedro. Mas paraíso mesmo era aquela cafeteria. Impossível que alguém morresse ali.

Esse hospital tinha entrada por duas ruas paralelas. Suas instalações atravessavam o quarteirão. Do lado da emergência, a rua era calma e florida, como de uma cidadezinha do interior. Do lado oposto, no qual se encontrava a cafeteria, a rua era agitada e barulhenta. Talvez a direção do hospital acreditasse que passar pela rua silenciosa auxiliaria, como numa terapia, aos doentes que chegassem à emergência em fase terminal. Ou talvez a rua vazia ajudasse a entrada e saída das viaturas socorristas. As ambulâncias não passavam pela rua de acesso à cafeteria. Acho que se invertessem as posições, colocando a cafeteria no lugar da emergência, certamente quando os pacientes moribundos vissem a obra de arte e o frescor de vitalidade do elegante café, se recuperariam instantaneamente - assim como o macarrão japonês miojo. Se alguém tivesse a ousadia de tentar morrer ali, o garçom a curaria prontamente.

Todos que usufruíam do lugar estavam divinamente ornamentados. Gente finíssima. A conversa girava sobre todos os assuntos, menos sobre doença e morte. A maioria das discussões abordava os temas prediletos da futilidade, mas ainda assim negavam qualquer possibilidade de tocar as farpas das doenças e das mortes. Pela primeira vez tive a experiência de estar num hospital em que a morte não existia, como as sujeirinhas faceiramente varridas para debaixo do tapete persa. Uma jovem rodeada por familiares que pareciam visitá-la em sua juventude e vigor, ao invés de visitarem algum paciente à míngua, do alto de sua beleza e formosura - com seus finíssimos saltinhos - contava para uma platéia embasbacada, a glamorosa história de seu passeio pela Europa.

Ela chegou a falar que tinha acabado de fazer uma visitinha à tia hospitalizada - mas isso era o de menos. O que importava é que estava prestes a se casar e os preparativos chiquérrimos do casamento não poderiam falhar de nenhuma maneira. Ela tirou da bolsa um embrulhinho que segundo ela continha uns docinhos finos. Perguntaram-na sobre o nome dos doces. Ela disparou com um fluente francês parisiense que se tratava de "petit-gateau", e que não deixaria que eles experimentassem, que deveriam esperar até seu casamento.

Encantado, tendo já esvaziado quase completamente minha xicarazinha de porcelana - deixando apenas um restinho no fundo, como manda a fina etiqueta -, eu me retirei com a doce sensação que em vez de ter saído de um hospital, acabara de me despedir dos elegantes convidados de uma festa da alta sociedade. Talvez eu devesse ter adoçado meu café com o açúcar mascavo. Assim poderia ter eliminado qualquer resíduo do seu característico amargo.



CRÔNICA ESCRITA por ALEX AZEVEDO DIAS.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Apenas Um Sonho.















Todos o aguardavam ansiosos. O grande gênio da psicanálise estaria ali para nos doar pitadas de sua quase infinita sabedoria. O auditório estava lotado. Alguns em silêncio, já concentrados. Outros, como eu, agitados e falando baixinho para seus vizinhos de cadeira, sobre a demora do palestrante. Seu nome foi anunciado. Surpresos pela notícia, não se contentando pela espera, os convidados se viraram em direção ao portão de entrada. Como chibata estalando no ar em pleno açoite, Lacan atravessa a soleira da porta e dispara até a plataforma na qual se acomodará.

Os que estavam em silêncio agora cochicham. Os que tagarelavam ansiosos, agora redobraram a atenção numa quietude fascinada. O símbolo máximo, padrasto da psicanálise - pois alguns reivindicam a paternidade da invenção freudiana ao mestre francês - inicia um discurso triunfante. Boquiabertos com tais eloquentes palavras, siderados por sua divina figura, a platéia se reduz a testemunhas cegas, surdas e mudas, presenciando a onisciência daquele homem sedutor. Sua gravata borboleta quase girava como um catavento em contato com o pomo-de-Adão arrebitado.

Mal notamos o encerramento da palestra e o Lacan já havia se retirado, não aguardando os aplausos entusiasmados. Estávamos congelados em nossas cadeiras. Sofríamos da febre do seu saber - ou sabor, não sei. Quando conseguimos abrir os olhos, após a desintoxicação do venenoso encantamento, deparamo-nos com sua ausência. Apenas um leve odor de desodorante passado ainda se demorava no auditório. Ninguém abandonou seu lugar. Nos entreolhamos atônitos, aguardando que Lacan retornasse ou que um abnegado mestre de cerimônias declarasse o fim evento. Mas não. Deveríamos encarar a dura realidade. Lacan havia ido embora. Sua saída era inegável. Talvez ele tivesse se despedido, mas não ouvíamos o homem, apenas o mito.

O primeiro se levantou, recolheu seu material de anotações e se debandou. Num típico efeito dominó, todos repetiram o gesto e se retiraram. Eu fui um dos últimos a sair. Com os que sobraram, lamentando não terem apertado as mãos do mestre francês, combinamos de montarmos um acampamento na saída da universidade para que tivéssemos a oportunidade de trocarmos algumas palavrinhas - mesmo que apenas o tão sonhado aperto de mão. Pedir autógrafo seria exagerado. Afinal, não se tratava de uma celebridade efêmera, que nasce e morre nos realitys shows. Era Lacan, um pensador. Ele talvez ficasse incomodado com a tietagem.

Uma preciosa informação nos foi bondosamente cedida: Lacan estava conversando com alguns professores na sala do mestrado. Sabíamos que em breve ele passaria por onde iríamos nos instalar. Rapidamente pegamos algumas cadeiras emprestadas e nos deslocamos para o local aonde esperaríamos sua gloriosa passagem de despedida. Como fazia muito frio e a noite já caíra, um dos nossos colegas ficou encarregado de comprar um cobertor com o qual nos abrigássemos dos ventos cortantes. Ele chegou com uns panos robustos que pareciam qualquer coisa, menos cobertores. Eram feitos de tecidos grossos, meio rasgados, barbantes e espumas prensados como se fossem restos colados de alguma lixeira de alfaiates e costureiras. Ele disse que não havia outro e que popularmente se chamava "cobertor peleja", fama que conquistou por enrolar uma parte do corpo e desenrolar a outra - ao tentar cobrir uma parte, descobre-se a outra e vice versa. Sem alternativa, nos contentamos com o que tínhamos. Tudo era tolerável, mesmo a maior precariedade, para cumprimentarmos nosso mestre querido.

Escolhemos o cantinho menos esburacado e úmido para, enfim, nos aconchegarmos. Tentamos nos posicionar atrás de uma larga pilastra, mas não queríamos que nossa visibilidade fosse prejudicada. Não poderíamos perder nenhum detalhe da movimentação dos transeuntes para que nosso ilustríssimo não escapasse facilmente da contínua vigilância. Então, ficamos expostos ao frio castigante. Nos embrulhamos com os cobertores metidos à besta e ficamos lá, paradinhos, só esperando. Não movíamos nenhum músculo sequer. O tempo passou. Passou. Menos Lacan. Ele não passava. Estranhávamos sua falta. Onde estaria? Não sabíamos. Só sabíamos que ele ainda não havia saído da universidade, senão o veríamos. Mas nada. Nem sinal dele.

Nesse meio tempo, uma jovem de feições suaves e desembaraçadas, veio ao meio encontro. Num gesto espontâneo, como se me conhecesse, agachou-se diante de mim, deu um sorriso matreiro e beliscou meu queixo com o polegar e o dedo indicador em formato de pinça. Fiquei intrigado com aquela reação. Quem era ela? Não fazia a menor ideia. Olhei para os meus colegas para receber um sinal de cumplicidade com minha inquietação. Mas eles pareciam que dormiam. Observei-os novamente. Não dormiam. Seus olhos estavam abertos, mas eram olhos de peixes mortos. Passei a mão repetidas vezes para cima e para baixo em frente às suas vistas. Nenhuma reação. Eles não tinham olhos para mais nada além da expectativa da passagem do grande ídolo. Mas o mártir Lacan não aparecia. Desejei ardentemente seguir aquela misteriosa mulher. Acho que era o que ela queria - que eu a seguisse. Estava interessada em mim. Ela me queria por perto. Olhei mais uma vez para meus colegas. Nada. Estava envergonhado. Não queria que eles soubessem que eu desviava minha atenção para outros fins - menos sublimes do que apertar a mão do mestre francês.

Titubeei. Titubeei mais um pouco. Mais ainda... E... Fui. Tentei me comunicar, explicar que não estava abandonando-os, que eu retornaria para os acompanhar naquela espera bem-aventurada, cheia de boas intenções. Eles não me ouviam, ou simplesmente meneavam as cabeças apenas afirmativamente, revelando menos assentimento do que total ignorância. Eles me ignoravam. Queria que eles soubessem que eu desejava mais do que ninguém me encontrar com Lacan. Não suportava a ideia de ser um filho desgarrado. Não suportava ser tido como um desinteressado. Precisava demonstrar interesses nobres e não me deixar fisgar por futilidades. Mas espere um pouco! Qual a fronteira da nobreza com a futilidade? Talvez seus valores estejam invertidos. Esperar Lacan enrolado em cobertores pestilentos, ao relento, à porta da universidade, com a gélida noite cada vez mais avançada, era um gesto de nobreza? Será? Encontrar-me com a bela moça, aquecer-me em seus braços, deitar-me em seus calorosos seios, era fútil? Será?

Levantei-me sem olhar para trás. Só ouvi uns murmúrios esparsos - vindos talvez dos mortos-vivos que permaneciam enrolados em suas cadeiras cativas. Procurei pela bela mulher que me esperava. Eu a encontrei no alto de uma escadaria, após cruzar a longa via universitária, em sentido oposto, pela qual as pessoas ganhavam a rua. Eu a cumprimentei formalmente. Ela rompeu o meu embaraço, amassou a formalidade, abraçou-me e me beijou longamente. Ficamos assim por mais algum tempo. Abraçados, descemos as escadas. Seguimos o fluxo das pessoas que saíam da universidade. Já quase na rua, ainda abraçados, instintivamente eu olhei para o lado e notei que passávamos em frente aos sôfregos homens acampados. Eles mantinham a mesma posição. Continuavam sem mover nenhum músculo. Tive medo que eles me endereçassem um olhar de reprovação. Mas isso quase já não mais me interessava. Eles se tornaram minha platéia.

Eles me viam sair abraçado com uma mulher ao invés do adorado Lacan. Aqueles homens sujos, maltrapilhos, já quase fedorentos, sentindo frio, enrolados em cobertores mal-acabados. Eles todos lá, reunidos, vendo-me passar. Eram testemunhas da noite de sexo que me aguardava. Eles não sabiam, mas Lacan já havia morrido. Esperavam um homem morto. No ano seguinte à sua morte, eu nasci.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.