quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Morte na Folia.













A penúltima agremiação já estava chegando à Dispersão. Aquela extensão do sambódromo foi construída para que todos os integrantes e ritmistas da escola se agrupassem, saudando o público. Mas era um espaço exíguo demais e não havia tempo suficiente para tal apresentação apoteótica. Alfredo, imerso num mar de plumas e paetês, fantasias, adereços e alegorias monumentais, desejava ser um anônimo na multidão. Mas em meio à radical falta de identidade dos mascarados, da massa homogênea de foliões, não se sentida seguro. Qualquer um poderia ser o seu potencial assassino.

A única certeza que latejava em sua alma, era que estava jurado de morte. Tentou se preservar, imiscuindo-se ao frêmito das massas divinizadas em exaltação foliônica. Mas quanto mais se dissolvia no anonimato dos mascarados, mais sua angústia sinalizava uma devastadora presença. Seria alvo fácil? Será que alguém o observava? Por baixo das festivas vestimentas de qualquer um, poderia se esconder o autor do futuro crime, aquele que o aniquilaria.

(...)

Um pouco antes das primeiras manifestações carnavalescas do ano seguinte, precisamente no mês de outubro, Alfredo se encontrava na residência de um estimado amigo, há muito sumido, o Péricles. Prosearam animadamente, atualizando assuntos extintos ou esquecidos numa época remota. Péricles serviu com satisfação o amigo, oferecendo apetitosos quitutes e petiscos, brindando-o com um não menos excitante coquetel que só ele sabia fazer.

- Estou muito contente em poder revê-lo, meu amigo! – Exclamou Alfredo com lágrimas nos olhos.

- Eu que estou lisonjeado em recebê-lo no meu humilde lar.

Ao visualizar sua cinemateca particular, Alfredo afirmou:

- Vejo que você continua amante dos diretores europeus...

Péricles pegou um filme do Buñuel, retirou a contra capa que continha a sinopse e argumentou:

- Este cineasta espanhol foi o responsável por uma das mais apreciadas receitas do esplêndido drinque que estamos saboreando agora, o destilado dry martini.

- Sim... Um homem versátil... Seu paladar apurado vai além de seu refinamento magistral na Sétima Arte. Buñuel sabia apreciar este aperitivo com elegância ímpar.

- Saber degustar uma boa bebida é condição sine qua non para a qualidade de qualquer cineasta que se preze.

- Sempre achei que sua capacidade de crítico de cinema foi desperdiçada. Você deveria ter trilhado uma carreira mais jornalística, dando ênfase aos estudos cinematográficos. Deveria ter investido na literatura. Admiro sua declarada paixão pelo cinema!

- Sou um homem de negócios, meu caro. Não tenho tempo a perder com prazeres fúteis. Só me entrego à apreciação de boas bebidas e de bons filmes quando estou prestes a realizar projetos ambiciosos. Minha vida é clara e distintamente direcionada às especulações econômicas, ao jogo do câmbio flutuante, às milionárias aplicações nas Bolsas de Valores, aos investimentos em ações.

Visivelmente constrangido pelo modo imperativo e frio com o qual seu amigo definiu o interesse pela arte, associando-a à ganância comercial, às frivolidades mercadológicas, Alfredo tentou abordar amenidades, puxar assuntos que envolvessem mais a intimidade familiar. Alfredo não estava distraído. Percebeu logo pelas palavras do amigo, já que estavam bebendo, que naquele encontro, Péricles trataria apenas de negócios com ele.

- E sua esposa e filhos, por que não estão aqui?

- Não estou mais casado, meu caro. E filhos?! Sempre fui contra tê-los.

- Mas eu me recordo com vivacidade dos seus filhos! Como você agora me diz que não tem filhos?

- Eu não estou dizendo isso só “agora”, pois realmente nunca tive filhos.

Prevendo que aquele diálogo seria reduzido a uma absurda discussão, Alfredo resolveu contemporizar e conduzir a conversa para outras plagas.

- Você tem visto alguém dos tempos de faculdade?

Embaraçado pelo silêncio de Péricles, Alfredo prosseguiu, reformulando sua pergunta:

- E a Karina e a Alessandra? Sei que você tinha certa quedinha por elas... e...

- Basta de trivialidades! Vamos direto ao assunto que lhe trouxe aqui.

Péricles estava com uma fisionomia rígida, cenho franzido, dedos crispados sobre o criado mudo.

- Mandei uma equipe de confiança para acompanhar seus passos durante todo tempo. Também andei observando-o pessoalmente. E constatei que você é o cara ideal para o serviço.

Ainda mais assustado, Alfredo indagou com relativa gagueira:

- Mas que serviço?

- Você é um sujeito honesto, trabalhador, pai de um casal de lindas filhas. Está acima de qualquer suspeita. Encaixa-se perfeitamente, como uma luva, para o perfil do homem que eu preciso contratar.

- Não estou alcançando seu raciocínio, Péricles.

- Oferecer-lhe-ei uma boa quantia. Irrecusável! Sei também que você está passando por dificuldades financeiras, que contraiu algumas dívidas com empréstimos bancários. Esta será uma grande chance! Ótima oportunidade que só um amigo como eu poderia lhe dar.

- Você está me deixando apreensivo.

- Não fique, não fique! Acredito em você! Por mais que o mundo resista em valorizar seus talentos, eu os reconheço e admiro! Você trabalhará para mim.

- Mas o que terei que fazer?

- Calma, meu velho companheiro! Primeiro farei minha proposta sobre a quantia que você receberá.

- Certo... mas... Não estou conseguindo compreendê-lo. Aonde você quer chegar?

- Você tem um saldo positivo comigo, meu caro. Mesmo com antecedência, tenho convicção que você cumprirá com êxito a missão para a qual o instruirei. Por isso, pagarei todas as suas dívidas – que não são poucas – e darei todo o conforto para você e sua família pelo resto de suas vidas. Terão uma vida à altura da realeza.

Com uma ligeira afonia, Alfredo balbuciou:

- Mas... mas... Por que eu?

- Ora, já disse! Resumindo, você é um dos meus mais confiáveis amigos!

- Já estamos afastados há anos. Nunca mais nos vimos, desde a faculdade.

- Você não me viu, meu caro. Você que não me viu. Eu o acompanhei em cada segundo de sua vida. Não deixei escapar nada. Investiguei cada detalhe. Então, confirmou-se a minha hipótese em sua eficiência e honestidade.

- Ok. O que você quer que eu faça?

- Bem... Tem um empresário grego, o Sr. Karagounis, proprietário de uma grande rede de lojas de departamento, que está atravessando meus negócios. Preciso absorver sua firma para assumir a liderança empresarial de suas filiais, preservando a matriz.

- Entendo... Mas o que quer que eu faça? Não tenho nenhuma formação empresarial. Não sei nada desse mundo dos negócios.

- Mas você sabe segurar um revólver. Sabe apertar um gatilho. Sabe matar! Quero que o mate, meu caro.

- Ahm... Nãoo... Nãoo posso...

- Pode, pode! – Disse calmamente Péricles.

Péricles estendeu a mão com algo embrulhado num pano preto.

- Tome... Ensiná-lo-ei a manuseá-la.

Tremendo, Alfredo desembrulhou o revólver. Sua vista ficou turva e mal via o rosto do amigo. Enquanto Péricles dava as instruções para utilizar o revólver, Alfredo só pensava em sua família, em suas alegrias, mas também em suas tristezas, e titubeava, oscilando suas emoções. Logo em seguida, Péricles começou a instruí-lo sobre algumas técnicas e artimanhas para o amigo entrar na mansão do Karagounis. Explicou o funcionamento do sistema de alarme, informou sobre seus horários e a exata maneira de limpar todas as evidências do crime, para não deixar pistas para a polícia.

Alfredo ouviu atentamente as instruções do amigo. Em diversos instantes sofreu princípios de desmaio, mas resistiu com rara firmeza para não alarmar a confiança que Péricles depositou em seus ombros. Suas pernas tremiam como vara verde. Mas se manteve bravamente aprumado. No final do treinamento verbal que recebeu do amigo, apertaram as mãos e Alfredo se retirou da casa de Péricles.

Ao chegar à varanda de sua casa, permaneceu por longos minutos contemplando a arquitetura de um antigo sonho concretizado. Já era noite, quando resolveu entrar. Todos já dormiam. Foi ao quarto das filhas, que ainda eram pequenas, a mais nova de 6 anos e a mais velha de 8 anos, beijou-as delicadamente na testa para não acordá-las e saiu.

Logo depois caminhou para o seu quarto, encontrando a sua bela esposa entregue a um gostoso sono. Sentiu leve amargura, um medo de perdê-la. Hesitou em realizar a operação para a qual fora instruído. Sua esposa era tão linda... Mas logo retomou sua obstinação quando se recordou das vantagens que daria à família se fosse bem sucedido em sua empreitada.

A esposa, notando sua presença a observando ao pé da cama, abriu um pouco os olhos, e carinhosamente o chamou para se deitar. Alfredo respondeu com delicadeza e se acomodou ao seu lado. Mas durante toda a noite, não relaxou um só segundo.

(...)

No mês de fevereiro, conforme o combinado, Alfredo estava preparado para impetrar o crime. Certificou-se da ausência dos seguranças. Desarmou os sensores de calor e desativou os alarmes. Estava dentro da mansão do Sr. Karagounis. Uma onda de adrenalina percorreu sua espinha. Nunca matara nem uma mosca. Sempre fora um homem honesto e respeitado, porém desvalorizado pelos seus patrões, sempre lhe usurpando suas merecidas promoções e gratificações.

Já não mais estava paralisado pelo medo. Agora obedecia a um impulso agressivo, homicida que talvez sempre estivesse habitando seu íntimo, mas que jamais acordara como naquele exato instante. Seus olhos estavam vermelhos como duas bolas incandescentes. Seu rosto, inexpressivo, pela concentração sanguínea, exibia uma plácida fúria.

Não necessitou nem fazer uma recapitulação de sua incumbência, parecia que tinha nascido para aquela circunstância. Ansiava ouvir o grito de dor, últimos suspiros de um corpo agonizante, baleado num crime perfeito. Mas se lembrou do seu treinamento, e a morte seria praticamente indolor. Lamentou essa parte das instruções. Adaptou o silenciador em sua pistola e finalmente alcançou o quarto no qual Karagounis repousava.

Quando abriu a porta, constatando a volumosa presença do grego deitado em sua cama, após apontar o revólver para a nuca de sua vítima, sentiu uma pancada lancinante no alto de sua cabeça, parecia um porrete de madeira maciça. Urrou de dor e imediatamente desabou no chão daquele quarto, deixando respingar algumas gotas de sangue, manchando o valioso carpete.

(...)

Alfredo acordou, com uma penetrante dor de cabeça, ainda desorientado, encostado num poste em plena Avenida Getúlio Vargas, no centro do Rio de Janeiro. Era tarde da noite. A Avenida estava interditada, parecia que havia alguns festejos mais adiante. Quando ele se levantou, cambaleando, com muita dificuldade, recebeu um telefonema. Um homem com uma voz metalizada, que não quis se identificar, dizia que estava sob a mira de um matador de aluguel, um assassino profissional que não perdia nenhum de seus movimentos. Estava jurado de morte. A única forma de sobreviver, era se encontrar com uma pessoa usando uma máscara veneziana do libertino Giacomo Casanova, durante os desfiles das Escolas de Samba, na Dispersão da penúltima agremiação daquela noite. Logo após a última orientação, a ligação foi cortada.

Apavorado, seguiu em direção ao sambódromo. Estava ainda no início da Presidente Vargas, por isso demorou muito até visualizar a intensa iluminação, o aglomerado de pessoas entulhadas na passarela do samba e nas arquibancadas. Levou tempo também para ouvir a batucada estridente dos desfiles, propagada pelos amplificadores de som que ficavam espalhados na Avenida Marquês de Sapucaí, transversal à Presidente Vargas.

A princípio, ao se misturar na multidão de mascarados, vestindo uma fantasia que estava abandonada no canto da calçada, sentiu-se seguro. Foi prontamente integrado à homogênea massa. Estava protegido pelo total anonimato. Deixou transparecer até uma pontinha de satisfação, contagiado pela cadência do samba e pela alegria transmitida pelos foliões.

Mas quando novamente se deu conta da trágica situação em que estava envolvido até o pescoço, redobrou-se em um estado de generalizada paranóia. Quando a penúltima escola já cruzava a Dispersão na Apoteose, teve uma taquicardia, intensificando ainda mais seu estado paranóico, desconfiando de todos aqueles que pulavam aparentemente felizes ao seu redor. Poderia ser qualquer um. Eram todos idênticos. Não tinha a menor condição de discernir um potencial assassino.

De repente, relembrou as orientações da sinistra voz. Precisava encontrar, naquele justo momento, a tal pessoa usando a fantasia da personalidade dissoluta do Casanova. Mas como distingui-la no meio de uma quantidade infinita de mascarados? Logo que fez essa consideração, avistou o Casanova. Um sujeito enorme, esguio, imóvel, parado à sua frente. Pensou em recuar. Mas continuou se aproximando da figura medonha. Ao tocá-lo, perdeu novamente os sentidos.

(...)

Eram 2 horas da tarde de uma terça-feira gorda. Alfredo tinha sido convidado para um baile carnavalesco na casa de um amigo seu que há muito tempo não via, o Péricles. Estava se arrumando quando recebeu um telefonema avisando que a festa foi cancelada. Quis saber o motivo. A voz do outro lado da linha deu a notícia da morte de Péricles. A causa do óbito foi um infarto fulminante.

Alfredo estava ainda de ressaca pela noite anterior regada de muita bebedeira em um clube tradicional na Lapa. Sacudiu a cabeça, na tentativa de afugentar estranha sensação. Ainda reverberava uma nítida memória que esteve na casa do Péricles alguns meses antes. Mas como? Eles não se viam há muitos anos, desde a faculdade. Aquela notícia de sua morte deixou-o ainda mais intrigado e confuso. Reclinou-se em seu sofá com um saco de gelo pressionado em sua testa.

Alfredo estava sozinho como sempre estivera. Invejava os homens que optaram pelo casamento, por terem esposa e filhos. Mas ele sempre esteve envolvido com negócios. Gerenciava uma lucrativa empresa. Nunca teve tempo para os afetos familiares, por isso, jamais se vinculou à qualquer mulher por mais de uma noite. Péricles era um desses homens, objeto de sua inveja. Ele era casado com uma bela mulher e tinha duas filhinhas. Como sua família vai se sustentar em sua ausência, sem o seu amor?

Continuou por longas horas, pensativo, em seu sofá, até adormecer. Sonhou que havia reencontrado o amigo Péricles. Ele estava satisfeito com a sua visita. Péricles ainda demonstrava profunda gratidão pela mulher que Alfredo lhe apresentou ainda na época da faculdade. Ele imediatamente previu que aquela seria a mãe de seus filhos. Meses depois, casaram-se. Péricles havia convidado o amigo Alfredo, que era o padrinho de seu casamento, para celebrarem juntos, suas tão esperadas Bodas de Prata.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS

domingo, 26 de dezembro de 2010

Transamazônia














Sentados em um espesso tronco de mogno, em plena floresta amazônica, no escaldante verão brasileiro, dois franceses exaustos, enxugando o excesso do suor e tentando repelir os mosquitos, conversavam com indisfarçável apreensão. A temperatura estava muito alta, com a umidade relativa do ar beirando os 100%. Henry e Pierre já estavam quase anêmicos, desidratados e sofrendo pela insolação. Um mistério rondava o diálogo daqueles dois estrangeiros. Quase não tinham forças para afugentar os pernilongos e borrachudos que insistiam em extrair as últimas gotas de sangue daqueles miseráveis corpos, parecendo urubus sobrevoando a carniça.

Mesmo praticamente sem fôlego, inundados pela transpiração expelida por todos os poros, ainda tinham energia armazenada o suficiente para puxarem um cigarro.

Imediatamente recostaram-se meio desajeitados pela tonteira, em finos caules de embaúbas, esquivando-se de indesejáveis formigas agressivas que se aninhavam por ali. Colheram uma variedade frugal que estava caída aos seus pés, e suavizaram a secura espumosa de suas bocas. Logo, acenderam os cigarros, deram uma demorada tragada, e readquiriram a capacidade de falar.

- Não consigo dar mais nenhum passo. Não sei nem mais o que viemos fazer neste fim de mundo...

Resmungou Henry, com a fala embargada e com o cigarro no canto da boca, grudado nos lábios pelo muco que se formou como sintoma da desidratação.

- Se você não sabe, ou não quer saber, eu sei! Chegamos até aqui, não vou recuar!

Pierre vociferou com os olhos esbugalhados, obstinados, devorando com rancor irreprimível a fragilidade impressa no semblante de Henry.

- Estamos andando em círculo faz horas. Você decifrou os códigos corretamente?

- Claro! Eu transcrevi o mapa com absoluta precisão, exatamente como o Sebastian me informou.

- Mas não chegamos a lugar nenhum!!

- Como não, monsieur?! Já se esqueceu que encontramos o tal casebre no qual o nosso contato deveria estar presente?

- Oui... Mas nem sinal dele. Onde será que se meteu?

- O que tanto o instituto quer nos comunicar?

- Você veio até aqui e não tem a menor noção sobre o que se trata esse assunto?

- Vagamente, vagamente... Só sei o que ouvi dizer...

- Não posso acreditar nisso! Como a agência o contratou?

- Eles acreditam em minhas habilidades exploratórias. Não me forneceram maiores informações. Deram-me somente instruções básicas.

- Estou começando a perceber que você é imprestável. Mas a agência não pode ter se equivocado na seleção de seu pessoal. Você deve ter suas qualificações. Talvez essa escolha faça parte de uma tática infalível, uma missão secreta. Você não é meu parceiro por acaso, certamente.

- Pierre, já estamos recuperados, temos que continuar interpretando esse mapa. Você, mais do que ninguém, sabe que não podemos perder tanto tempo.

- Eu sei, mas você não acabou de confessar que não sabe de nada?!

- Sei o que tenho que saber!

-Oui, Oui... Allons enfants de la Patrie, le jour de gloire est arrivé!

Após balbuciar, sabiamente, a primeira estrofe de La Marseillaise, Pierre levantou-se dando um rompante, bruscamente, puxando Henry pelo braço.

- Você não me alertou para continuarmos? Levante-se! Logo!!

Ambos se ergueram e reiniciaram a jornada, distanciando-se lentamente do tronco de mogno. Um céu azul opressor, imenso, homogêneo, totalmente límpido, sem nenhum resíduo de nuvens, reinava soberano sobre as cabeças dos bravos viajantes. Generoso ambiente com diversificadas vegetações, exuberantes hidrografias e relevos, clima equatorial quente e úmido, caleidoscópio de beleza, mas impiedoso com aqueles que não cresceram nos trópicos.

Ao chegarem a uma zona de desmatamento, visualizaram um modesto alojamento, talvez moradia provisória dos contrabandistas, funcionários de madeireiras ilegais. O visionário Henry intuiu que aquele era o exato local em que finalmente seus destinos se consumariam.

- Pierre, pressinto que nossa missão está chegando ao fim!

Pierre sabia que os pressentimentos de Henry eram equivalentes a certezas. Ele não era guiado pelos atributos racionais, mas dispunha de um aparato de antenas e radares biológicos exclusivos, quase sobrenaturais.

- Aquela habitação me parece familiar. O telhado em forma de pirâmide coincide com este desenho do mapa. Veja!

- Oui, Oui... Tem a famosa letra “X” sinalizando o ponto final de nossas buscas.

- Estou vendo uma movimentação por lá. Certamente a casa não está vazia.

- Vamos até lá investigarmos!

Suas percepções pregaram-lhes uma peça, pois ao chegarem ao alojamento, após abrirem a porta que estava destrancada, vislumbraram total ausência de vida humana, confrontando-se com um ensurdecedor e angustiante silêncio.

- Pierre, já estivemos aqui! Lembra-se? Esta é a mesma cabana pela qual passamos da primeira vez.

- Eu me recordo. Nosso contato havia marcado para nos encontrar aqui e, repetindo a dose, novamente não há ninguém.

- Avoir déjà un pied dans la tombe! O que faremos agora?

- Estamos completamente perdidos!

(...)

- Mamópa reju?

- Não compreendo nada que você diz! – Disse Pierre assustado.

Ao perceberem que estavam sendo cercados, Pierre e Henry ameaçaram correr.

- Eju ápe!! Mba'e rejapo?

Os índios cercaram cada vez mais os dois estrangeiros, empunhando arcos, flechas e outros objetos desconhecidos. Pierre e Henry estavam suando frio. Será que seriam vítimas de um estranho ritual? Os índios pintaram seus rostos com a tinta vermelha das sementes de urucum, amarraram folhas de bananeira em seus abdomens, furaram as cartilagens das orelhas e do nariz de ambos, introduzindo pequenos gravetos coloridos.

Instrumentos tribais repicavam peculiares sons. O pajé sacudia e girava um pequeno chocalho que chamava de mbaraká miri, em variados ritmos, enquanto entoava canções e proferia rezas. As mulheres agitavam um bastão oco, percutindo-o contra o solo de forma vertical. Os demais índios compunham a cerimônia batucando em tambores modelados em cilindros feitos de grossas cascas de madeira, ocos no centro e revestidos com um tipo couro nas duas extremidades.

- Che rojukáta!!

Em um êxtase xamânico, os índios ofereceram infusão das folhas de uma planta chamada ayahuasca, para que os estrangeiro bebessem. Após os primeiros goles, os dois ficaram entregues a uma intensa manifestação alucinógena, desabando no chão, desmaiados. Quando acordaram, nada mais viram, estavam sozinhos. Os índios não estavam mais por perto.

Andaram durante horas sem descansar. Já estavam submetidos à inanição, quando avistaram o tronco de mogno com as convidativas frutinhas. Ao abaixarem para colhê-las, sentiram uma ardência no pescoço, seguida de uma progressiva sensação de anestesia. Eram pequenos dardos envenenados com curare.

(...)

- A partir daí, intoxicados, seguiram rodando em círculos, numa aventura repleta de tribos selvagens, contrabandistas e mapas do tesouro.

- Mas e o resto da estória?

- Ah... Vovó já está cansada! Preciso deitar um pouco. Por que não vai dormir? Já está tarde!

- A senhora é a única que me conta sobre o meu pai. Mamãe nunca diz nem uma palavra sobre ele.

- Sei que vocês se dariam muito bem. Seu pai iria gostar de conhecê-lo.

- Por que ele foi embora tão cedo? Acho que ele não quis me conhecer...

- Não diga isso, menino! Sei que conhecer você seria uma grande felicidade para ele.

A avó foi saindo do quarto de seu neto, Sebastian, enquanto lastimava que seu genro tivesse morrido sem nem ao menos saber que sua filha estava grávida.

Sebastian tirou um papelzinho amassado de seu bolso. Desdobrou-o e se sentou à escrivaninha. Era um mapa que estava desenhando há mais de uma semana. Todo colorido, delimitando com riqueza de detalhes todo o percurso que o limiar de sua imaginação permitia. Para finalizá-lo, marcou com um “X” a pirâmide localizada no pátio principal do Palácio do Louvre. Na semana retrasada, foi visitar o museu pela primeira vez com sua avó. Era lá, naquele palco fantástico, que sempre desejara conhecer seu pai.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.


Tradução das expressões em francês e em guarani:

Allons enfants de la Patrie, Le jour de gloire est arrivé = Avante filhos da pátria, o dia da glória chegou

La Marseillaise = Hino nacional francês

Avoir déjà un pied dans la tombe = Com um pé na cova

Guarani:

Mamópa reju = De onde você vem?

Eju ápe = Vem aqui!

Mba'e rejapo = Que está fazendo?

Che rojukáta = Vou matar você!

ayahuasca = Matéria prima do Santo Daime.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Katie













- Tenho pensado muito em Katie...

- Não sabia que você ainda pensava nela. Já se passaram 16 anos e nunca mais ouvi você tocar em seu nome.

- Pois é... Achei que tivesse superado. Mas às vezes sofro em silêncio; rumino lembranças. Para mim, mesmo tendo passado tanto tempo, ainda parece que foi ontem. Não me sinto bem falando sobre ela. Gosto de mantê-la guardada só comigo.

-Você não teve mais nenhum relacionamento depois que Katie desapareceu?

- Nada significativo... Apenas a Joyce despertou novamente meus sentimentos.

- E o que houve com ela?

- Comecei a ver a Katie nela, a trocar seu nome... Essas repetições se estenderam demasiadamente. Foram tão patéticas... Ultrapassaram o limite do tolerável. Mas não a culpo por isso, pois devo estar seriamente adoecido pela falta da Katie.

- Por que você insiste em não escutar minhas sugestões de procurar um especialista?

- Eu agradeço a sua preocupação comigo. Sei que desde o início você me sugeriu procurar ajuda, mas isso não trará a Katie de volta.

- Sim, porém...

- Além do mais, só em imaginar que minhas intimidades serão apalpadas por mãos estranhas, repugna-me.

- Mas você...

- Vamos deixá-las quietas, adormecidas, intocadas... Eu tenho direito de não dividir minhas lembranças e histórias com ninguém. Embora sofridos, são meus bens mais preciosos.

- Você sabe que não é assim que funciona, não sabe?

- Sim... Eu sei...

- E então...?!

- Então, já está anoitecendo, e os primeiros pingos da chuva de um previsível temporal, começaram a cair.

- Ok. Vamos nos apressar antes de desabar a chuva.

- Vamos lá...

Raul estava com 35 anos quando Katie, com quem se casara há 10 anos, sumiu inexplicavelmente e nunca mais fora encontrada. A princípio, as evidências indicavam que havia sofrido um acidente fatal, uma queda de um penhasco que a vitimou. Mas como a perícia não identificou pistas objetiváveis, a dúvida fez Raul sucumbir, não podendo sequer assimilar a dor de uma perda, dificultando seu luto.

Para comemorarem uma década de casamento feliz, Raul e Katie se inscreveram em um programa ambientalista, uma colônia de férias, incluindo um acampamento numa idílica região silvestre, na qual se realizaria a renovação de seus votos matrimoniais.

Na tarde que antecedeu a esperada viagem, o casal apaixonado nunca esteve tão exultante por ter chegado àquela data, estando às vésperas da concretização de uma planejada segunda Lua de Mel. Os dois arrumaram freneticamente suas bagagens e a barraca de camping, e mal ouviam a balbúrdia nas largas avenidas que cortavam sua residência, devido à época das festas de final de ano.

Durante a viagem, como também ao longo de um tempo determinado, entregues à natureza, com a barraca devidamente instalada, tudo transcorreu dentro da mais perfeita ordem e normalidade. Fizeram trilhas, escalaram pequenas montanhas, tomaram banho de cachoeira e até desafiaram pegar uns peixes num riacho que se localizava há uma distância considerável do lugar no qual o casal escolheu para armar a barraca de camping. À noite, ainda se reuniam com os vizinhos das outras barracas, faziam fogueiras, assavam batatas doces e espigas de milho verde, conversavam com muita animação, e também cantavam modinhas ao violão.

Após dois dias em que a mais absoluta paz reinou, um inquietante acontecimento perturbou a transitória harmonia no camping. Alegando tomar ar fresco, durante uma madrugada, quando o sol já estava quase raiando, Katie saiu da barraca em direção a uma grande pedra que muito a encantara quando se banharam na cachoeira que ficava nas proximidades de uma aldeia indígena, isolada como área de preservação ambiental. Depois de longa caminhada, como nos arredores da região silvestre ainda estava escuro, Katie se perdeu, não podendo reconhecer mais nenhuma referência naquele vasto e sombrio território de mata virgem.

Tateando algum ponto em comum que pudesse identificar seu paradeiro, ela chegou a um córrego que supostamente, ao margeá-lo, daria acesso à cachoeira, destino de sua empreitada inicial. Seguiu a margem do rio por muito tempo, afastando-se cada vez mais do acampamento. Exausta, sentou-se num lugar em que havia pomares e frutinhas suculentas. Para amenizar a angústia de ter se perdido, sozinha, naquela imensidão inexplorável, respirou fundo, debruçou-se no leito do rio para pegar um pouco de água com as palmas das mãos em formato de cuia e molhou o rosto. Com a refrescante sensação do contato da água com a pele, tentou afugentar a tensão da dúvida e aclarar as ideias. Precisava pensar como reencontrar o exato percurso que a levaria de volta à barraca de seu marido.

Mas ao inclinar seu corpo para alcançar as frutinhas vermelhas de um tímido arbusto, ainda com as vistas embaçadas pela luz do sol que começara a se fortalecer naquela jovial manhã, não percebeu que o arbusto escondia um penhasco, quase invisível pela cobertura de sua frondosa folhagem. Esforçando-se cada vez mais para apanhar a frutinha, desequilibrou-se e se precipitou irreversivelmente, atravessando sem titubear o limite seguro da beirada do abismo. Seu corpo despencou em queda livre. Pela distância, nenhum som noticiando a tragédia foi ouvido. Só a natureza foi testemunha daquele cruel destino.

As buscas persistiram por semanas intermináveis, mas nenhum resíduo que indicasse a passagem da moça, ou rastros que denunciassem seu itinerário fatal havia se descortinado à obstinada equipe de socorristas do bombeiro. Até que, com a falta de evidências, mesmo sem encontrar o corpo da vítima, esposa de Raul, para ser velado, as buscas foram declaradas encerradas, restando como saldo um fracasso inconsolável.

Raul tentou reconstruir sua vida ao passar do tempo, mas a insistente convicção que Katie não havia morrido começou a consumi-lo. A falta do corpo de sua mulher representava uma esperança de vida a Raul de maneira tão impeditiva, que todas as suas relações afetivas posteriores foram constantemente permeadas pelo fantasma de uma morte que não pôde nem ao menos ser concluída para libertá-lo de seu passado.

(...)

“- Então, já está anoitecendo, e os primeiros pingos da chuva de um previsível temporal, começaram a cair.”

- “Ok. Vamos nos apressar antes de desabar a chuva.”

- “Vamos lá...”

Após a despedida de Raul, cumprimentando o amigo, Mauro permaneceu lá por alguns minutos, pensativo. Sabia que não era certo esconder por tanto tempo as provas que só ele possuía, revelando a verdadeira identidade de Katie. Mas justamente pela condição de amizade e respeito recíproco, Mauro não tinha coragem de contar tudo o que estava mantido em segredo. Temia a reação de Raul. Não queria machucá-lo. Era a sua dignidade como amigo que deveria ser honrada, ao dizer que Katie talvez não fosse exatamente a Katie que habitava os pensamentos de Raul. Várias correspondências escritas com aquela tal inconfundível caligrafia, que certamente, se chegassem às mãos de Raul, seriam assassinas cruéis da verdade à qual ele tanto confiava a sua vida.

(...)

Katie, ainda deitada em sua cama, espreguiçou suavemente, alongando seus braços e relaxando seu corpo. Havia acabado de acordar de um sono reparador. Contudo, guardava ainda fortes impressões de um sonho surpreendente que muito a intrigou. Sonhou com um atraente jovem de um pouco mais de 30 anos, mas não conseguia distinguir seus traços faciais. Pareceu-lhe que eram casados. De início, satisfez-se ao visualizar as doces feições daquele moço. Porém, uma onda de intensos enjoos rompeu a plácida cena que se desenrolava à sua frente. Foi arremessada com violência para um campo vazio, no qual ninguém aparecia.

Quando acordou, uma sensação nostálgica persistia em sua memória. Ficou na cama ainda por alguns minutos, ainda refletindo sobre a estranheza de seu sonho. Mas tal meditação foi interrompida pelo chamado de sua mãe.

- Katie! Katie!

- Estou aqui, mãe!

- Acorde, minha filha! Já está muito tarde... Você não se comprometeu em ajudar nos preparativos do casamento de sua irmã?

- Sim, mãe... Vou me arrumar. Levarei o vestido que ela me pediu para usar no chá de panela.

- Faça isso... Estou muito feliz por ela! Mas e você? Quando encontrará um pretendente que lhe fará feliz e com o qual se casará?

- Ainda não sei, mãe. Não é possível adivinhar os mistérios do coração.

- Você é tão jovem e bonita, minha filha! Mas o que aconteceu com aquele rapaz que sua prima lhe apresentou?

- Não fez o meu tipo. Achei-o arrogante e pretensioso demais.

- Nesse caso, você está certa. Não quero minha filha andando com qualquer um.

- Sabe, mãe... Nessa noite eu tive um sonho que me deixou um pouco estranha...

- Conte!

- Foi com um belo e romântico rapaz. Eu sentia que ele me amava. Foi tão maravilhosa essa emoção do amor! Mas ele não tinha rosto! Não conseguia vê-lo...

- Curioso! E aí?

- E aí que eu fiquei surpresa com meus sentimentos. Parecia que estava apaixonada por ele. Jamais senti algo semelhante. Acho que estou apaixonada por um homem cujo rosto não tenho a menor ideia de como seja.

- Ai, ai, minha filha! Você vive nas nuvens! Apaixonar-se por um homem irreal, que só existe nos seus sonhos, e ainda sem rosto! Sim... Você está precisando sair mais, conhecer pessoas...

- Mas eu estou bem assim...

- Vamos logo à casa de sua irmã! Não podemos nos atrasar! Vamos...

E mãe e filha seguiram juntas para os preparativos daquele que seria o primeiro de muitos casamentos na atual geração da família de Katie.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A Amante
















Na fatídica noite de 29 de novembro, Joana chegou à sua casa mais tarde do que de costume. Saiu do trabalho no qual estava recém empregada, como gerente numa loja de conveniências, e resolveu dar uma volta na orla para respirar ar puro, arejar as ideias, colocá-las no devido lugar. Ainda na loja, após chegar ao seu conhecimento uma dolorosa acusação, planejou uma decisiva e derradeira conversa com seu marido, o Dr. Fernando, renomado legista da capital, a ponto de pensar em divórcio.

Ao caminho de casa, na volta do seu passeio na orla, Joana comprou uma garrafa de vinho tinto nacional cabernet sauvignon, coisa que nunca teve o hábito de fazer. Porém, infelizmente, aquela seria uma ocasião especial para apreciar uma boa bebida – justificou mentalmente Joana.

Chegou ao alpendre na entrada de casa. Com o olhar perdido, fitou por alguns instantes o caramanchão florido. Limpou os pés no capacho. Abriu o portão da saleta principal. Averiguou o ambiente e constatou que todas as luzes estavam apagadas, sinal que seu marido ainda não havia chegado do Instituto Médico Legal em que trabalhava há quase duas décadas. Sabia que ele não dormia cedo, pois permanecia por longas horas na sala de visitas, assistindo a filmes repetidos de seu acervo pessoal. Então, provavelmente não estava dormindo na suíte do casal no segundo andar, o quarto de núpcias.

Sentou-se no sofá da sala e retirou a rolha de cortiça da garrafa com seu ainda virgem abridor de inox, servindo-se do vinho numa elegante taça de cristal.

Degustou, de forma apática, o bouquet aromático do vinho, certificando-se sobre a safra no rótulo que informava ser a sua procedência de uma tradicional vinícola, com parreiras selecionadas, da região de Bento Gonçalves.

Logo após saborear o primeiro gole de vinho, apanhou a carteira de cigarros em sua bolsa e escolheu um que tinha uma mancha amarronzada de tabaco no filtro. Levou-o ao lado esquerdo da boca, e o prendeu na beirada dos lábios, tragando com vontade. Uma tragada longa e objetiva que provocou uma leve tontura, quase um êxtase, pelo tempo que ficou com o ar preso.

Ainda sob o efeito da tontura, tirou o cigarro da boca, apoiado entre os dedos médio e o indicador da mão direita e fitou, com ausente curiosidade, de olhos semi cerrados, o formato de sua boca impresso pelo batom vermelho bordeaux na extremidade do cigarro. Depositou as cinzas no cinzeiro de mármore que ganhou como parte de seu enxoval, e repousando o cigarro com o cotovelo apoiado no braço de veludo do sofá, pressionou a têmpora com o polegar, massageando a testa, e começou a refletir em voz alta:

- Não posso acreditar em situação mais estapafúrdia!

- Fernando não tem outra mulher! Impossível! Sempre me doei ao máximo para sustentar nosso casamento.

- Sou uma esposa dedicada, aplicada, com presteza doméstica.

- Não posso me imaginar sendo trocada, corneada, traída!

E deixou-se escorregar pelo assento do sofá, até ajoelhar-se no chão. Cabeça largada e comprimida entre as coxas suadas. Mãos espalmadas no carpete, revelando um doce desespero. O cigarro, reduzido a guimba, já há muito jazia ao lado, caído no azulejo de granito.

Um barulho suave foi ouvido na maçaneta do portão. Joana estremeceu e se ergueu prontamente. Fernando acendeu a luz da sala e se assustou com a presença lívida de Joana em pé à porta.

- O que foi, querida? Por que está com essa aparência cadavérica?

- Você me contará tudo, Fernando! Exatamente tudo e com detalhes!

- Tudo o quê? O que está acontecendo? Estou ficando preocupado.

- Não se faça de sonso, Fernando! Mas quanta audácia! Você é teatral, sabia?

Fernando ficou paralisado, atônito, diante daquele corpo gesticulando, lânguido, sob efeito de uma garrafa inteira de vinho, que agora estava vazia sobre a mesinha de centro da sala.

- Não entendo, querida. Por favor, sente-se, você não está nada bem.

- Tira esses dedos pegajosos de mim, seu asqueroso! E não me dirija mais a palavra! Não me chame de “querida”!

- Querida, por piedade, acalme-se.

- Cale-se!

- Levarei você ao Dr. Mendes, colega psiquiatra que lhe receitará um ansiolítico, amanhã pela manhã.

- Que cheiro é esse que sinto sair de seu jaleco? Perfume de vagabunda, não é?

- É éter e clorofórmio. Sou legista, preciso extrair e conservar alguns tecidos orgânicos para pesquisas médicas. Faço autópsias, esqueceu?

- Não me faça de boba, Fernando. Não me faça de boba! Durante toda nossa vida de casados eu esperei pacientemente você chegar, praticamente de madrugada todo santo dia, pois você alegava ter que trabalhar até tarde, e eu sempre guardando um lugar quentinho ao meu lado na cama, e com a comida pronta. E você arranja outra?

- Amor, definitivamente você não está bem. Por que bebeu uma garrafa inteira de vinho?

- Pare! Pare! Pare! Você me enerva! O que o senhor estava fazendo com aquela mulher dentro do seu carro?

- Ahm?! Mulher?

- A Martinha flagrou você em delito, Fernando. Ligou para meu celular justamente quando eu estava atendendo um cliente e me contou tudo! Nem tive mais condições de continuar atendendo, precisei pedir para uma colega realizar a compra do cliente no meu lugar.

- Não tem mulher nenhuma! Você está louca! Amanhã cedo telefonarei para o Dr. Mendes medicá-la urgentemente. Vou para o quarto! Fique aí até se recuperar. Quando melhorar, apague a luz da sala e suba para se deitar.

Antes de Fernando virar as costas para subir ao quarto, Joana sacou um revólver e apontou para a testa do marido, ameaçando-o.

- Se você der mais um passo, eu atiro!

- Meu Deus! Onde você arrumou essa arma? Está fora do seu juízo. Jamais alguém em sã consciência permitiria que portasse uma arma. Vamos, dê-me! Passe para cá essa arma, ficará mais segura comigo.

Joana estendeu a mão com a arma, fingindo entregá-la ao marido, mas com um movimento brusco, engatilhou-a, apertou o gatilho e disparou um tiro certeiro. O projétil atravessou o corpo gelatinoso, rompendo o silêncio da tensão, partiu a garrafa de vinho vazia ao meio e se alojou no tubo de imagem da televisão de plasma, 45 polegadas.

(...)

Eram 11 horas de uma manhã de dezembro, o verão ainda não havia iniciado. Deitado numa bandeja fria, quase à temperatura de criogenia, apesar do calor intenso nas ruas do Rio de Janeiro, aquele corpo resfriado explodia invisível numa pulsação frenética de coração enjaulado. Sua fisionomia pálida e congelada, não podia apresentar as marcas típicas do rubor apaixonado. Sua pele fria estava sendo tocada.

Mas o humor se alterou repentinamente ao perceber que seu amado cortava em linha longitudinal o ventre de outra mulher. O sangue que lhe faltava, fervia de ódio. Queria revivê-la para matá-la, pois aquele bisturi estava ocupado em outro corpo que não o seu. Apropriação indébita de seu amor. Não poderia permitir que tal dolorosa traição se repetisse. Precisava fazer algo. Mas o corpo não respondia à revolta de seus sentimentos. Estava entregue às circunstâncias. Só o tempo com seu andar maroto, debochando das forças internas da criatura humana, poderia responder. Na veracidade do ritmo enfadonho e miserável da sucessão do tempo, apenas as cicatrizes de uma pobre amante condenada à solidão, persistirão.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O Baú Sonhador.







O exterior daquela rara peça de antiquário já apresentava pequenas marcas da deterioração implacável do tempo. Mas seu conteúdo, garimpo sedimentado de recordações, nunca lhe pareceu tão vigoroso. Ilusório relicário que lá feneceu por meses, anos, sem ser novamente tocado pela mão humana, muito menos por uma minúscula e sonhadora mão de menino.

Aquele baú pertencera a seu avô, objeto inestimável, mantido em segredo como as coisas que jamais caberão em arquivos ou em caixotes de madeira. Guardado no porão, despertava a curiosidade de radiografia daquele incansável menino.

Houve uma primeira vez em que o menino desceu à câmara de seus sonhos, proibida enfaticamente por seus pais. Foi quando por um proposital descuido, sua pequenina bolinha de meia caiu nos degraus da escadaria que convidava ao inquietante cômodo, aí ele se deteve diante daquele fantástico baú.

Girou inúmeras vezes, dando intermináveis voltinhas, como que demarcando o território do pirata para descobrir melhor lugar em que o tesourou seria enterrado. Desconfiado, inicialmente por ter desobedecido às recomendações de seus pais, agora temia, mas sem recuar, quais incríveis histórias estariam segredadas no interior daquela fascinante caixa aveludada.

Quis se sentar no baú, mas tomado de tremor e arrepios, desistiu da empreitada. Dirigiu seu olhar para o alto da escadaria, num lampejo de arrependimento por estar naquele lugar, mas o chamado sedutor do volumoso objeto encantado o resgatou novamente à realidade de que estava ali, apaixonado pela estranheza que sentia.

Um grito de contentamento e surpresa quase escapou de sua garganta, tomado pela emoção. Quando percebeu as consequências que aquele barulho teria provocado, acordando seus pais e os levando ao local de seu delito, respirou fundo, recuperando o necessário fôlego para continuar sua aventura

Mesmo visivelmente deslumbrado, de vez em quando virava a cabeça em direção à fresta luminosa na parte inferior da porta, vigiando os movimentos de um possível despertar dos pais, antecipando as sombras sonolentas que não deixariam mais as dúvidas persistirem.

Seus pais já dormiam quando o menino se levantou em plena madrugada, pegou a bolinha de meia que seu pai havia feito para lhe demonstrar suas peraltices do tempo de garoto na manhã do dia anterior, e se encaminhou para a margem da escadaria do porão, limite do desconhecido que insistia em chamá-lo.

Os sermões e puxões de orelha de sua mãe, reclamando para que não esfregasse as rodas de fricção dos carrinhos nos seus encerados e polidos pisos de tábua corrida, tinham sido finalmente válidos para compor seus planos.

Sem arranhar o chão, pois não faria barulho para não assustar seus pais, executou suas artimanhas. O silencioso deslizar da bolinha de meia foi brincadeira perfeita para alcançar seu objetivo, descendo as escadarias do porão, fingindo buscar sua bolinha que lá caíra.

A hesitação ao colocar o pé esquerdo no primeiro degrau que representava a abertura de um universo inimaginável, logo foi trocada pelo emocionante palpitar comparável ao de um arqueólogo quando desenterra a esperança em revolucionar a pré-história da humanidade, vindo à tona pelas mesmas mãos que escrevem páginas de fantasias.

O menino estava lá, imóvel e perplexo perante aquele inanimado, porém brilhante e atraente objeto, em cujo interior deveria conter inesgotáveis recordações com o poder de fazer os mortos retornarem com mais vivacidade do que tinham quando ainda gozavam em seus lânguidos e ordinários corpos.

De repente, o baú deu um salto, rodopiou por cento e oitenta graus no ar, e desabou com força total, fazendo um violento estrondo quando bateu no chão. O menino ficou atônito e quase desmaiou por estar frente a frente com as intempestivas manifestações de tal fantasmagórico fenômeno, permanecendo fixado, boquiaberto e de olhar arregalado, como se estivesse fincado raízes nas ranhuras das tábuas empoeiradas daquele porão.

Com rigores de uma formação religiosa, mas não mais austera quanto seus avós receberam, repetiu as orações que lhe ensinaram, conseguindo se afastar suficientemente do baú para segurar o corrimão da escadaria e, caso precisasse, correr para cima com a determinação daqueles que não perderam a capacidade de confiar nas coisas.

Com todo esse medo que o fazia não controlar a tremedeira de suas pernas, talvez não conseguisse se apoiar nos degraus e viria a se esborrachar sem dó nem piedade. E também, mesmo se tivesse forças para subir, não teria coragem de ficar em seu quarto vazio e escuro, indo se enrolar com as cobertas da cama em que seus pais dormiam.

Só que nesse caso - pensou – qual seria a reação deles? Certamente ficariam intrigados com tal atitude, pois, apesar da pouca idade, não era tão comum aconchegar-se entre seus pais, no meio da madrugada, respiração agitada, esbaforido e transpirando incessantemente. Eles iriam notar e, sem titubear, perguntariam o que aconteceu, com a característica entonação de uma legítima Santa Inquisição.

Paralisado, pernas trêmulas, suas divagações sobre a inflamada intrepidez de seus pais ao pegarem-no em flagrante cometendo gravíssima infração, cederam lugar à outra manifestação estrondosa daquele baú. Desta vez, o baú iniciou um macabro ritual. Foi se sacudindo como cachorro molhado, balançando, arrepiado, as últimas gotinhas insistentes que teimavam em não abandonar a sua pelagem. Virou cambalhota, ficou pelo avesso, deu três pulinhos e sossegou seu corpanzil na posição de origem, como se nada de incrivelmente inusitado tivesse acontecido.

O menino, estatelado, já não exibia os olhos arregalados, mas agora os mantinha bem fechados. No escuro de seus olhos, mexeu as pontas dos dedos, certificando-se que seus movimentos foram readquiridos. Ainda sem forças para dar passos largos, pôde apenas deslocar languidamente a perna direita, repetindo, em seguida, a mesma operação com a esquerda. Aquilo que a escuridão externa tirou, faltando coragem pelo medo automático que dele se apoderou quando as luzes se apagaram, a escuridão interna, dos olhos fechados, devolveu, retomando a confiança antes prejudicada.

Ainda com seus olhos bem fechados, entregou-se a um bailado desconfiado, com o corpo inclinado para frente, tateando tudo que encontrava adiante, e tentando adivinhar, pelo formato, a função de cada coisa. Assim, distraído pelo jogo tátil que inventara, pôde suavizar momentaneamente o intenso medo, aquele pavor que estremecia, esquecendo a covardia infantil, o que lhe permitiu abrir devagarzinho seus olhos para fitar aquele fabuloso baú, que tanto o espantava e o fascinava.

Foi aproximando lentamente, chegando bem pertinho. Ficou a uma distância tal que restavam apenas algumas polegadas separando a pontinha de seus dedos da superfície aveludada do baú. Hesitou por uns instantes ainda, mas resolveu tocá-lo, impulsivamente, logo depois que esteve com os dedos parados no ar como um boneco mecânico de vitrine de lojas, esperando que uma pessoa curiosa pudesse dar corda para reanimá-lo, reativando suas engrenagens quase enferrujadas.

A emoção daquele contato era indescritível. Não sabia avaliar racionalmente as nuances de sentimentos que lhe invadiam, não só pelo tato, mas pelos demais sentidos corporais. Temperaturas diversas, em uma profusão de intensidades, transmitiram-lhe sensibilidade. Figuras multicores, misturadas na palheta de um pintor, agraciaram sua visão. Sons, melodias, balbucios, hipnotizaram sua audição. Fragrâncias, aromas, perfumes entorpeceram seu olfato. Sabores os mais magníficos extasiaram seu paladar.

Então, foi transportado a um mágico cenário. Dentro de uma lona de circo, trapezistas, malabaristas, acrobatas faziam singulares e múltiplas performances espetaculares. Ameaçou se aproximar dos artistas executando seus números, mas algo o impediu. Um anteparo invisível oferecia resistência à sua passagem. Tentou mais uma vez furar o bloqueio, mas nenhum esforço adiantou, pois o anteparo não cedia aos impactos do menino.

Foi então que percebeu estar na parte interior do baú, que ficou transparente, dando visibilidade ao mundo externo. Procurou se comunicar com os circenses que estavam fora da caixa em que ele se encontrava, mas ninguém poderia ouvi-lo do lado de fora. Havia um isolamento acústico. Audição, visão, olfato, paladar, tato, nenhum desses sentidos seria captado pelas personagens que realizavam suas proezas no palco do circo. Apenas o menino gozava plenamente de seus sentidos. Para o mundo externo era como se ele não estivesse ali, estava invisível, sua presença não era percebida.

Começou a devanear sobre aquela situação, e logo se recordou das estórias que seu avô, antigo proprietário daquele baú, contava. Sua vida foi dedicada integralmente ao circo. Nasceu, cresceu, foi educado, amou, sofreu, chorou em um picadeiro, sob uma lona de circo. Seu avô havia lhe contado aventuras fantásticas sobre os palcos, o trapézio, as maravilhas que só aconteciam com ele sob a lona daquele circo.

Após a morte de seu avô, a iluminação do picadeiro se apagou junto com ele. Foram dias sofridos para seus pais. Ele ainda não entendia suficientemente essas questões de morte. Só compreendia pela dor, sem qualquer assimilação consciente, principalmente pela dor transmitida pelo choro de seus pais. Foram longos dias de luto. Seu avô morava com eles, em um humilde quartinho, há alguns anos, logo após ter perdido seu negócio, ter falido sua fábrica de sonhos, como carinhosamente chamava o circo, e hipotecado sua casa. Não tendo mais como pagar a hipoteca, perdeu todo seu patrimônio e foi obrigado a se mudar para a casa do seu filho, o pai do menino.

Chegou à nova moradia sem uma única bagagem. Levou apenas um grande baú aveludado. Questionado sobre a ausência de roupas e pertences, respondia prontamente que tudo que precisava estava contido em seu baú. Em alguns entardeceres era flagrado conversando com seu objeto inseparável. Às vezes ele retirava de seu interior, pedaços de pano, aparelhinhos peculiares e bonecos dobráveis com os quais dançava e bailava por horas ininterruptas, ouvindo canções inaudíveis para pessoas comuns, que não tiveram uma história circense.

No início, instalou-se no melhor quarto de hóspedes daquela casa. Arrumaram com um capricho formidável, reservando a alcova principal ao mais ilustre visitante da família, na esperança que se integrasse à dinâmica e aos hábitos da casa. Mas com o passar do tempo, a presença do avô provocou incômodos incalculáveis. Suas exuberâncias eram visíveis demais, causando estranhezas nos convidados e amigos da família. Gradativamente, foi migrando para lugares mais distantes no interior da casa, instalando-se definitivamente num quartinho humilde destinado a governantas e secretárias. Como nunca foram adeptos de muitas mordomias, nem tinham condições financeiras que permitissem tais regalias, o quartinho esteve sempre desocupado.

Mas o avô quase não permanecia naquele quarto. Ele passava o dia inteiro no porão, mergulhado em seu sombrio e particular universo de fantasias. Apresentava espetáculos, executava números, exercia fascínio em platéias imaginárias. Por acreditarem que seu avô estava enlouquecendo, os pais do menino não gostavam que ele chegasse muito perto do avô, temendo que o menino se contaminasse com aquelas fábulas grotescas que o avô diariamente se entregava, em monólogos, na escuridão do porão.

Só ouvia os sussurros e um esquisito vozerio que escapavam das profundezas daquele porão proibido. Parecia que o avô falava com estranhas criaturas e que recebia respostas com gemidos e murmúrios guturais. Um dia, sabe-se lá por qual explicação, notando a presença do neto escondido, debruçado sobre a porta trancada que dava para a escadaria do porão, tentando ouvir os sons que vinham de lá de baixo, o avô subiu, destrancou a porta, segurou o menino no colo, levou-o ao seu quartinho e lhe perguntou se queria assistir a um inesquecível espetáculo de circo.

Desde aquele dia, a extensa platéia imaginária para a qual apresentava seus incríveis números, materializou-se na multiplicidade de fantasias que brotava na cabecinha de seu neto. Toda a magia da vida daquele velho homem fora transmitida com empolgação, e recebida com não menos entusiasmo por aquela criança apaixonada por estórias fantásticas. O menino havia herdado a capacidade imaginativa de seu avô, um verdadeiro contador de estórias estava se formando pela habilidade de encantar de um velho artista de circo.

Após a morte de seu avô, e por todo aquele ambiente pesaroso que veio à tona pelo remorso e pela perda de um ente querido, com a despedida daquele velho corpo que se distanciava num caixote de madeira para o fundo da terra - sua nova moradia ainda mais apertada do que o quartinho de empregada desocupado - como que por um passe de mágica, a memória que o menino tinha sobre o baú encantado se perdeu, sendo enterrada junto ao avô.

O porão também ficou abandonado, pois virou um local de tabu pelos pais do menino. Eles entenderam que aquele espaço adotado pelo avô deveria ser mantido como sagrado, santuário que representava uma espécie de mausoléu de todas as fantasias que vestiu e das peças que ali foram delirante e alegremente encenadas para compor suas personagens.

Durante muito tempo o menino esteve planejando penetrar naquele santuário ao qual tanto se identificava, buscando compreender aqueles insistentes chamados que ouvia, vindos diretamente do porão. Um misto de atração e repulsa o dominava, sobressaindo sempre a primeira, a atração. Foi quando já em presença do baú de seu avô, mais exatamente dentro dele, que pôde se recordar daqueles momentos especiais que passava sentado no colo de seu avô, no quartinho apertado, mas amoroso, ouvindo fábulas, lendas e misteriosas epopéias.

O menino ficou lá, absorto pelas encenações que se desenrolaram à sua frente. Não sentiu o tempo passar. Adormeceu. Nessa ocasião, ele se viu na pele de um dos atores circenses, fabricantes de sonhos. Estava empenhado em realizar incríveis números de ilusionismo em pleno picadeiro. Quando olhou para o lado, notou que um dos palhaços dando cambalhotas divertidas era o autor daquelas estórias que marcaram seus melhores anos, seu avô. Pegou-o no colo até suspender seu neto nos ombros. Segurou suas mãos, erguendo-as bem alto. O picadeiro em peso estava comemorando um dia especial. A platéia aplaudia emocionada.

Quando o dia amanheceu, o menino acordou entre seus pais. Assustado por estar naquela posição e com medo de ser interrogado por estar ali, rapidamente se certificou que ainda dormiam, saltou da cama em silêncio, e de fininho seguiu até à grande porta que dava para a escadaria do porão. Deteve-se lá por alguns instantes. Teve a ousadia de rodar a maçaneta sem cerimônias e desceu a escadaria. O baú estava encostado no canto, empoeirado e coberto por teias de aranha. Parecia que ali esteve por anos e que nunca mais fora mexido.

O menino coçou a cabeça, refletiu sobre a aventura vivida durante a noite. Mas não se lembrava daquele porão. Não era ali que esteve. Talvez nunca esteve ali. Será que aquele baú era o mesmo que foi o responsável por tê-lo lançado por inesgotáveis e fantásticos cenários? Será que se tratava do mesmo baú através do qual visitou e atuou nos palcos das fabulosas personagens da imaginação daquela privilegiada mente de seu avô? Realmente não sabia, talvez nada tenha acontecido. Sua gigantesca curiosidade havia lhe pregado uma peça.

Decepcionado pela ausência das maravilhas pelas quais supostamente passara, resolveu retornar ao andar de cima. Mas não mais voltaria ao quarto dos seus pais, pois já estava crescido e não caberia atrapalhar o sono deles como uma criança medrosa e insegura. Enquanto subia os degraus da escadaria do porão, ainda podia ouvir as gargalhadas e os falatórios que saltavam livremente daquele baú sonhador, circulavam pelo porão e chegavam, como última parada, aos ouvidos de menino crescido.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.