Pela calçada de pedrinhas portuguesas em formato de mosaico, já estufada por salientes raízes das árvores decorativas, caminho em direção à hospitaleira cafeteria do outro lado da rua. Acelerei o passo para secar ao vento os últimos vestígios de roupa encharcada, ainda resistentes, deixados por uma rápida tempestade que me pegou desprevenido já no trajeto para o café. Ao atravessar as principais ruas, no horário em que a maioria das pessoas larga o experiente, observei rostos apresados, satisfeitos, aflitos, invisíveis, contemplando a grandiosidade do instante, ou mesmo entregues à pequenez do momento.
Alguma cumplicidade me laçava a cada um daqueles rostos, inclusive os que ostentavam um afeto paradoxal, indistinguível aos meus olhos complacentes e enevoados. Quanto mais me distanciava do espaço central no qual a multidão se entrecruzava, os semblantes se desanuviavam, adquiriam maior leveza, esvaziando-se das energias caóticas e pardacentas.
Essa cafeteria fica num ponto pouco frequentado, ideal para um público - que seja o mínimo possível, claro - com certo grau de misantropia, palavra que acredito ser mais sofisticada e possuir uma atmosfera mais obscura e enigmática do que a sua irmã curta e grossa: a palavra “antissocial”. Talvez, ao contrário do que possa parecer para mim, tentando camuflar um pouco algumas realidades, a palavra “misantropia” só seja usada pelos próprios antissociais. Mas a minha se resume apenas a não participar das conversas como um protagonista - embora os acontecimentos nos peguem de surpresa e nem sempre é possível manter tal isolamento -, pois participar da mesma com a invisibilidade necessária para apenas escutá-la sem ser visto, pode ser considerado meu hobby predileto, inclusive sendo condição para que eu escreva estas linhas.
Sentei-me à mesa, já com o pedido feito, e olhei ao meu redor para me certificar que o ambiente estava propício para a prática da minha passividade. Realizando meus impulsos voyeuristas, notei que entre a mesa à qual estava sozinho, saboreando meu cappuccino, e as demais mesas, havia um espaço vago confortável - traduzindo: nem uma viva alma estava por perto. Mas ao visualizar um ponto mais afastado, percebi que havia um sujeito solitário como eu, com a diferença que ele estava finalizando seu ato de canibalismo, comendo um sanduíche e bebendo um refrigerante - embora devorasse a si mesmo achando inocentemente que comia apenas um pão com carne.
Ele parou de comer repentinamente, recostou-se no espaldar da cadeira, pôs as mãos no queixo, com ares de enfado, apoiando a cabeça com os cotovelos sobre a mesa já bagunçada pelos restos de sua gula. Eu continuei deleitando meu paladar com o cappuccino cremoso e quentinho, acompanhando-o com um olhar taciturno. Mantendo a mesma posição, virou levemente a cabeça para seu lado esquerdo, em que havia uma barra de ferro, semelhante a um corrimão, e logo desfez sua inércia, apoiando agora os braços nessa mesma barra, substituindo a função da mesa na qual repousava. Já apoiado no corrimão, com o corpo virado para o seu lado esquerdo, novamente deixou a cabeça sobre suas mãos e se demorou como se tivesse prestando a atenção
À sua frente - também para a minha surpresa -, com algum esforço para ver, debruçando-me sobre a mesa, pois uma pilastra tampava minha visão, havia outra mesa ocupada por quatro mulheres de um lado, já de idades avançadas, e um casal vestido elegantemente. O homem continua virado para a esquerda, com os cotovelos apoiados na barra de ferro e a cabeça repousando sobre as mãos. Ele olha fixamente para o grupo de pessoas. Por um momento, mesmo sendo uma remota hipótese, penso que de alguma maneira ele pertencia ao tal grupo. Mas eles ignoravam sua presença.
As quatro mulheres estavam muito sérias, quase nem piscavam. Só o casal sentado junto em um dos lados que falava como se tivesse instruindo as quatro mulheres do outro lado da mesa. Elas prestavam absoluta atenção nas orientações do casal. Será que seriam testadas para entrar em algum tipo de clã ou sociedade secreta? Ou eram as vítimas de um seqüestro e seguiam as regras do jogo para se libertarem? E o homem misterioso que só os observava de outro lugar? Mas eu também era um homem misterioso que os acompanhava com o olhar, inclusive acompanhando o homem misterioso que observava o grupo da outra mesa.
Como numa possessão demoníaca, o homem solitário começou a puxar assunto com o grupo, falando sem parar como uma metralhadora giratória monologada. O grupo imediatamente silenciou. O casal, tendo suas instruções interrompidas pela invasão do solilóquio estrangeiro, teve a automática reação de olhar o sujeito esquisitão que não fechava a matraca. Já as quatro mulheres, mesmo percebendo que o som agora vinha de outro lugar e que o casal agora estava mudo, continuaram estateladas na mesma posição anterior, olhando fixamente para o casal mudo.
Eu não conseguia ouvir o que o homem misterioso falava. Será que era mais um comparsa dos seqüestradores que agora revelara sua identidade e se unia aos algozes para castigar as pobres vítimas? Em meio ao discurso inaudível pela distância em que estavam, notei que por um aceno de mão, o casal convidou o estranho para se sentar à mesa do grupo. Ele se levantou rapidamente da cadeira em que estava e se locomoveu até o grupo. Ele só se calou durante esse percurso, pois retomou sua fala histriônica logo que se sentou ao lado do casal.
Ele tinha um tipo suspeito, talvez por estar antes sozinho, mas eu também estava sozinho sentado à minha mesa, então, se eu pudesse me ver nessas condições, também me acharia um tipo suspeito. Durante todo o tempo em que o ex-solitário não parava de falar, todos permaneceram calados e olhando para ele, com exceção das quatro mulheres que não abriram a boca e nem se deram conta da presença do estranho, pois continuaram sem tirar os olhos do casal mudo, como se fossem quatro autômatos.
De repente, o homem misterioso bateu na mesa com a palma da mão, deu um salto, abraçou o casal que nem sequer se mexia com o tal gesto supostamente afetuoso, e se despediu, dirigindo-se para a saída. O grupo ficou um pouco ainda em silêncio, inclusive o casal, como se estivesse atônito, tentando se recuperar de um choque anafilático, mas logo retomaram a discussão, rindo um pouco para descontrair. Uma das quatro mulheres, como um ato totalmente inesperado, imitou a risada do casal e fez um breve comentário - também inaudível para meus ouvidos discretos. Foi aí que me dei conta que naquele grupo ocorria uma entrevista de emprego.
O casal era de gerentes da cafeteria, e as mulheres, assustadas, as candidatas ao trabalho de balconista. Comecei a ouvir o argumento do casal, afirmando que os funcionários daquele estabelecimento era uma família e que se houvesse algum problema de convivência, não deveriam levar desaforo para casa, contando aos gerentes o acontecido. Mesmo o casal de gerentes ser bem mais novo que as quatro mulheres, ele estava atraindo a confiança das quatro com um discurso paternalista de proteção - claro, esperando controlar todas as possíveis situações que se passassem com suas funcionárias. As quatro, um pouco mais relaxadas, ouviam atentamente as instruções dos dois.
A conversa não se alongou muito após a despedida do homem que continuou sendo um mistério para mim. Logo o grupo se desmanchou. As quatro pretendentes ao cargo foram embora. O casal continuou sentado esperando a saída das mulheres, mas após essa saída, debateram um pouco sobre elas. Depois, levantaram-se abraçados, muito sorridentes, e retomaram suas funções na cozinha da cafeteria. Já eu, segurando o fôlego para tomar a última golada de um cappuccino já frio, depositei a xícara vazia sobre a mesa. Novamente sozinho, recostei na cadeira e me pus a refletir como começaria a escrever esta estória que acabo de encerrar por aqui.
CRÔNICA ESCRITA por ALEX AZEVEDO DIAS.
2 comentários:
Fenomenal!
Me perdi deliciosamente no clima bucólico, me senti dentro da cafeteria saboreando o capuccino e observando as quatro mulheres atentamente...
Você consegue, como poucos, fazer o leitor sentir tuas palavras e mergulhar nos teus contos ou cair neles de paraquédas.
beijo!
Embora muita gente ache que a capacidade descritiva do escritor seja um subterfúgio para mascarar suas deficiências enquanto contador de histórias, eis aí a prova do contrário,essa belíssima produção literária.
Parabens!
http://oficinamissoes.blogspot.com/2011/05/o-velho.html
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