Da sacada do quarto em que estou hospedado, respiro o temperado aroma do mar. Nela eu escrevo. Alguns pinguinhos errantes, órfãos de chuva passageira, colorem o frio da manhã com sabor de orvalho.
Ainda tímido, o sol lança seus primeiros raios em direção à natureza adormecida, envolvendo-a num maternal abraço. Com famintas risadas, gaivotas, fragatas e mergulhões serpenteiam seus corpos lânguidos num alvoroçado bailado de plumas. Seus voos rasantes e circulares indicam a presença de traineiras ancoradas no cais do porto, oferecendo, além do banquete de peixes frescos, um deleite visual.
Aos pés da cruz cravada na areia fofa - símbolo material e histórico de uma missa rezada por jesuítas - um cachorro ladra para o alto do monumento, talvez tentando afugentar algum pássaro insubmisso à catequese, ou reverenciando o passado remoto que se condensa na paisagem que meus sentidos captam. Ao redor desta cruz inaugurada em homenagem à chegada da coroa portuguesa, vários pratos de cerâmica, como se fossem caldeirões de bruxas, de ritos africanos, traduzem a mistura de credos tão estranha e fascinante que adorna o complexo povo brasileiro.
O aspecto lúgubre dos móveis e objetos decorativos da suíte em que estou, na penumbra, contrasta com o adocicado verde-claro da virgindade de folhas beijadas por ventos preguiçosos e brincalhões. Franzidas em feixes de suspiro, as ondas tocam minhas mãos com um som fininho - estribilho assoviado.
Ao fundo, uma cordilheira azulada repousa no sombreado projetado por cinzentas nuvens. Vagarosamente o céu se rompe e cumprimenta o bordado montanhoso de nuanças esverdeadas. Com as bochechas rosadas por pequeninas florescências ornamentais, a saliente vegetação típica daquele litoral afunila nas laterais do cais como longas costeletas mal-aparadas pela navalha do barbeiro.
Obedientes ao regime do tempo, as densas nuvens carregadas de chuva emagrecem, afinam, coroando o cenário costeiro com rabiscos vibrantes. O sabor de maresia dos velhos barcos esquecidos na orla dissemina pigmentos amarelecidos sob as unhas dos dedos que apertam visceralmente a caneta com a qual agora escrevo. Numa ilha não tão distante, o arvoredo solitário esvoaça sua volumosa cabeleira distribuída por sinuosos e desalinhados galhos de um imponente tronco.
Imerso na confluência de sensações que brotam do exterior que contemplo - não de fora, mas integrado no meu íntimo - observo que na casa ao lado, roupas íntimas balançam estendidas no varal. Tal visão denota que não estou só, mergulhado num teatro introspectivo. Aquelas peças desavergonhadas da intimidade feminina acenam para mim, sacudidas pelo sopro leve de trás dos montes - anunciam a existência rebelde que entra em sintonia com afetos cortantes, libidinosos e alcoviteiros.
Espicho o pescoço sobre meu ombro esquerdo para melhor visualizar as particularidades alheias e me deparo, não sem surpresa, com uma jovem mulher deitada de bruços sobre uma esteira de palha. Procuro reprimir meu turbulento olhar, temendo que ela me flagrasse em ato delituoso - invadindo seu espaço privativo -, mas os contornos proeminentes da moça impediam que me desviasse desse enquadre visual. Apesar de ser um dia deslumbrante e inspirador, o clima está frio, com ventos capazes de arrepiar dos pelos da nuca até a espinha dorsal. O que faz então uma pessoa seminua - em trajes de banho - deitada com tal exposição ao relento, no terraço descoberto de sua casa?
Independente de minhas desconfianças e resistências, ela continua lá, insinuando-se ao mar. Bronzeia-se com um sol que de tão inibido, acima das emaranhadas e desajeitadas nuvens, belisca pedrinhas de gelo açucaradas que se dissolvem em contato com as flácidas línguas das palavras soltas no ar. Dizem que o sal levado dos oceanos à margem das praias queima mais do que o intenso calor dos dias quentes de verão. Mas também resseca e deixa a pele quebradiça, desidratada.
Essa moça vai pegar um resfriado rapidamente se ela não se cuidar! Mas o que estou dizendo? Não desejo que ela saia. A exuberância silvestre se decomporia caso ela ouvisse tal estúpida sentença e resolvesse segui-la cegamente. Ela não faria isso! É muito maior do que a significante pequenez de minha consciência.
O apetite insano do meu olhar já se rendeu à escravidão das curvas, reentrâncias nauseadas e desfiles de texturas daquele corpo pulsante e magistral. A natureza que até então detinha a exclusividade do meu desejo ocioso, agora divide terreno com a visão da exótica miragem feminina. Ela não se exibia como um desatento comentário pudesse sugerir. Seus espontâneos gestos, dobrando os joelhos para alçar seus pezinhos em movimentos aleatórios, alternam-se com suaves mexidas dos dedinhos. Essa graciosidade revela que a silhueta da paradisíaca topografia - suas bordas irregulares, informais e curvilíneas - toca o marinho celeste, coincidindo com toda a formosura da moça.
Descobri que minha atenção não cedeu lugar à paisagem humana. Não há diferença entre aquela mulher e a natureza contemplada. Ela também não é apenas uma parte complementar, como o reflexo da luz sobre o espelho d’água. Ela vai além do limite racional, pois sintetiza todo o fenômeno natural que viceja por letras trêmulas e dançantes: O bocejo matinal do astro rei; A saudação das gaivotas aos primeiros barcos de pescadores tiritando de frio após longa jornada de trabalho; O abraço encabulado da manhã ao estender o lençol quentinho na madrugada que chora; As piscadelas dorminhocas do relevo verdinho que responde às generosas carícias da linguagem dos ventos; O espirro repentino das teimosas nuvens molhando a varanda na qual escrevo. Bons presságios saltam em labaredas do corpo de mulher deitado de bruços.
Suas chamas ardem na garganta do meu afetado discurso. Mesmo sem jamais tê-la visto antes, desde o início, enquanto relatava extasiado o amanhecer, era apenas ela, tacitamente, que conduzia o deslizar da caneta sobre a aridez enevoada do papel. Transmitindo o amor em sonoro silêncio corporal, com a calmaria de marolas ninando as embarcações, ela dialogava com o mar inconsciente, influenciava minha percepção e hipnotizava minha mão numa eloquente psicografia.
Acho que ela de alguma forma sentia minha ávida presença na ausência narrativa de meu fictício ser. Ainda tenho dúvidas de que ela existisse de verdade. Em nenhum momento ela esbarrou seus felinos e inocentes olhos com o olhar licantropo deste falso cordeiro que aqui escreve. Apesar disso, acredito que cada minúsculo pelo eriçado e cada imperceptível poro dilatado daquela pele feminina, retumbava numa comunicação primitiva com meu corpo adotado pela experiência sensorial, mas carente de verbo.
(...)
Agora que concluo esta história, alinhavado por agulhas sem novelo e carretel, a noite já caiu, cobrindo com denso véu, o cais que agora se ilumina com brilhantes lâmpadas incandescentes. Nem vestígios da moça. O lugar em que esteve deitada foi lambido pela indubitável escuridão. A esteira de palha também não mais se encontrava lá.
Dizem que à noite todos os gatos são pardos, que ela é inequívoca e coisa e tal, mas acabo de ver um gato preto pilando o muro e cruzando meu caminho. Bem... Isso é outra história. Agora preciso dormir para aguardar um novo amanhecer.
O céu está limpo, estrelado. Talvez não chova...
CRÔNICA ESCRITA por ALEX AZEVEDO DIAS.
P.S. Eu escrevi "Na Sacada" neste final de semana, durante uma manhã em que estive sentado numa sacada - varanda lateral - de um quarto de pousada em Arraial do Cabo. Pude sentir o mundo acontecer, não sem ser eu mesmo - e me aprofundar numa inusitada aparição externa que me despontou no íntimo o impulso literário. Essa sacada dava para a praia dos anjos na qual se localiza o cais. É lá que os pescadores - principal fonte de renda do município -, além da extração de sal, concentram-se, organizando o comércio local. Ao lado, a pracinha inaugurada em homenagem à chegada do navegador italiano Américo Vespúcio, a mando da coroa portuguesa. Em frente a essa praça, a igrejinha construída em 1503: Nossa Senhora dos Remédios. Na areia, em direção à praça, uma cruz de madeira em tamanho natural simboliza a primeira missa rezada em território cabista.