Elias, sentado à mesa, repetia com voracidade a sua santificada gula de cada dia. Devorava, mastigava, engolia, com colheradas substanciais, recheadas de orgulho, um incrementado prato de feijão mulatinho. Há muito tempo não saboreava um feijãozinho como aquele. Já estava prestes a declarar sua paixão à culinária brasileira. No auge dos seus mais de quarenta anos de idade, não se lembrava de ter comido prato tão gostoso. A última vez em que esteve diante de tal sublime iguaria, foi quando era garoto e sua mãe ainda não havia morrido prematuramente, como ocorrera algumas semanas depois deste episódio - lamentando ardentemente a falta que sentia do marido que a abandonara dias antes.
Antes das fatalidades, num dia trivial, Elias estava rondando sua mãe na cozinha, como já era de costume, nas proximidades do almoço, enquanto preparava o feijãozinho caprichado e despejava todas as broncas maternas possíveis pelo inconveniente da situação. Afinal, lugar de criança nunca fora a cozinha – mesmo que nenhuma criança consiga sair de uma.
Todas as crianças nascem, de parto normal ou de parto cesariano, dentro da cozinha. Depois crescem e se proliferam na mesma ou noutra cozinha. Só quando a hora da morte chega, é que escolhem outro lugar, um pouco mais estreito, apertado mesmo, e de madeira envernizada – apesar de algumas mais humildes nem mesmo um mero vernizinho recebem.
Acontece que Elias degustava seu prato de feijão com tanto prazer, que já estava literalmente morrendo desse afeto voluptuoso. Parece que ele não escolheria outro local para bater as botas. Seria na própria cozinha, aonde nasceu, cresceu e se proliferou, lugar também eleito para morrer.
Logo após a derradeira colherada no suculento feijão, deixando o prato limpo, cristalino, seguida das certeiras lambidas que Elias deu no intuito de capturar os últimos apetitosos resíduos que a mísera colher não era capaz de alcançar, inclinou-se para trás, em sua exclusiva cadeira de refeições - porém mais empanzinado do que satisfeito -, e um ruído medonho, que não era um arroto, fora ouvido de suas partes baixas. Sua barriga inchou terrivelmente - como as bexigas de ar sendo sopradas por um levado aniversariante -, e a cabeça começou a diminuir na mesma proporção em que a barriga aumentava. Parecia nitidamente que o ar da cabeça, que encolhia, passava para a barriga, que elástica, esticava com uniformidade.
De repente, um fenômeno inusitado se instalou no recinto. Sua cabeça havia virado uma pequenina semente de feijão preto. E isso era a coisa mais estranha disso tudo. Pois não era um feijão mulatinho, como do seu banquete, mas sim um comum e minúsculo grão preto. Como então ficaria aquele corpo disforme, com uma pança imensa e uma cabeça reduzida à semente de feijão? Será que ainda seria capaz de pensar?
Do alto do seu extenso pescoço, o feijãozinho desequilibrou. Começou a bambear como um João-bobo inflável. Mas vencido pela gravidade, precipitou-se, lançando-se em queda livre, num angelical bailado de suicídio mental. Caiu certinho no meio do prato babado pela gulodice de Elias. Aquele corpo, no alto do qual a cabeça estava atarraxada, e que se reduzira a um deprimente grão de feijão, era o lugar de onde jamais o cérebro deveria ter saído.
Por alguns instantes, os pensamentos de Elias esvaziaram-se, ficaram numa paragem desértica. Mas ao readquirir a orientação espacial, ressituando-se, ao longo de fervorosas piscadelas seriadas, apalpou desesperançoso seu volume craniano, para certificar-se de sua presença, e confirmou a circunferência da cachola.
Ele não mais estava desmiolado. O formato de sua cabeça permanecia exatamente do jeito que sempre fora. Não entendendo o que havia sucedido, e temendo ter sido vítima de sintomas alucinatórios, deu uma tímida espiadela para o prato, conferindo a existência do tal feijão preto. Lá no meio estava ele, intacto. Seu corpo continuava inteiro, sem faltar nenhuma parte - nem maior nem menor.
Elias, ainda cismado com aquele único feijãozinho em seu prato - produto imprescindível da cesta básica, inclusive pela quantidade -, que antes achou que se tratasse de sua cabeça em miniatura, muniu-se de talhares, dando prioridade à faca, e ameaçou cortar o feijão ao meio. Quando levou a serra da faca ao ventre da sementinha, iniciando a operação de corte, sentiu uma aguda dor no lóbulo frontal. Parecia que suas melhores recordações estavam sendo arrancadas a pérfidos golpes de cruéis lenhadores.
Assustado com a hipótese de que seu cérebro realmente tinha caído no prato em formato de feijão, cerrou os punhos e começou a golpear sua cabeça com leves soquinhos. A cada batida, um som oco reverberava dentro da caixa craniana, como se tivesse um profundo e absoluto vazio. Passou a graduar a força e o ritmo dos golpes, mantendo sempre um eco longínquo em tais batidas, como se estivesse na beirada de um abismo com quilômetros de profundidade.
Aquela sementinha condensava toda a sua alma. Estava trancafiada numa lâmpada frágil com um emaranhado artesanal de sentimentos embutidos. A memória afetiva retornava em turbilhão excessivo, como num bombardeio cujo perdão se fazia impiedoso.
Precisava extirpar todo o mal. Sua vida se esvaia num fluxo intenso. Pensamentos recônditos vieram à tona. Estava lidando, com a superfície lisa e renal do feijão - sem a peculiaridade da benéfica filtragem de sonhos, lembranças e pesadelos -, na qual a essência desalmada se comprimia. Na iminência de ser invadido pelas reminiscências mais dolorosas, emitidas pelo feijão - não de dentro para fora, mas de fora para dentro -, num lapso enfurecido e fumegante, tentou abocanhar de volta a sua alma, mesmo submerso no ato pleno da contradição irreversível, para reordenar suas paixões em seu devido lugar de mérito: o esquecimento.
(...)
Apanhado desprevenido no contra-ataque, os lábios do feijão, maiores que os seus, alavancaram uma bocarra surpreendente, engolindo Elias antes que ele pudesse recuar em franca defesa. Não sobrou nada do heróico Elias. Só o vazio de sua cadeira apontava para sua história. E aquele único feijãozinho preto, enterrado no alvo prato de porcelana, relatou à posteridade, na rádio nacional, o dia
Antes de ser totalmente digerido pelo estômago brocado de um tropeiro valentão qualquer que andava pela região, Elias constatou, pelo toque calejado daquele homem rude e faminto, do fundo da panela de pressão, prestes a ser vedada pela tampa emborrachada, que quem iria comê-lo não seria ninguém menos que seu próprio pai. Causador da morte de sua mãe, de desgosto, na última refeição, quando não mais voltou ao lar, pagou pela própria boca, na crueza do destino, ao mastigar o filho das entranhas de quem ele rejeitara.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
16 comentários:
seus textos são muito bons, amigo. sua linguagem é belíssima, o ritmo de leitura que você impõe à história é muito bom.
a única crítica que tenho a fazer é que os textos são um pouco longos para blog. eu, pelo menos, não gosto muito de ler textos longos no computador (só li esse e alguns outros por que são seus). a título de sugestão, acho que você poderia, para cada história, colocar a postagem facionada, digamos assim, como se fossem capítulos. assim, o leitor teria a impressão de que o texto é menor (embora tivesse que ler pelo menos dois "capítulos), o que facilitaria a leitura e não cansaria tanto.
no demais, você está de parabéns, amigo.
Rapaz que legal hein... Vc escreve muito bem... Apesar das incertesas do personagem isso aqui me deu é fome, hahahahaha, eu lembrei do feijãozinho da minha mãe também, hahahahahahaha.
Parabens pela forma como escreve.
passa lá no meu blog, cho que vai gostar.
Nossa, eu fiquei chocada. Não esperava pelo final, não esperava nem o meio. Muito bom mesmo! Voce conseguiu fazer com que um conto de feijão ficasse bizarro no bom sentido!
Parabéns!
Bjs
Giuli
http://nadaqueacontece.blogspot.com/
Fiz algumas alterações necessárias para que meu texto possa fluir melhor.
Parabéns pelo blog
adorei seu texto
abraço
LOL!nunca pensei que ler uma historia que fala de um feijão seja interessante,muito bom msm vc escreve muito bem!!
Ola,ADm do My sound aqui,so para falar que Will.i.am é um dos vocalistas da banda Black Eyed Peas,esqueci de mensionar isso no post do blog.não sei se voCê conhece a banda,mais é uma banda com um grande reconhecimento.
Olá, Alex!
Tu tens um belo texto, parabéns!
Uma pequena observação, se aceitares, é o espaço dos posts, poderia ser um pouquinho maior, facilitando a leitura!
Abraço!
Mais uma excelente história, e de onde não se imaginaria que houvesse uma história, vc consegue extrair algo legal, parabéns.
aUEHUaheuHAEHUh
Reflexivo. Achei interessantissimo e, ah!, a meneira com que escreve, deixa sucinta a imaginação fluindo mentalmente de maneira, até surrealista!
Fiquei me imaginando na situação do "sujeito" do texto.e decidi parar é muito arriscado para mim =p
Ótimo texto, man!
Imaginei tudo, todos os detalhes do texto.
Muito bom!
Wow! E a resposta do meu texto foi outro texto maravilhoso seu! haha
Qualquer inspiração é bem vinda. hahaha
Muito obrigada!
Bjs
Mais uma vez encontro um traço naturalista em sua obra. Fiquei até arrepiado. Homem se transforma em abelha e agora um outro se transforma em feijão. Senti uma forte crítica à gula (talvez seja maluquice de minha mente. Seu desfecho me fez lembrar Edgar Allan Poe.
É impressão ou tem uma pitada de Edgar Allan Poe neste feijão?
Pra variar, gostei do conto, principalmente por ser rápido, direto e bem reflexivo.
Já tentei escrever textos "extraordinários", mas não viajei bastante a esse ponto. Quem sabe um dia. ;)
Forte Abraço
www.folhetimonline.com.br
Nossa! Você escreve muito bem, é um texto muito, muito bom e legal de se ler, super criativo e surpreendente. Gostei muito. Parabéns!
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