quinta-feira, 24 de março de 2011

O Amor do Ódio.














- Quanto tempo ainda me resta, doutor?

- ...

- O que farei com isso?

- ...

- Quer que eu siga a minha vida? Mas como?

- ...

- Você diz que nós todos morreremos... Sei disso! Só que a maioria não sabe a data de sua morte. Não se angustiará com isso.

- ...

- Tentarei, prometo. Farei um esforço para por em prática os seus conselhos.

- ...

- Sim... Tenho o seu número. Sei que posso contar com o senhor se precisar. Mas para que servirá um médico agora que não mais evitaremos a fatalidade?

- ...

- Ok... Recomendações à família. Tenha uma boa tarde. Pena que o senhor não poderá dizer o mesmo para mim. Espero reencontrá-lo mais um dia ainda. Sei que o senhor fez tudo que pôde. Confio no senhor, doutor. Adeus...

Pesaroso e calado, Saulo foi se retirando do consultório. Se não fosse um movimento involuntário - a respiração -, passaria a duvidar se teria valor continuar enchendo seus pulmões de ar.

Antes de sair, meio a contragosto, por ter sido vencido pelo impacto da notícia, teve que se demorar por alguns instantes na sala de espera para se recuperar. Estava com um formigamento espalhando-se pelo corpo, muita fraqueza e pernas bambas. Fez um exercício de relaxamento discretamente, que aprendera numa aula de ioga em tempos remotos, pois começara a suar frio e a ter tonteira.

Ficou um pouco constrangido quando a secretária, percebendo algo estranho com ele, perguntou se queria alguma ajuda. Ele negou qualquer mal, agradeceu a gentileza, levantou-se e se despediu.

Já na rua, desconsolado, mesmo estando um ensolarado dia, trovejava nos conflituosos pensamentos de Saulo. Andava em círculos, num itinerário obscuro. Parecia que tinha acionado um sistema automático, em plena inércia, sem se dar conta que andava, muito menos para onde ia.

Ao tomar consciência de seus passos, orientou-se em direção à sua casa. No caminho, a retrospectiva de sua vida iniciou o percurso da projeção de um curta-metragem. Já não era tão jovem, mas sua história poderia ser resumida em poucas palavras. Compreendeu que algo fundamental faltava, como uma última peça para completar o quebra-cabeça. Uma pequena coisa, porém de enorme verdade, continuava desencaixada.

Esse fato - uma ausência que o impedia de finalizar harmoniosamente sua vida como num extenso e glorioso painel - passou a incomodá-lo mais do que a informação dada pelo médico que sua existência estava por um fio, com os dias contados. Mas o que seria essa parte essencial de sua vida que faltava? Era realmente essencial? Ou por ser tão importante, era justamente esse o motivo que a fazia faltar?

A figura austera do médico que lhe dera a aterradora notícia - assinando sua sentença de morte -, retornou à alma conturbada. O doutor possuía mais idade do que Saulo. Era um médico familiar que lhe acompanhara durante um tempo considerável. Saulo o endeusava como uma sábia personalidade. Muito notório naquelas redondezas, ficou famoso pela precisão diagnóstica, concebendo aos seus pacientes, eficientes estratégias de tratamento - com as quais atingia a cura na maioria dos casos. Por chegar a essa conclusão - justamente por isso - não conseguia entender o descaso sobre a possibilidade do seu tratamento. Por que não detectou sua doença enquanto ainda era tempo para curá-lo? Foi imediatamente decretando o fim de tudo, sem oferecer nenhuma alternativa para amenizar seu fardo e sofrimento.

Saulo passou a se indagar, perante a competência clínica de seu médico, sobre a gravidade e o avanço de sua enfermidade. Mensalmente marcava consultas. Fazia visitas regulares ao seu consultório. Por sua frequente presença, não tardou em acrescentar um vínculo empático e afetuoso àquela relação. Não mais se reduzia a laços estreitamente profissionais. Ficaram muito íntimos, amigos confidentes. Quando estava em seu consultório, Saulo comentava passagens de sua vida e, como retribuição, ouvia pacientemente - pois não seria diferente disso - os dramas sentimentais do doutor. Era uma relação hospitaleira, que apesar do que essa palavra indica, nunca sabia ao certo se declinaria ou fortaleceria o vínculo médico-paciente.

Pelo menos de uma coisa tinha certeza: Aquela amizade precisaria sobreviver à sua prematura partida. Saulo não permitiria que aquela relação que transcendia uma mera formalidade, perecesse no justo momento em que fecharia as cortinas da sua vida. Um acontecimento banal, daquela envergadura, a morte, - pois todos estão submetidos a ela, mais cedo ou mais tarde -, não seria a grande vilã que atrapalharia seus projetos sensíveis.

Movido por essas convicções, Saulo se lembrou de um embrulho que guardara no armário do seu quarto para ser usado numa ocasião especial. Estava lá, mantido em segredo, longe dos olhos do mundo, ao longo de algumas décadas. Não sabia se aquele objeto escondido na penumbra de seu armário, dentro do pacote, ainda funcionaria. Finalmente, o tempo chegara. Ficou ansioso para pôr em prática o que sempre sonhara, mas que não havia ainda uma oportunidade de realização como aquela, como a que estava por vir.

Uma mística sensação de felicidade palpitou em seu peito. Não existiria melhor e mais adequada pessoa para intermediar a sua satisfação plena: O seu médico. Ele o amava como poucos o podiam amar. Era um paciente especial, pois fora o escolhido para receber do seu médico a notícia de morte. Seu médico jamais errara um diagnóstico, sempre curando todos com competência. Mas no caso de Saulo, aquele homem que confidenciava seus problemas, foi logo sentenciando sua morte, sem sequer tentar tratá-lo.

Saulo chegou a pensar que tal atitude fosse sinal de descaso do seu amado médico para com ele - coisa que não admitiria jamais vinda de altiva figura -, então fora mais convincente entender, longe de qualquer risco que poria a confiança em dúvida, que a atitude do médico o tornaria um escolhido, uma pessoa especial, o eleito dentre os demais pacientes.

(...)

Chegou à sua casa sem fazer qualquer ruído. Abriu a porta com a destreza silenciosa dos felinos. Entrou e a encostou vagarosamente. Foi logo para o quarto, sem acender as luzes para não chamar a atenção de vizinhos oportunistas, abriu o armário e, por causa da escuridão, apalpou com dificuldade os objetos até encontrar um embrulho, um macio embrulho de tecido de algodão. Saulo o apertou contra o peito e balbuciou algumas palavras inaudíveis, enquanto espremia o embrulho com os braços.

Não quis avaliar a situação do objeto. Preferia arriscar, surpreender-se com o resultado. Acondicionou o embrulho em sua pasta - companheira inseparável de Saulo - num lugar que não fizesse volume, mas que tivesse facilidade para ser manipulável. Bebeu uma dose de aguardente, para celebrar a proximidade da data especial - tão aguardada -, passou o copo vazio no filete de água da torneira, deixando-o sobre a pia e novamente foi em direção à rua.

Ameaçou passar em um botequim para tomar outra aguardente, completando o ritual cerimonioso, mas declinou de seu impulso ao pensar que não deveria desviar do roteiro que arquitetou com virulenta paz de espírito. Seguiu em frente, obstinadamente, sem hesitar por nenhum instante. Ao chegar ao consultório do seu médico, tocou a campainha, e fora recepcionado por sua secretária.

Perante a pergunta sobre o seu retorno, Saulo alegou com engenhosidade, que o doutor ficou de prescrever-lhe uma medicação, um sonífero, que serviria como paliativo para a ansiedade. Ele continuou argumentando sobre o horário que o representante dos laboratórios farmacêuticos levaria amostras grátis da substância que seria prescrita pelo médico. A secretária, persuadida pelo discurso de Saulo, anunciou sua presença ao médico. Ele ainda aguardou por alguns instantes e logo foi convocado a entrar.

- O que houve, Saulo? Por que está aqui novamente? - Perguntou o médico intrigado.

- Estou aqui somente para lhe prestigiar o acolhimento que o senhor dispensou a mim. - Disse Saulo, calmamente.

- Você está muito tenso. Sente-se. Vamos conversar. Conte-me sobre o que você sentiu e pensou nesse meio tempo, desde quando você saiu daqui, e esse seu repentino retorno .

- Eu descobri toda a verdade sobre nós dois!

- Ah... É?! E como é isso?

De forma impulsiva, Saulo retirou o embrulho da pasta e o colocou em cima da mesa do médico.

- Está aqui o presente que lhe entregarei, demonstrando toda a minha gratidão. O seu prognóstico declarou minha morte. E sei que somos predestinados a convivermos.

- Saulo, desculpe-me, mas não estou alcançando o seu raciocínio. - Falou o médico um pouco atônito sobre o que acabara de ouvir de seu paciente.

Antes de o médico apanhar o embrulho, Saulo se antecipou, agarrou o embrulho e tirou do seu interior um revólver em perfeito estado de conservação.

- Para que você trouxe isso, Saulo!? - Indagou já transtornado, o doutor.

Saulo sorria enquanto engatilhava a arma e a apontava para a testa do médico, a queima roupa.

- Querido, nós vamos juntos... - Exprimiu um Saulo passional.

Um estampido fora ouvido além da sala de espera, ecoando nos corredores do edifício. Várias pessoas que estavam por lá correram para a sala em que o médico atendia. Chegando lá, encontraram Saulo paralisado, respingado de sangue, ainda com a mão estendida e o dedo no gatilho. O médico, no chão, atrás da mesa dos atendimentos, jazia imóvel, com os olhos abertos e a marca do orifício de bala na testa, pelo qual seu cérebro estourara.

A polícia fora chamada e rapidamente já entrara no local do crime, dando voz de prisão ao assassino que ainda não havia se movido desde que praticara o homicídio. A perícia quase não teria trabalho para solucionar o caso, pois quem cometera o ato criminoso fora praticamente pego em flagrante.

Ao ser retirado do local, ainda com todos os membros enrijecidos, Saulo apenas mexia os lábios, murmurando frases indecifráveis pelos agentes federais: - “Ele foi primeiro! Mas quem se foi? O médico ou o amigo? O amigo ou o médico? Quem se foi? Ele foi primeiro.”

Saulo foi julgado no tribunal e condenado por crime doloso, com intenção de matar - premeditado. Mesmo tendo sido avaliado por um psiquiatra como mentalmente incapaz, não escapou de ser penalizado.

Depois de já passarem muitos anos em que Saulo esteve trancafiado no presídio, ainda continuava repetindo as mesmas frases, sem cessar: - “Ele foi primeiro! Mas quem se foi? O médico ou o amigo? O amigo ou o médico? Quem se foi? Ele foi primeiro.”

Saulo morrera no cárcere, de velhice, tendo como causa do óbito, falência múltipla dos órgãos. A morte não o perturbou durante muito tempo. Nem mesmo as doenças corriqueiras o atingiram. Parecia que era imune a qualquer mal. Já o seu querido médico, assassinado passionalmente, famoso pela eficiência diagnóstica, pela primeira vez... Errou.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

7 comentários:

Tamires Santos disse...

Olha....Se texto, apesar de um pouco extenso, é incrível.

Gostei muito da parte do diálogo. Principalmente por não conter as falas do médico.

Abre um leque incrível de possibilidades de interpretação.

Bravo, Bravíssimo.

Bj.

Misunderstood

Unknown disse...

Gente... que final maravilhoso!
Adorei que no início eu meio que lembrei do filme "Minha vida sem mim"
Depois vi que o rumo era outro...

Muito bom!


;D

Arathane disse...

realmente o texto é bem extenso, entretanto interessante, com um excelente final ...

Lucyano disse...

Ótimo texto, final extremamente interessante.

Estou seguindo
http://cinemaparceirodaeducacao.blogspot.com/

Vitor disse...

É por isso que eu deixei de lado a Saúde Mental. ahahahahah
Gostei da ironia, mas gostei mais ainda porque lembrei do Nelson Rodriguez enquanto lia o texto. Por alguma razão isso está com muita cara de A Vida Como Ela É. Acho que é o nome do carinha, Saulo, ou então o o eixo da história ser trágico.
Congratulações.

Suzy Carvalho disse...

é extenso e ate um pouco cansativo por isso, porem, é muito bem escrito e o final surpreendeu. ;D

Anônimo disse...

Amigo é incrível sua criatividade para criar contos. Na posição de leitor experimentei um sentimento de compreensão na atitude do protagonista. Embora ele tenha feito um ato absurdo e insano, isso não me provocou o que eu acho que normalmente deveria ter provocado em qualquer pessoa, que seria algo de espanto ou surpresa talvez.

Abraço