Sob caixotes empilhados, cobertos por um longo lençol branco, o altar improvisado suportava diante de si um homem ajoelhado. Na posição de clemência, Arcanjo suplicava à ausente imagem santificada. Não havia andor, nem mesmo o santo era de barro. O que havia no lugar da fé e orações, era um cartucho de bala - adorado por Arcanjo.
Há alguns anos, planejando dar cabo de sua própria vida, foi à igrejinha perto de sua casa e, com uma vasilha, recolheu um pouco da água benta que estava numa caldeira logo na entrada do templo. A bala, ele já possuía. Fora a única que restou na gaveta do seu velho pai morto - homem que se dedicara exclusivamente, até o último minuto de vida, à contravenção. Como seu pai não deixara patrimônios - apenas alguns bastardos rebentos pelo mundo afora - aquela bala fora a herança máxima de um pai subversivo.
O mais digno a ser feito por um homem de passado maculado e sem perspectiva de futuro, era cometer o suicídio com o honrado cartucho que seu pai lhe deixara. Seria lembrado eternamente por tal ato derradeiro. Por isso, cultuava aquele imponente cartucho no topo do altar improvisado - seu objeto sagrado, pai celestial.
Não constituíra família. Então, ao contrário do seu pai, não deixaria herdeiros - nem oficiais nem ilegítimos. Apenas a sujeira de seus restos mortais daria trabalho aos agentes sanitários. Um amontoado de matéria orgânica perecível. Mas tinha o corpo raquítico, logo, nem tanto ficaria exposto na cena do crime. Aquela bala de rifle faria um estrago sem precedentes. Ficaria desfigurado, irreconhecível, caso apontasse para a própria cabeça e apertasse o gatilho.
Depois de pedir permissão às santidades de sua devoção, retirou o cartucho do altar e o submeteu a um ritual de polimento visando a purificação total do artefato. Com uma fina flanela, umedecida na água benta roubada, começou a esfregar o cartucho até a última poeira desaparecer de sua superfície. Munido daquele rifle antigo, após uma limpeza minuciosa da ferramenta fatalista, encaixou o cartucho, ficou de cócoras - em sinal de penitência -, virou o cano da arma para a ponta do seu queixo, apoiou-a entre as firmes pernas - com o sangue frio, pois tudo havia sido calculado - e apertou o gatilho com obediente propósito de passar a existir na morte.
No instante do disparo, fechou bem os olhos para não sentir o forte impacto. Após alguns segundos do disparo do rifle, ainda ouvindo o silêncio - tendo seus sentidos intactos -, abriu levemente os olhos, passou as mãos pelo queixo - a procura de um rombo monumental -, mas nada achou. Era apenas vento. Falhou...
Desengatilhou o rifle e retirou o cartucho. Examinou com cuidado... Depois de tanto tempo adorando-o, constatou que estava vazio. Tragicamente vazio. Nem um mísero resíduo de pólvora se demorava ali. Concluiu então que a bala utilizada para tirar a vida do seu pai saíra daquele mesmo cartucho. Essa era a herança do seu pai: Um cartucho vazio, usado contra si mesmo, num ato de desespero.
Arcanjo lamentou a verdade dos fatos. Lamentou não poder morrer com aquela bala inexistente. Nem ao menos uma bala real com a qual poderia se suicidar, havia ali naquela herança. O ingrato do seu pai deixara como presente o símbolo de sua covarde morte: O cartucho com o qual ele se matou. Não havia mais bala. O pai não deixara a bala para a morte do filho, mas sim o vazio que simbolizava a morte do pai.
Arcanjo então se levantou, limpou os pensamentos que não cessavam em invadi-lo, desfez o altar improvisado e jogou o cartucho vazio na lata do lixo. Teve uma ideia para aproveitar os caixotes que não mais seriam úteis naquele local. Munindo-se de graxa, flanela e outros produtos a mais, colocou-os no caixote, agora transformado em cesta com apoio para os pés, e saiu à rua, finalmente, para subverter a herança macabra de seu pai. Dignamente, como engraxate, foi ganhar a vida.
8 comentários:
Olha só, meu caro Alex. Como disse por e-mail, isso não me surpreende.
Claro, ver o campo "profissão" preenchido com a palavra Escritor me pegou de surpresa, boa e ruim ao mesmo tempo, porque sei da sua competência.
Entratanto, ver que isso não passou em branco e compõe suas obras - quem mais poderia falar do vazio deixado na morte do pai? - me deixou realmente feliz.
Se todos buscamos identificação, está aí um ótimo exemplo. Isso porque gostaria que você visitasse meu finado blog. Está aí no perfil.
Abraços, rapaz.
Soemnte uma palavra:
IMPACTANTE
PArabéns pelos posts
http://alebatist.blogspot.com
Cara, choquei! Mas fico feliz, pois seguir a vida dignamente é o que há!
Impresionante
Muito bom o blog parabens
muito bom, acho q na verdade cada m encontra um pouquinho de si no personagem, nosso rifle c cartucho vazio são as nossas frustações e medos , nos suicidamos e renascemos sempre. Essa é a graça a vida. -Parabéns
impressionante.s
Mais um texto sensacional, parabéns pela facilidade que você tem para com as palavras.
Pude sentir o disparo da cartucheira..o cheiro da polvora,o fechar dos olhos...
Demais !
apertar um gatilho pra começar a viver..setá que todos não fazemos isso ?
http://universovonserran.blogspot.com
Postar um comentário