sexta-feira, 11 de março de 2011

Romance em Tempos Perdidos.













No coreto da antiga pracinha, eles se encontraram e deram as mãos. Era um fim de tarde como há muito tempo não viam.

Os dois corações palpitavam em descompasso uníssono. Flamejante desencontro, labaredas apagadas, sorridente irregularidade. Eles bailaram sobre frágeis retalhos do passado.

Aquele entardecer fora concebido em dissonantes nuances - palheta de cores. Serpentear em conjunto de cálidas almas. Tinham certeza que não era exatamente o tempo que irradiava esse afeto embevecido e tórrido, sentido no belo clima daquele dia.

Nos contornos espirais, ambas as mãos, antes desbotadas, entrelaçaram-se. Silhuetas esculpidas em vitrines móveis, alianças duvidosas, eram salpicadas de fagulhas e centelhas em um colorido preto e branco. Trêmulas saudades em devassidão descortinaram-se. E o casal continuava lá, mãos unidas, espalmadas, certeiras, solidárias e envergonhadas, a se entreolhar.

Doce canção de velhas bandinhas ainda reverberava pela lúdica extensão da praça. A cantiga de roda da infância ecoava num som distante e baixinho, como o leve toque a acariciar a pele descontraída por um acanhado dedilhar. Mãos dadas... Juntas... Jamais atadas...

Meigos varões agachados, com suas boinas desarrumadas, terninhos alinhados, puxavam decididamente o cordão dos seus piões, artesanalmente inventados com a mesma paixão da hora do brincar. Rodavam livres e soltos em volta do leal coreto nos dias de domingo.

Ah... O coreto! Palco da primeira vez em que se viram. Foi numa terça-feira. Ela, com sua roupa de colegial, ainda sem ter completado a maioridade, admirava, extasiada, o florido caramanchão da praça. Suas amigas, que a acompanhavam na saída do colégio, já haviam tomado o rumo de suas casas. Pelo menos uma vez na semana, precisava ir até a bucólica pracinha para respirar ar puro, ouvir os pássaros e contemplar a beleza dos arranjos de flores daquele caramanchão. Ele, coincidentemente, naquele dia saiu do trabalho mais cedo, e cansado de responder ao mesmo roteiro diário, resolveu, antes de retornar ao lar, passar pela pracinha para se sentar num daqueles bancos a céu aberto em que a brisa de findas manhãs dita palavras amenas, a paisagem saúda, e o aroma rejuvenesce.

Ele se sentou, ajeitando-se confortavelmente para sentir o frescor daquele início de tarde, cruzou as pernas e retirou um romance da sua pasta - presença constante nos momentos agradáveis -, misturado às papeladas de negócios, e o abriu na página na qual o marcador estava colocado. Porém, antes mesmo de ler a linha inicial para retomar a história, avistou aquela encantadora criatura emoldurada por artísticas flores sob um cenográfico caramanchão. Ficou perplexo perante indescritível efeito visual. Seu fôlego fugira e suas palavras se dissiparam como as folhas secas carregadas pela ventania. Só tinha olhos para ela. Mas quem era ela?

Como não poderia cumprimentá-la, inarticulado no vácuo absoluto do silêncio, precipício de uma alma fugidia nos meandros escorregadios da linguagem, pegou sua máquina fotográfica de estimação, com a qual capturava imagens peculiares - deleite para os olhos -, e escondido atrás de um espesso tronco de árvore, posicionou-se para tirar o retrato roubado daquela mocinha apaixonante. Flutuava em nuvens de algodão doce. Suas mãos suavam e tremiam como varas de bambu verdes.

Ao flagrar o rapaz a observando - sob a mira da câmera fotográfica -, assustou-se, temendo que fosse um bandido que quisesse assaltá-la e disparou em fuga. Ele, por querer desfazer o mal-entendido, tentou alcançá-la, perseguindo-a. Balbuciou, menos para ela do que para si, que não era o que ela estava imaginando - como se fosse possível adivinhar o que passava pela cabeça da moça. Ela, em contrapartida, apavorou-se ainda mais, acelerando o passo, desaparecendo no horizonte.

Durante muito tempo, após o incidente ocorrido, ela não retornou mais à praça, cenário do primeiro encontro - apesar de uma inquietante interferência do destino, separando-os provisoriamente. Ele, no entanto, continuou diariamente desviando seu itinerário, após sair do trabalho, demorando-se na praça, sentado, pernas cruzadas, lendo seu livro, mas frustrado. Sua longa espera nunca mais fora contemplada com a volta da moça à cena do seu coração.

Naquele mesmo dia, depois da estranheza do primeiro encontro, ele voltou para casa, inconformado pelo susto da moça ao perceber sua presença, mas agraciado por uma única fotografia que estava em sua câmera, em negativo, às vésperas da revelação. Quando pôde segurar o retrato, já revelado, sentiu um profundo carinho.

Ela estava incrivelmente linda. Colocou a foto num porta-retratos comprado especialmente para combinar com a paisagem, com as flores do caramanchão e com roupa de sua amada platônica. Virado de tal maneira para que o olhar da moça na foto encontrasse com o seu à noite, para abençoar seu sono e alegrar o início do dia, posicionou o porta-retratos num lugar estratégico na mesinha de cabeceira ao lado da cama em que dormia.

Muito tempo passou. Ele parou de frequentar a praça, mas não desistiu do seu amor. As esperanças de reencontrá-la começaram a escassear, a minguar, perder as forças. Sentiu os espinhos da tristeza por não mais poder vê-la. Passou a ter insônias regulares - pois ao menos como insone, algo precisava se manter equilibrado -, com o olhar fixado na fotografia da moça amada, sendo acompanhado pelo olhar dela. Não conseguia parar de olhá-la, sentindo que o olhar da imagem cruzava-se com o seu. Assim parecia que estava um pouco mais acolhido em seu sentimento, beijado pela cumplicidade, mesmo que seu coração continuasse ferido na ilusão de uma convivência até então impossível.

(...)

Um dia, bem mais velho, num novo emprego, morando em cidade distante, pai de família, e estando próximo de se tornar avô, resolveu viajar até a antiga cidadezinha em que passou sua juventude. Chegando à casinha em que morou, resistiu um pouco em tocar a campainha. Uma bondosa senhora o atendeu. Ele a fitou emocionado e explicou o motivo de sua visita, apresentando-se.

A senhora, comovida, convidou-o a entrar. Ela lhe confessou que no sótão havia uma caixa de papelão, dos antigos moradores, contendo algumas recordações, e que ficou satisfeita em vê-lo, pois não sabia o seu endereço para lhe entregar os pertences. Ele foi em direção à caixa singela, abriu-a, e logo em cima dos demais objetos de sua lembrança, estava o porta-retratos com a foto da amada de sua mocidade que ainda continuava plantado em sua dolorida alma.

Ele agradeceu a senhora por sua sincera consideração, presenteando-a em retribuição à sua hospitalidade com o porta-retratos - diante da manifestação de seu desejo em ficar com a peça -, despediu-se e se retirou, levando apenas a foto consigo. Antes de partir em direção à doce pracinha, passou numa cafeteria de esquina e tomou um cafezinho bem forte para recuperar o fôlego perdido pela extrema emoção. Chegando à praça, sentou-se no antigo banquinho, e colocou a fotografia, virada ao contrário, em suas pernas, apoiando-a com as duas mãos.

Quando já estava quase cochilando, sentindo a delicada brisa que acariciava seu rosto, pelo tranquilo clima daquele lugar, notou uma presença ao seu lado. Não quis abrir os olhos, pois o cansaço já o dominava. Ficou daquele jeito, sem se mover. A pessoa ao seu lado, sentida apenas em sua presença, tocou sutilmente a sua face e segurou-lhe as mãos. Ainda fixo, com os olhos fechados, as suaves mãos envolveram seu rosto e o trouxe para perto de si. Sussurrou baixinho em seu ouvido, o que o fez abrir os olhos. Quando viu quem estava à sua frente, depois de tantos e tantos anos, ficou deslumbrado, inebriado. Era ela! Estava ali. Ele ameaçou falar. Ela tocou-lhe a boca de leve, com um sorrido nos lábios, pedindo que continuassem em silêncio.

Ela se levantou e puxou-lhe pelos braços, indicando que fosse com ela. Ele ainda admirado, sem falar nenhuma palavra, foi deslizando pelo caminho do caramanchão, que ainda se mantinha bem cuidado e florido, e contornaram os banquinhos da praça até chegarem às escadas do coreto - testemunha do primeiro palpitar, sinal do amor. Antes de subirem as escadas, deram as mãos.

Lá em cima, de mãos dadas, eles permaneceram quietos, silêncio amoroso da cumplicidade, olhando para o horizonte. Ficaram assim por muitos minutos. Quando ele recobrou a consciência daquele sublime momento, estava dançando, ao som de uma linda música, sozinho, abraçado à quase desbotada fotografia da amada - apertada ao peito -, com os olhos cheios de lágrimas. Sentia-se feliz.

Ele era um privilegiado por ter mais aquele instante com o seu amor. Já ela, era a mais viva lembrança de toda a sua história.



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

17 comentários:

sabrina-gomes disse...

Adooro romance, parabéns pelo blog.
http://sabrinnagomes.blogspot.com/
:D

Andre Mansim disse...

Alex, vc escreve mito bem!
Confesso que não gosto de textos tão grandes em blogs, acho que vc poderia ter dividido em duas postagens, mas tá legal!

Alexandre Rodrigues disse...

Linda a história!!! Adoro romances!!!

Anônimo disse...

Sabe qual a sensação que tive depois de ler esse teu conto? De que o amor, mesmo aquele que julgamos passado, pode estar esperando por nós em algum lugar, independente do desfecho que virá depois desse encontro. É como se toda espera pudesse valer a pena e como se toda história pudesse um dia ter um final feliz...
Fiquei com uma sensação boa aqui.

Érico Pena disse...

Amigão, seu texto é muito bom, porém vc devia preenche-lo com mais ilustrações para não ficar muito cansativo de ler ou dividir em duas partes ok

Suzy Carvalho disse...

romances são sempre bem vindos.
linda, porem, o tamanho acaba cansando um pouco, mas vale a pela =]

Waldry Henderson disse...

vc escrede uma forma bastante poetica e bonita gostei...no entanto como seus textos são grandes o linguajar florido se torna um pouco cansativo...

http://inversopoemas.blogspot.com/

Alex Azevedo Dias disse...

Só porque um considerou que meu texto é grande, os demais o repetem? Leiam meu texto e não os comentários dos leitores, por favor. Abraços cordiais.

Alex Azevedo Dias disse...

Se reclamarem que meu texto é uma "merda", articulando com argumentos coerentes, eu aceito a crítica com satisfação, mas reclamações sobre o tamanho do meu texto, e não sobre seu conteúdo, eu sinto profunda vergonha alheia. Desculpe-me a sinceridade, mas não admito que as pessoas não consigam mais ler, não consigam fixar a atenção em um texto, cujo tamanho, se comparado aos contos do início do século passado, é imensamente miúdo. Abraços...

Alex Azevedo Dias disse...

Reescrevi algumas partes, após uma releitura, que achei necessário para melhorar a estética do meu conto. Abraços a todos.

Anônimo disse...

Um belo romance, parabéns pelo blog.

Victor Von Serran disse...

Qual a face mais honrosa do amor senão a entrega do esperar, de que maneira provar um amor senão subjugando o mesmo a ação do tempo que é o maior inimigo do sentimento ?
encontrar alguem na qual nos dividimos e perder isto por algum motivo, seja ele qual for,nos reme te ao pensamento de "o quanto amamos e até onde podemos ir ?"

Eis a face de Eros,não tão forte quanto a de Agape, mas sufiente para vencer muitos outonos !

Abraço amigo de blogosfera !

http://universovonserran.blogspot.com

paradigmas universal disse...

instântes que duram a eternidade para quem realmente ama.

Anônimo disse...

Ai, é bonito demais.
Sabe da para perder-se em devaneios, juntamente com o personagem.
As palavras se completam com tanta musicalidade que parecem formar uma sinfonia...Belo!
Mas pq precisa ser triste?

Sara Melyssa disse...

Ele é um devaneio oculto do meu ser e ela por ventura seja eu ou pedaços do que eu sou e o Contando Estórias seja o amor que cresceu até os tempos perdidos de um romance sonhador e esta estória ainda não acabou, porque o amor é eterno e perfeição cujas palavras mostram a emoção... Ah, perdoe-me Por um momento faltam palavras para uma poetisa e isto quem causou foi você.
O blog está perfeito! Parabéns.

Francisco Saldanha disse...

Olá..seu texto é muito bom,mas acho que vc deveria dividir o post em dois.só uma dica,parabéns pelo blog e pelo seus textos.

http://pospretudo.blogspot.com/

M@ra disse...

É triste. .. ;(
Eles nao viveram um amor
Eles nao viverão nem mesmo
um sonho
Mas em um simples instante e momento
Ele a amou
Ela so se foi
Ele viveu após...mas nunca amou
É so triste.
Mara.brsl.r@gmail.com