- Você está aqui, meu querido? Não consigo vê-lo...
- Estou sempre ao seu lado!
- Mas eu não posso tocá-lo...
- Já eu, estou envolvendo-a em meus braços.
- Sinto-me tão feliz em sua presença...
- Não ficarei nem uma noite sem visitá-la, meu amor!
- Não compreendo essa situação... O que nos impede de estarmos juntos o dia inteiro? Desejo-o sem interrupções, continuamente!
- Você conhece o motivo... Não estar com você no restante do tempo, não significa amá-la menos.
- Eu sei... Mas eu o amo tanto, tanto... Não posso nem tocá-lo e nem vê-lo.
- Mas você sente a minha presença. Sente meus carinhos, meus beijos, meu toque. Você não disse que isso lhe faz feliz?
- Sim... Isso me faz feliz...
- Então... Jamais a abandonarei! Eu a amo!
- Mas não é o suficiente... Eu quero tê-lo!
Nesse instante, ao proferir sua última frase de forte apelo material, a presença sensível de Tadeu dissipou-se tenazmente diante de uma mulher ensimesmada. Sara não queria acordar, mas sofrera um impacto irreversível ao se implicar na consistência fugidia do amado. Há alguns anos começara a receber a visita de Tadeu em seus sonhos. No início ela se assustava com a aparição de um vulto que a observava timidamente. Caso não sonhasse na primeira vez em que adormecia - ao se deitar à noite - e despertasse sobressaltada por alguma razão, voltando a adormecer, Tadeu invadia o domínio onírico de Sara, na segunda tentativa, prosseguindo arduamente com suas conquistas.
De sonho a sonho, ele foi se aproximando vagarosamente. No início, depois que Tadeu saiu das sombras, levaram algum tempo apenas se olhando. Ao longo do estado de vigília, a impressão deixada era que os sonhos tinham um ritmo repetitivo, recorrente, como se fossem passados de quadro a quadro. Mas enquanto eram sonhados, causavam imediatas formações, em plena rapidez, como se a sucessão dos acontecimentos ocorresse em velocidade normal.
Essa dinâmica do diurno e do noturno assemelhava-se àquelas técnicas de animação, em que pontinhas de folhas dobradas, cada uma com um desenho numa posição, ao serem, folheadas numa determinada sincronia, produziam uma ilusão de movimento. O sonho correspondia ao falso movimento - as páginas folheadas rapidamente. A vigília, quando cada página permanecia aberta por intermináveis dias, na velocidade mínima de uma câmera lenta.
Sara já estava uma mulher idosa. Há mais de cinquenta anos, Tadeu habitava seus sonhos. Entrou de fininho, e nunca mais deixou de frequentá-los. Mesmo havendo resistência de Sara no princípio dos encontros noturnos, ambos foram se conhecendo, adaptando-se um ao outro e criando intimidade. No sonho, o tempo da aproximação, da conquista e da convivência, até aquele instante, era apenas o equivalente há alguns meses apenas - um período muito curto.
Mas Sara, cronologicamente, já havia envelhecido. Muitas histórias aconteceram na vida de Sara enquanto se instalava o processo do amor em seu mundo onírico. Casou-se, teve filhos, netos, enterrou seu marido - uma perda muito dolorosa -, conheceu novas pessoas, teve momentos de alegria e tristeza. Viveu durante todo esse tempo na transitoriedade cotidiana, mesmo com os limites impostos pelas circunstâncias. Embora sentida como a eternidade de uma vida sofrida, que demorava a passar, era somente ao se virar para trás que se tinha a percepção de que importantes momentos foram se desmanchando através do implacável fluxo da existência.
Apesar de a juventude de Sara se manter durante o sonhar, o seu corpo real tornara-se portador dos signos de um intransigente passar dos anos. Em essência, continuava a mesma pessoa. Mas a figura palpável de Sara não mais acompanhava seu espírito jovial, arredio e apaixonado. A idade física insistentemente tropeçava na vivacidade de sonhadora. A sombra que a perseguia, como fantasma das cenas vividas, transformara-se no ser amado, sua companhia fora da vida material - embora não houvesse nada mais real do que os afetos transmitidos naquelas experiências oníricas.
Esse amor não era clandestino, mas também não era declarado. A realidade dos sonhos, paralela à vida cotidiana, apenas a afetava nos instantes de sonhadora. A repercussão da história onírica - embora Sara não estivesse alheia às divagações noturnas - não invadia sua privacidade e realizações diárias, no mundo concreto. Era um sentimento pontual que lhe tomava a matéria corporal e o fluido vital, vivenciado por cada centímetro da alma. Mas não teria motivo para ser guardado como um segredo, pois após os sonhos, o resíduo do que passou se diluía, regredindo à inexistência. Em vigília, enquanto não-ser, os sentimentos pereciam, flutuando impalpáveis, mas era só voltar a dormir que eles se condensavam no ser, repetindo a densidade na ausência da vida material.
(...)
- Querida, nosso grande momento está chegando.
- Que grande momento é esse?
- Você sabe...
- Não, não sei. A única coisa que eu quero é não mais me afastar de você. Os intervalos sem a sua presença, durante o dia, são intermináveis.
- Pois é... É sobre isso mesmo!
- Não acredito! Como assim?
- Essa é a surpresa. Você verá...
- Aí, ai... Estou ansiosa. Como será isso?
- Você saberá no momento certo. Não posso antecipar detalhes.
- Quanto mistério! Mas não me importo... O importante é que viveremos um para o outro, sempre, sem distâncias!
- É isso mesmo! Fomos feitos um para o outro... O tempo em que não mais nos afastaremos está bem próximo.
Ainda de olhos fechados, sonhando, Sara suspirou de felicidade. Mas já estava acordando. Tentou ficar ainda um pouco deitada, sentindo as emoções daquela noite. Abriu os olhos e ficou lá, lembrando-se dos últimos acontecimentos. Pela primeira vez, o resíduo das sensações vividas não desapareceu por completo, como nos demais dias. Os registros das palavras de Tadeu, seus beijos e abraços, não saiam de sua memória. Seus afazeres domésticos e todas as demais atividades cotidianas foram intempestivamente interrompidos pelas ardentes lembranças de Tadeu. Não mais pareciam meros sonhos. Ele estava invadindo seus pensamentos também durante o dia.
Sara começou a confundir sobre qual era seu estado naquele instante. Sua consciência estava alterada. Já estava acostumada com os percalços da idade. Sabia que em algumas condições podia se sentir estranha, ter náuseas ou mesmo falhas de memória, mas o que estava se passando com ela era absolutamente diferente de qualquer situação pela qual já passou. Já que ficou daquele jeito, não teve outra escolha além de passar o resto do dia na cama, resgatando afetivamente todos os momentos ao lado de Tadeu.
Ela nunca teve tantas recordações materiais do convívio onírico com Tadeu. Quando se lembrava de algo em vigília, era uma lembrança desafetada, pois sempre acreditou que um sonho nada mais era do que apenas um sonho. Afastava qualquer ideia teimosa que chegasse. Afinal, o que era aquele romance de sonhadora? Quem era Tadeu? Um sonho, sempre um sonho! Mas dessa vez, Tadeu estava lá, presente, material, habitando a atmosfera astral de Sara.
A noite novamente se aproximou e com ela, o sono chegou. Sara não resistiu
Quando chegou, Tadeu já estava à sua espera, satisfeito e emocionado. Uma lágrima rebelde escorreu pela delicada e jovial mão de Sara, ao tocar levemente o rosto de Tadeu. Eles se abraçaram com força e carinho. Nunca mais se sentiriam desamparados. Estavam acolhidos pelo encontro daqueles dois corpos, que no abraço, fizeram-se um. Ambos estavam lindos, radiantes, queridos. A partir daí, nunca mais se deixaram. Estavam unidos. Dia e noite sempre juntos.
(...)
Na cama, o semblante de Sara transmitia uma suave alegria. Ao longe, sinos eram ouvidos. O canto dos pássaros, os sons das folhas balançando ao vento, a brisa nas faces amorosas.
Desde então, Sara nunca mais acordou...
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
5 comentários:
lindo, lindo, quase choro, rsrs... pelo menos morreu feliz, adorei...
O CARA É FERA EM TRANSMITIR SENTIMENTOS
MUITO BOM!
morte que entrega vida !
otimo texto Alex !
por onde anda meu amigo....sinto falta da sua opinião voraz !
um abraço e não some !
Adorei,a jeito que a morte dela foi o começo de uma nova vida.Muito lindo.
Nossa que texto meu amigo, tão sutilmente cálido.
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