terça-feira, 22 de março de 2011

No Escorrer dos Afetos.

















Plínio vivia num lugar paradisíaco, repleto de árvores e cachoeiras. Morava em uma aconchegante casinha, bem adornada, com lareira - sem faltar a fumacinha da chaminé - uma cama quentinha, um quintal avantajado e uma varanda arejada para descansar em dias de calor. Todas as cores - o verde das matas e o azul dos rios - combinavam. O volume de cada objeto que ficava exposto nas janelas era perfeitamente simétrico com os enfeites do jardim. Cada cantinho pelo qual Plínio passava, exibia tonalidades harmônicas e sutilmente delineadas.

Nunca antes despertara para a visível característica da paisagem em que vivia. Quando começou a se indagar, diante de algumas curiosidades que surgiram, ele coçava a cabeça intrigado. Nem mesmo a data de nascimento possuía como recordação. Simplesmente vivia ali, estava ali, e nada mais.

Ainda não havia parado para pensar sobre a extensão das terras em que caminhava diariamente. Um limite intransponível - uma barreira - o impedia de ir além. Sempre que tentava ultrapassar a borda que enquadrava a sua moradia, recuava em direção à outra margem - indo da varanda ao quintal e vice versa. Sabia que tinha pai e mãe, mas que morava sozinho. Mas onde eles estavam? Talvez jamais tivesse os visto. Sequer poderia imaginar como eram as fisionomias dos seus pais. Não se lembrava de quando era mais novo nem sentia que envelhecia. Parecia que estava no mesmo instante eternamente. Começou então a achar aquilo tudo muito estranho. Mas o mais estranho ainda, era que nunca havia de deparado com tal estranheza. Nunca se questionou por coisa alguma. Vivia naturalmente, como se tudo estivesse na mais absoluta normalidade.

A partir do momento em que Plínio deu início às suas interrogações lógicas, pôde compreender que, respeitando os limites territoriais, só se deslocava para as laterais. O quintal ficava na lateral esquerda, e a varanda, na direita. Para trás e para frente, não conseguia se mover. Tentou inclinar o corpo para o que considerava a parte de trás. De repente, um barulho de farpa estalando foi ouvido. Plínio se assustou, principalmente porque a superfície na qual ele estava escorado começou a afinar e a ceder lentamente. Um pequeno orifício se formou - espaço suficiente para que ele pudesse olhar o que havia além daquela parte de trás. Apenas uma estrutura lisa e branca havia lá. Nada além do que uma homogênea e opressora cor branca.

Plínio saiu da parte de trás e se dirigiu para a parte da frente. Andou, andou e... Repentinamente... Ficou nas pontas dos pés. Quase despencou. Seu corpo resvalou ao se defrontar com um imenso buraco que instantaneamente apareceu. Um gigantesco abismo se formou diante de si. Ele apavorou-se, tentou dar um passo para trás, mas seria um esforço inútil, pois seu corpo estava quase se precipitando em queda livre. A metade de seus pés apoiava-se na quina do limite para o abismo. Se chegasse tanto para trás quanto para frente, desequilibrar-se-ia. Seria fatal.

Mas da posição em que fora obrigado a ficar, com as vistas desembaçando vagamente - pois já se recuperava do susto, mesmo que ainda se imaginasse em risco de morte, pela altura -, teve clareza em observar a vastidão do que acabara de visualizar. Era um quarto de proporções gigantescas. Ele era um pequeno polegar, uma miniatura de gente, ao se comparar com as dimensões daquele quarto que avistara.

Continuou lá, na beiradinha do abismo, analisando a situação com espanto. Tentou olhar um pouco mais para baixo e se surpreendeu com a mesma estrutura esbranquiçada - atrás da enorme cama -, que havia percebido quando esteve na parte oposta da que está agora. Abaixo de seus pés, notou que algo escorria num fluxo contínuo, manchando a superfície branca. Era um líquido espesso, um concentrado multicolorido.

Logo que o processo se instalou, em menos tempo do que um piscar de olhos, a casa - seu quintal e sua varanda - as árvores, as cachoeiras, os rios, a paisagem em geral, estavam se desmanchando por completo. Até mesmo o abismo iniciou uma franca diluição. Tudo estava ruindo, derretendo. O próprio Plínio começou a se desmanchar de modo grosseiro. Suas roupas, sua face, seus cabelos, membros superiores e inferiores, ficaram todos misturados, em formato de borrão. A massa multicolorida em declínio, derretendo, escorrendo pela parede do gigantesco quarto, parecia um aglomerado de bisnagas de tinta óleo sendo espremidas a torto e a direito. Não havia mais diferença entre o Plínio e o seu pano de fundo. Eram um só, imenso borrão de tintas diversas.

(...)

Naquele gigantesco quarto, a porta se abriu. Um rapaz, com as medidas adequadas às proporções daquele quarto, adentrou. No exato instante em que fitou a parede do seu quarto, estancou os passos, contraiu o semblante - com os dentes cerrados - e se deteve perplexo. Soltou um grito de lamento que reverberou por todos os cômodos de sua casa. Sua mãe, atônita pelo som estridente emitido pela angústia do seu filho, chegou até o local, perguntando o que estava acontecendo. Ao notar o rosto aflito do filho - sem obter resposta sobre seu grito -, olhou na mesma direção em que ele estava com os olhos fixos. O rapaz então balbuciou: - O meu quadro manchou! A mãe tentou consolá-lo.

Aquele quadro, pintado pelo seu pai, Plínio, retratava-o ainda quando jovem, em sua casa de finais de semana, antes de conhecer aquela que seria a mãe do seu filho - dono do quadro. A faxineira, notando um sinal de poeira na tela, esfregou um pano úmido com o mesmo solvente que usava para limpar outras partes da casa.

Pintado pelo pai do rapaz, o quadro era a sua única lembrança material. Após a morte do seu pai, sua mãe lhe entregara a pintura feita por ele, um autorretrato, que desde então guardara com carinho, pendurando-o acima de sua cama como se fosse um anjo a lhe proteger o sono.

Agora a pintura já não mais representava, com nitidez, a cena que mantinha em seu amor de filho. Porém, aquela imagem de seu pai permaneceria com clareza e distinção para sempre na sua memória. Aquela pintura, agora reduzida à colorida mancha, continuou no mesmo lugar. O rapaz não permitiu que sua mãe a retirasse da parede, acima de sua cama. Um arco-íris se formou na tela de seu coração. Como o próprio arco-íris que surge maroto e elegante após uma tempestade, o quadro agora simbolizava a alegria de um final de tormentas.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS

3 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito! Dizer mais o que depois de uma obra prima dessas???
Você sempre usa esse tom de variação temporal, mas dessa vez parece que a variação se deu por si de tão adequada que li foi.
Dos teus contos todos que li, esse foi um dos que mais gostei.
Beijo!

Victor Von Serran disse...

O mito da caverna de platão é Plinio ! Isolado de um mundo a qual apesar de seguro representa o affair do medo.

muito bom !!!

abraço Alex !

Vitor disse...

Bem que eu achei Plínio um personagem bidimensional...
Aqui, Alex. Esse é o mês do totem e Tabú? Deixe os pais das pessoas em paz, ora bolas! ahahhaha
Gostei bastante, cara. Principalmente do pai morto. Duas vezes, por sinal. A segunda, sendo uma imagem.
Honestamente, eu to achando muito legal acompanhar seus textos.
Abraços.


OBS: essa é minha última interpretação. ahahahah