Ao retirar a máscara que ostentava rachada, na fenda da concreta desilusão, revelou-se a mentira da pele desnuda. Aquele singelo objeto que encaixava levemente no rosto, modelando-o como outro, fora de si, não o encobria como ser anônimo, mas o exibia em verdades fluídicas.
Escolhera sua fantasia facial com o mais rigoroso cuidado. Nenhum traço poderia escapar para que denunciasse sua fisionomia de mísero mortal. Muitos dos seus amigos o reconheceriam pelo seu simples modo do seu olhar. Então tratou rapidamente de camuflar o entorno dos olhos. Na primeira tentativa - um fracasso total -, ensaiou contorná-los com um lápis preto, vários cosméticos e maquiagens. Já que nenhum produto oferecido pelo mercado da moda desse conta do recado, utilizou uma genuína graxa de sapateiro, chegando a invejáveis resultados na arte do mascaramento.
Suficientemente produzido, o mascarado adentrou um baile carnavalesco que não exigia a identificação do convidado - sem restrições de acesso -, aberto ao público. Na exuberância da festa, escancarou uma contida alegria - comparada aos discursos feitos para multidões por lívidos e impávidos monarcas -, esperando não ser detectada sua expansiva personalidade.
Caiu literalmente na folia. Estava exultante por ter sido bem sucedido na escolha da camuflagem. Sentia-se diluído em meio ao populacho, emitindo grunhidos e gemidos fervorosos de contentamento. Lamentos de satisfação eram escutados ao longe. Sua performance, muito ovacionada, rendeu exóticas coreografias ao estridente som daquela banda marcial que executava sambas saudosistas.
Estava rodeado por amigos e companheiros da labuta. Por ter atingido seus objetivos, gozava por enganá-los. Sabia que ninguém percebera ser ele, por trás daquela máscara. O escudeiro fiel de adversidades, inseparável protetor em quem todos depositavam confiança - porto seguro -, estava agora imperceptível. Nenhuma viva alma seria capaz de descobrir sua real identidade. Não teria que ouvir as inúmeras súplicas das quais sempre fora vítima, nem as solicitações de ajuda que tanto reprovava, nem mesmo o insuportável pedido de dinheiro emprestado. Nada mais ouviria. Não seria obrigado a aturar as coisas detestáveis. Dispunha de controle. Estava tão próximo de todos, porém com o máximo de distância. Com nítida e delirante paixão, eles o tocavam, puxavam-no, celebravam sua presença, mas sequer desconfiavam que aquele divertido mascarado fosse o amigo disfarçado.
Manteve-se imperturbável até um instante inusitado se apoderar de tal visceral encenação. Exausto em esconder seu segredo - ele mesmo -, começou a desejar mostrar a todos quem ele realmente era. Já não mais conseguia afastar os risos que brotavam dos seus lábios. Havia feito seus amigos de bobo. Foi a única vez que realizou essa monumental façanha. Enganara a todos com maestria.
Num frenesi que substituía a ignorância, arrancou aquela máscara fabricada pelo esmero da invisível existência. Com dificuldades para retirá-la, partiu-a ao meio, repetindo autêntico gesto teatral, como a explosão da cena final de uma épica e arrebatadora peça. Ao apresentar sua face desnuda, límpida, sem aquele adorno facial - escamoteando a razão humana -, os amigos mais íntimos, que antes não o reconheciam, continuaram sem a menor afetação pela verdade que se descortinara num ímpeto inaudível. A empolgação do ex-mascarado, ansioso para degustar a reação de espanto dos colegas, cedeu lugar à frustração da inércia que presenciara. Os olhares dos amigos não mais coincidiam com os seus. Parecia que o inóspito ato do desmascaramento gerou a inexistência. Ninguém mais notava sua presença.
Ele se esforçou o máximo que pôde para convencer as pessoas à sua volta sobre quem era ele de fato, mas nem ao menos sua voz poderia ser ouvida. Ao retirar a máscara, consumou de forma radical a sua invisibilidade – antes tão almejada, e agora tão temida e agonizante. Queria voltar a ser alguém. Mas quem? Se ninguém mais o via, será que havia existido alguma vez? E toda aquela história que conhecia de cor e salteado sobre as peripécias que viveu na companhia daqueles para os quais estava invisível? Nunca aconteceu? Nada?
A angústia de não existir, na ausência do artefato grotesco - sua máscara -, converteu-se em nostalgia da vivência ferina de mascarado. Com ela passou a existir. Virou alguém. Sentia sua falta. Precisava dela. Tinha que existir. Só aquela máscara concederia sua existência. Mas como retornar à vida, como voltar a ser visto, se a máscara jazia rasgada aos seus pés radicalmente imóveis? Agora eram duas metades. Recolheu-as do chão, mesmo assim, e, segurando cada metade com uma mão, levou-as ao rosto. Uma parte havia sido pisoteada e estava suja, amassada. A outra se manteve intacta.
Vestido novamente com a máscara, agora reduzida a duas metades, sentiu-se outra vez um alvo da visão curiosa das pessoas - compartilhando seu gozo extremo. A partir de então, teve inegável certeza que podia ser visto. Adquiriu renovada consistência. Agora estava palpável, carnal, existente. A única diferença era a cicatriz que revelava o rasgão do seu rosto mascarado, separando-o em duas faces distintas.
Ele sabia que seria visto de duas maneiras. Para quem estava ao seu lado direito, era visto como um homem sofrido, surrado, exibindo as duras feridas de uma pobre vida. Para quem estava ao seu lado esquerdo, era um aristocrata, nobre homem cortejado pela vida, nascido em berço de ouro, que jamais teve de lutar por algo, pois já tinha de tudo. Mas as únicas coisas que ambas as faces, tão opostas, mantinham em comum, eram os traços de plástico que revelavam o verdadeiro homem. A tinta negra que contornava seus olhos, nem mesmo com seu forte suor se desmanchou. Estava aderida à pele, inerente ao ser. Seus traços eram densidades que escorriam por entre arranhões e pequenas dobras daquela existente máscara de carnaval. A identidade virou anonimato. E o anonimato, a face real.
30 comentários:
Alex, certa vez produzi lá no Oficina um conto chamado "Um estranho na Multidão" onde também essa centelha de reflexão acerca de até quando é legal usar (aqui na tua excelente produção a máscara),lá os óculos escuros, e passar desapercebido. Que é prazeirozo não resta dúvida,mas para alguém criado em uma região onde os padres jesuítas espanhóis talharam na pedra sabão(pedra usada para construir os templos da região)que não é certo se anular e chamar para si os perrengues do mundo, o bicho pega e os dilemas também.Mas geralmente tiro de letra e deixo rolar.Abrç,vou te linkar e estou seguindo.
Cara, perfeito a imagem que você usou para ilustrar o texto está otima.
Parabéns pelob blog.
Os disfarces, tratados primeiramente como adornos de conveniência, acabam por sobressair a verdadeira personalidade. Quando é desejado mostrar-se sem mascaras, o sujeito torna-se composto de várias personalidades e não mais consegue precisar qual a verdadeira.
Mais um maravilhoso texto
Abraço
O mascarado não conseguiu segurar o seu disfarce - com o qual se sentia superior enganando a todos.Queria q todos vissem sua superioridade.
Por vezes, a realidade é triste e enfadonha.
O pior é que a verdade nunca é inteira... Sempre existe algo mascarando, algo embaçando.. somos uma imagem e nunca o real...
Belo post!
;D
Adoro maskaras ;)
perfect!
www.nadapago.com
Sempre é um prazer voltar a sua página meu caro.Todos nós usamos máscaras.Nem sempre podemos dizer e ser exatamente como queremos.As leis socias e economicas nos obrigam a isso.Parabéns!
http://juventudeinformada.blogspot.com/
Muito bom o texto! Assim como as outras postagens está otimo e bem escrito.
passarei sempre para comentar
obrigado pela visita no meu!
beijos
http://fashionmaniacbrazil.blogspot.com
Eu não uso mascara :$'
www.nadapago.com
O curioso é o que desperta interesse, quando revelados completamente perdemos a verdade que escondemos. Vira verdade pública, e então começamos a mentir. E aí compramos máscaras. Adorei o desenrolar da história.
Abraço! ;)
http://anpulheta.blogspot.com
olÁ, meu caro!!! tudo bem?
pois é, eu ainda não estou de corpo presente em paris, mas espero em breve. Realmente, meu olho até brilha quando entro nesse mundo...
Cara que maximo essa apresentação de slides que vc colocou no seu blog, obras fantasticas...Realmente, eu dedico a arte!!! Um brinde a ela... Seja escrita, pintada, vestida, falada.
abraçosss
O engraçado nisso tudo é que, quem está do lado de fora, ao redor do(s) mascarado(s), normalmente dá mais atenção à máscara.
Ninguém se interessa pela verdade, pela autenticidade. Todos preferem as máscaras, todos são máscaras.
Se por ventura a máscara é arrancada, o interesse se dissipa e o verdadeiro, o dono da máscara é deixado de escanteio.
C'est la vie!
Cada qual escolhe seu próprio retrato.
abs,
seuanonimo.blogspot.com
QUANDO A MÁSCARA CAI É PRECISO REAPRENDER A SER ALGUÉM!
Nossa... jurava que teria um assassinato... Mas foi só uma "pegadinha" mal planejada...Na proxima ele devia levar ujma bomba ou uma motoserra! Aposto que ai ele não seria ignorado!.... ou sim... sei lá.. ♫ carnaval.... carnaval...♫
nossa, q profundo
vc sempre escrevendo muito bem..
http://vivaiona.blogspot.com/
Caros amigos, acabei de reescrever meu conto para possibilitar maior dinâmica na leitura de vocês. Obrigado. Abraços cordiais.
Já andei comentando por aqui...
Mas, sempre bom reler seus textos.
É ótima a forma como trata de temas variados dentro de um contexto mais literário e profundo.
;D
Lendo este post, me lembrei daquele filme "A outra face", com Nicolas Cage...
Muito bizarro e agoniante seu texto...
Retribuindo seus comentários no meu blog, "antes tarde do que nunca"...
Beatriz T.
Realmente me fez pensar. Quantas máscaras nós não usamos todo dia? Algumas são necessárias à sobrevivência. Outras, à opulência.
Belissimamente escrito.
Muito bom texto bom
Vc esta de parabéns
Excelente!!!
Otimo texto. Mas nisto tudo não entendi quem realmente ele era.Somente sua vontade de ser e não ser alguem.
Fico pensando se a grande maioria das pessoas não abre mão da identidade real pra se esconder nos superegos gritantes que a sociedade impoe.Temos que malhar,estudar,namorar,casar,ter filhos, envelhecer e morrer.Ninguem mais se interessa pelo sujeito comum e suas escolhas comuns, o comum que outra vez ja fora tão respeitado se mostra enfraquecido, enquanto o elogio ao ego surpreende com sua total falta de significancia......
Que todas as mascaras do mundo caiam, que aqueles que reclamam de textos grandes, e de erros de sintaxe e portugues comecem a viver e enxergar a simplicidade da ideia do texto, pois pra que escrever um texto se não pra expressar a ideia ? eu digo a todos que se preucupam com os detalhes...hora de olhar pra sua vida, o Sol esquenta mais que o microondas de vcs !
E vc meu amigo que ja querido de blogosfera....continue a abrilhantar sua pagina de ideias que crescem e continue a me visitar para poder dizer que um dia eu conheci o Alex...o homem que citou as mascaras !!!!!
Um abraço
http://universovonserran.blogspot.com
Oi vc poderia me dizer se vc sabe alguma coisa sobre filmes usados em terapia? E se seria utilizado na gestalt ou psicanalise?Grata ^^
Olá amigo!
Obrigado pelo comentrio no meu blog, fico muito agradecido, é muito importante para mim ouvir a opinião das pessoas.
Eu não sou jornalista, fiz Curso de Radialista, sou registrado na DRT, mas atualmente, exerço a função de Repórter Cinematográfico, na Record aqui em Salvador-Bahia.
Abraços.
Obrigada Alex pela sua visita em meu blog. Te espero sempre lá. Estou lendo seus textos com calma - muito bons. Beijão
www.profedrika.blogspot.com
De nada Alex...é sempre um prazer !
http://universovonserran.blogspot.com
sigo e comento quem seguir e comentar
Obrigada por me responder, vc foi muito antecioso ^^ Qualquer coisa eu venho te perturbar ^rsrs
Talvez seja essa dubialidade que dê graça à muitas vidas: develerar-se além do que se é; mascarar uma verdade mediante os olhos do mundo.
Esse, no meu ponto de vista foi um dos teus textos mais pesados, inclusive pela combinação (perfeita, por sinal!) com a imagem escolhida. Mas gostei do texto! Adoro textos textos assim, fortes e que incomodam em um bom sentido.
comento? Sim ou não? A questão é saber se alguém vai ler. só pra aproveitar o gancho do texto, digo isso. Aproveitar a constatação de que o reconhecimento vem do outro e que assim como o mascarado, o ato de comentar está sujeito ao fato dele ser visto ou não.
Obviamente não tem como ignorar o sujeito dividido que se fragmenta quando encontra o real (seria esse real a face invisível? Ah, que divagação mais idiota). Exibição técnica respulvisamente pedante e possivelmente equivocada mode off.
Mas realmente gostei da fragmentação do sujeito. E da borda entre a máscara e o rosto. Humildemente pergunto: seria o sintoma?
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