quinta-feira, 31 de março de 2011

Quando o Sonho Vive













- Você está aqui, meu querido? Não consigo vê-lo...

- Estou sempre ao seu lado!

- Mas eu não posso tocá-lo...

- Já eu, estou envolvendo-a em meus braços.

- Sinto-me tão feliz em sua presença...

- Não ficarei nem uma noite sem visitá-la, meu amor!

- Não compreendo essa situação... O que nos impede de estarmos juntos o dia inteiro? Desejo-o sem interrupções, continuamente!

- Você conhece o motivo... Não estar com você no restante do tempo, não significa amá-la menos.

- Eu sei... Mas eu o amo tanto, tanto... Não posso nem tocá-lo e nem vê-lo.

- Mas você sente a minha presença. Sente meus carinhos, meus beijos, meu toque. Você não disse que isso lhe faz feliz?

- Sim... Isso me faz feliz...

- Então... Jamais a abandonarei! Eu a amo!

- Mas não é o suficiente... Eu quero tê-lo!

Nesse instante, ao proferir sua última frase de forte apelo material, a presença sensível de Tadeu dissipou-se tenazmente diante de uma mulher ensimesmada. Sara não queria acordar, mas sofrera um impacto irreversível ao se implicar na consistência fugidia do amado. Há alguns anos começara a receber a visita de Tadeu em seus sonhos. No início ela se assustava com a aparição de um vulto que a observava timidamente. Caso não sonhasse na primeira vez em que adormecia - ao se deitar à noite - e despertasse sobressaltada por alguma razão, voltando a adormecer, Tadeu invadia o domínio onírico de Sara, na segunda tentativa, prosseguindo arduamente com suas conquistas.

De sonho a sonho, ele foi se aproximando vagarosamente. No início, depois que Tadeu saiu das sombras, levaram algum tempo apenas se olhando. Ao longo do estado de vigília, a impressão deixada era que os sonhos tinham um ritmo repetitivo, recorrente, como se fossem passados de quadro a quadro. Mas enquanto eram sonhados, causavam imediatas formações, em plena rapidez, como se a sucessão dos acontecimentos ocorresse em velocidade normal.

Essa dinâmica do diurno e do noturno assemelhava-se àquelas técnicas de animação, em que pontinhas de folhas dobradas, cada uma com um desenho numa posição, ao serem, folheadas numa determinada sincronia, produziam uma ilusão de movimento. O sonho correspondia ao falso movimento - as páginas folheadas rapidamente. A vigília, quando cada página permanecia aberta por intermináveis dias, na velocidade mínima de uma câmera lenta.

Sara já estava uma mulher idosa. Há mais de cinquenta anos, Tadeu habitava seus sonhos. Entrou de fininho, e nunca mais deixou de frequentá-los. Mesmo havendo resistência de Sara no princípio dos encontros noturnos, ambos foram se conhecendo, adaptando-se um ao outro e criando intimidade. No sonho, o tempo da aproximação, da conquista e da convivência, até aquele instante, era apenas o equivalente há alguns meses apenas - um período muito curto.

Mas Sara, cronologicamente, já havia envelhecido. Muitas histórias aconteceram na vida de Sara enquanto se instalava o processo do amor em seu mundo onírico. Casou-se, teve filhos, netos, enterrou seu marido - uma perda muito dolorosa -, conheceu novas pessoas, teve momentos de alegria e tristeza. Viveu durante todo esse tempo na transitoriedade cotidiana, mesmo com os limites impostos pelas circunstâncias. Embora sentida como a eternidade de uma vida sofrida, que demorava a passar, era somente ao se virar para trás que se tinha a percepção de que importantes momentos foram se desmanchando através do implacável fluxo da existência.

Apesar de a juventude de Sara se manter durante o sonhar, o seu corpo real tornara-se portador dos signos de um intransigente passar dos anos. Em essência, continuava a mesma pessoa. Mas a figura palpável de Sara não mais acompanhava seu espírito jovial, arredio e apaixonado. A idade física insistentemente tropeçava na vivacidade de sonhadora. A sombra que a perseguia, como fantasma das cenas vividas, transformara-se no ser amado, sua companhia fora da vida material - embora não houvesse nada mais real do que os afetos transmitidos naquelas experiências oníricas.

Esse amor não era clandestino, mas também não era declarado. A realidade dos sonhos, paralela à vida cotidiana, apenas a afetava nos instantes de sonhadora. A repercussão da história onírica - embora Sara não estivesse alheia às divagações noturnas - não invadia sua privacidade e realizações diárias, no mundo concreto. Era um sentimento pontual que lhe tomava a matéria corporal e o fluido vital, vivenciado por cada centímetro da alma. Mas não teria motivo para ser guardado como um segredo, pois após os sonhos, o resíduo do que passou se diluía, regredindo à inexistência. Em vigília, enquanto não-ser, os sentimentos pereciam, flutuando impalpáveis, mas era só voltar a dormir que eles se condensavam no ser, repetindo a densidade na ausência da vida material.

(...)

- Querida, nosso grande momento está chegando.

- Que grande momento é esse?

- Você sabe...

- Não, não sei. A única coisa que eu quero é não mais me afastar de você. Os intervalos sem a sua presença, durante o dia, são intermináveis.

- Pois é... É sobre isso mesmo!

- Não acredito! Como assim?

- Essa é a surpresa. Você verá...

- Aí, ai... Estou ansiosa. Como será isso?

- Você saberá no momento certo. Não posso antecipar detalhes.

- Quanto mistério! Mas não me importo... O importante é que viveremos um para o outro, sempre, sem distâncias!

- É isso mesmo! Fomos feitos um para o outro... O tempo em que não mais nos afastaremos está bem próximo.

Ainda de olhos fechados, sonhando, Sara suspirou de felicidade. Mas já estava acordando. Tentou ficar ainda um pouco deitada, sentindo as emoções daquela noite. Abriu os olhos e ficou lá, lembrando-se dos últimos acontecimentos. Pela primeira vez, o resíduo das sensações vividas não desapareceu por completo, como nos demais dias. Os registros das palavras de Tadeu, seus beijos e abraços, não saiam de sua memória. Seus afazeres domésticos e todas as demais atividades cotidianas foram intempestivamente interrompidos pelas ardentes lembranças de Tadeu. Não mais pareciam meros sonhos. Ele estava invadindo seus pensamentos também durante o dia.

Sara começou a confundir sobre qual era seu estado naquele instante. Sua consciência estava alterada. Já estava acostumada com os percalços da idade. Sabia que em algumas condições podia se sentir estranha, ter náuseas ou mesmo falhas de memória, mas o que estava se passando com ela era absolutamente diferente de qualquer situação pela qual já passou. Já que ficou daquele jeito, não teve outra escolha além de passar o resto do dia na cama, resgatando afetivamente todos os momentos ao lado de Tadeu.

Ela nunca teve tantas recordações materiais do convívio onírico com Tadeu. Quando se lembrava de algo em vigília, era uma lembrança desafetada, pois sempre acreditou que um sonho nada mais era do que apenas um sonho. Afastava qualquer ideia teimosa que chegasse. Afinal, o que era aquele romance de sonhadora? Quem era Tadeu? Um sonho, sempre um sonho! Mas dessa vez, Tadeu estava lá, presente, material, habitando a atmosfera astral de Sara.

A noite novamente se aproximou e com ela, o sono chegou. Sara não resistiu em adormecer. Deu antes umas breves piscadas, relutando um pouco pelo sono que veio sem ser anunciado, mas foi rapidamente vencida pelo cansaço.

Quando chegou, Tadeu já estava à sua espera, satisfeito e emocionado. Uma lágrima rebelde escorreu pela delicada e jovial mão de Sara, ao tocar levemente o rosto de Tadeu. Eles se abraçaram com força e carinho. Nunca mais se sentiriam desamparados. Estavam acolhidos pelo encontro daqueles dois corpos, que no abraço, fizeram-se um. Ambos estavam lindos, radiantes, queridos. A partir daí, nunca mais se deixaram. Estavam unidos. Dia e noite sempre juntos.

(...)

Na cama, o semblante de Sara transmitia uma suave alegria. Ao longe, sinos eram ouvidos. O canto dos pássaros, os sons das folhas balançando ao vento, a brisa nas faces amorosas.

Desde então, Sara nunca mais acordou...


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O Amor do Ódio.














- Quanto tempo ainda me resta, doutor?

- ...

- O que farei com isso?

- ...

- Quer que eu siga a minha vida? Mas como?

- ...

- Você diz que nós todos morreremos... Sei disso! Só que a maioria não sabe a data de sua morte. Não se angustiará com isso.

- ...

- Tentarei, prometo. Farei um esforço para por em prática os seus conselhos.

- ...

- Sim... Tenho o seu número. Sei que posso contar com o senhor se precisar. Mas para que servirá um médico agora que não mais evitaremos a fatalidade?

- ...

- Ok... Recomendações à família. Tenha uma boa tarde. Pena que o senhor não poderá dizer o mesmo para mim. Espero reencontrá-lo mais um dia ainda. Sei que o senhor fez tudo que pôde. Confio no senhor, doutor. Adeus...

Pesaroso e calado, Saulo foi se retirando do consultório. Se não fosse um movimento involuntário - a respiração -, passaria a duvidar se teria valor continuar enchendo seus pulmões de ar.

Antes de sair, meio a contragosto, por ter sido vencido pelo impacto da notícia, teve que se demorar por alguns instantes na sala de espera para se recuperar. Estava com um formigamento espalhando-se pelo corpo, muita fraqueza e pernas bambas. Fez um exercício de relaxamento discretamente, que aprendera numa aula de ioga em tempos remotos, pois começara a suar frio e a ter tonteira.

Ficou um pouco constrangido quando a secretária, percebendo algo estranho com ele, perguntou se queria alguma ajuda. Ele negou qualquer mal, agradeceu a gentileza, levantou-se e se despediu.

Já na rua, desconsolado, mesmo estando um ensolarado dia, trovejava nos conflituosos pensamentos de Saulo. Andava em círculos, num itinerário obscuro. Parecia que tinha acionado um sistema automático, em plena inércia, sem se dar conta que andava, muito menos para onde ia.

Ao tomar consciência de seus passos, orientou-se em direção à sua casa. No caminho, a retrospectiva de sua vida iniciou o percurso da projeção de um curta-metragem. Já não era tão jovem, mas sua história poderia ser resumida em poucas palavras. Compreendeu que algo fundamental faltava, como uma última peça para completar o quebra-cabeça. Uma pequena coisa, porém de enorme verdade, continuava desencaixada.

Esse fato - uma ausência que o impedia de finalizar harmoniosamente sua vida como num extenso e glorioso painel - passou a incomodá-lo mais do que a informação dada pelo médico que sua existência estava por um fio, com os dias contados. Mas o que seria essa parte essencial de sua vida que faltava? Era realmente essencial? Ou por ser tão importante, era justamente esse o motivo que a fazia faltar?

A figura austera do médico que lhe dera a aterradora notícia - assinando sua sentença de morte -, retornou à alma conturbada. O doutor possuía mais idade do que Saulo. Era um médico familiar que lhe acompanhara durante um tempo considerável. Saulo o endeusava como uma sábia personalidade. Muito notório naquelas redondezas, ficou famoso pela precisão diagnóstica, concebendo aos seus pacientes, eficientes estratégias de tratamento - com as quais atingia a cura na maioria dos casos. Por chegar a essa conclusão - justamente por isso - não conseguia entender o descaso sobre a possibilidade do seu tratamento. Por que não detectou sua doença enquanto ainda era tempo para curá-lo? Foi imediatamente decretando o fim de tudo, sem oferecer nenhuma alternativa para amenizar seu fardo e sofrimento.

Saulo passou a se indagar, perante a competência clínica de seu médico, sobre a gravidade e o avanço de sua enfermidade. Mensalmente marcava consultas. Fazia visitas regulares ao seu consultório. Por sua frequente presença, não tardou em acrescentar um vínculo empático e afetuoso àquela relação. Não mais se reduzia a laços estreitamente profissionais. Ficaram muito íntimos, amigos confidentes. Quando estava em seu consultório, Saulo comentava passagens de sua vida e, como retribuição, ouvia pacientemente - pois não seria diferente disso - os dramas sentimentais do doutor. Era uma relação hospitaleira, que apesar do que essa palavra indica, nunca sabia ao certo se declinaria ou fortaleceria o vínculo médico-paciente.

Pelo menos de uma coisa tinha certeza: Aquela amizade precisaria sobreviver à sua prematura partida. Saulo não permitiria que aquela relação que transcendia uma mera formalidade, perecesse no justo momento em que fecharia as cortinas da sua vida. Um acontecimento banal, daquela envergadura, a morte, - pois todos estão submetidos a ela, mais cedo ou mais tarde -, não seria a grande vilã que atrapalharia seus projetos sensíveis.

Movido por essas convicções, Saulo se lembrou de um embrulho que guardara no armário do seu quarto para ser usado numa ocasião especial. Estava lá, mantido em segredo, longe dos olhos do mundo, ao longo de algumas décadas. Não sabia se aquele objeto escondido na penumbra de seu armário, dentro do pacote, ainda funcionaria. Finalmente, o tempo chegara. Ficou ansioso para pôr em prática o que sempre sonhara, mas que não havia ainda uma oportunidade de realização como aquela, como a que estava por vir.

Uma mística sensação de felicidade palpitou em seu peito. Não existiria melhor e mais adequada pessoa para intermediar a sua satisfação plena: O seu médico. Ele o amava como poucos o podiam amar. Era um paciente especial, pois fora o escolhido para receber do seu médico a notícia de morte. Seu médico jamais errara um diagnóstico, sempre curando todos com competência. Mas no caso de Saulo, aquele homem que confidenciava seus problemas, foi logo sentenciando sua morte, sem sequer tentar tratá-lo.

Saulo chegou a pensar que tal atitude fosse sinal de descaso do seu amado médico para com ele - coisa que não admitiria jamais vinda de altiva figura -, então fora mais convincente entender, longe de qualquer risco que poria a confiança em dúvida, que a atitude do médico o tornaria um escolhido, uma pessoa especial, o eleito dentre os demais pacientes.

(...)

Chegou à sua casa sem fazer qualquer ruído. Abriu a porta com a destreza silenciosa dos felinos. Entrou e a encostou vagarosamente. Foi logo para o quarto, sem acender as luzes para não chamar a atenção de vizinhos oportunistas, abriu o armário e, por causa da escuridão, apalpou com dificuldade os objetos até encontrar um embrulho, um macio embrulho de tecido de algodão. Saulo o apertou contra o peito e balbuciou algumas palavras inaudíveis, enquanto espremia o embrulho com os braços.

Não quis avaliar a situação do objeto. Preferia arriscar, surpreender-se com o resultado. Acondicionou o embrulho em sua pasta - companheira inseparável de Saulo - num lugar que não fizesse volume, mas que tivesse facilidade para ser manipulável. Bebeu uma dose de aguardente, para celebrar a proximidade da data especial - tão aguardada -, passou o copo vazio no filete de água da torneira, deixando-o sobre a pia e novamente foi em direção à rua.

Ameaçou passar em um botequim para tomar outra aguardente, completando o ritual cerimonioso, mas declinou de seu impulso ao pensar que não deveria desviar do roteiro que arquitetou com virulenta paz de espírito. Seguiu em frente, obstinadamente, sem hesitar por nenhum instante. Ao chegar ao consultório do seu médico, tocou a campainha, e fora recepcionado por sua secretária.

Perante a pergunta sobre o seu retorno, Saulo alegou com engenhosidade, que o doutor ficou de prescrever-lhe uma medicação, um sonífero, que serviria como paliativo para a ansiedade. Ele continuou argumentando sobre o horário que o representante dos laboratórios farmacêuticos levaria amostras grátis da substância que seria prescrita pelo médico. A secretária, persuadida pelo discurso de Saulo, anunciou sua presença ao médico. Ele ainda aguardou por alguns instantes e logo foi convocado a entrar.

- O que houve, Saulo? Por que está aqui novamente? - Perguntou o médico intrigado.

- Estou aqui somente para lhe prestigiar o acolhimento que o senhor dispensou a mim. - Disse Saulo, calmamente.

- Você está muito tenso. Sente-se. Vamos conversar. Conte-me sobre o que você sentiu e pensou nesse meio tempo, desde quando você saiu daqui, e esse seu repentino retorno .

- Eu descobri toda a verdade sobre nós dois!

- Ah... É?! E como é isso?

De forma impulsiva, Saulo retirou o embrulho da pasta e o colocou em cima da mesa do médico.

- Está aqui o presente que lhe entregarei, demonstrando toda a minha gratidão. O seu prognóstico declarou minha morte. E sei que somos predestinados a convivermos.

- Saulo, desculpe-me, mas não estou alcançando o seu raciocínio. - Falou o médico um pouco atônito sobre o que acabara de ouvir de seu paciente.

Antes de o médico apanhar o embrulho, Saulo se antecipou, agarrou o embrulho e tirou do seu interior um revólver em perfeito estado de conservação.

- Para que você trouxe isso, Saulo!? - Indagou já transtornado, o doutor.

Saulo sorria enquanto engatilhava a arma e a apontava para a testa do médico, a queima roupa.

- Querido, nós vamos juntos... - Exprimiu um Saulo passional.

Um estampido fora ouvido além da sala de espera, ecoando nos corredores do edifício. Várias pessoas que estavam por lá correram para a sala em que o médico atendia. Chegando lá, encontraram Saulo paralisado, respingado de sangue, ainda com a mão estendida e o dedo no gatilho. O médico, no chão, atrás da mesa dos atendimentos, jazia imóvel, com os olhos abertos e a marca do orifício de bala na testa, pelo qual seu cérebro estourara.

A polícia fora chamada e rapidamente já entrara no local do crime, dando voz de prisão ao assassino que ainda não havia se movido desde que praticara o homicídio. A perícia quase não teria trabalho para solucionar o caso, pois quem cometera o ato criminoso fora praticamente pego em flagrante.

Ao ser retirado do local, ainda com todos os membros enrijecidos, Saulo apenas mexia os lábios, murmurando frases indecifráveis pelos agentes federais: - “Ele foi primeiro! Mas quem se foi? O médico ou o amigo? O amigo ou o médico? Quem se foi? Ele foi primeiro.”

Saulo foi julgado no tribunal e condenado por crime doloso, com intenção de matar - premeditado. Mesmo tendo sido avaliado por um psiquiatra como mentalmente incapaz, não escapou de ser penalizado.

Depois de já passarem muitos anos em que Saulo esteve trancafiado no presídio, ainda continuava repetindo as mesmas frases, sem cessar: - “Ele foi primeiro! Mas quem se foi? O médico ou o amigo? O amigo ou o médico? Quem se foi? Ele foi primeiro.”

Saulo morrera no cárcere, de velhice, tendo como causa do óbito, falência múltipla dos órgãos. A morte não o perturbou durante muito tempo. Nem mesmo as doenças corriqueiras o atingiram. Parecia que era imune a qualquer mal. Já o seu querido médico, assassinado passionalmente, famoso pela eficiência diagnóstica, pela primeira vez... Errou.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

terça-feira, 22 de março de 2011

No Escorrer dos Afetos.

















Plínio vivia num lugar paradisíaco, repleto de árvores e cachoeiras. Morava em uma aconchegante casinha, bem adornada, com lareira - sem faltar a fumacinha da chaminé - uma cama quentinha, um quintal avantajado e uma varanda arejada para descansar em dias de calor. Todas as cores - o verde das matas e o azul dos rios - combinavam. O volume de cada objeto que ficava exposto nas janelas era perfeitamente simétrico com os enfeites do jardim. Cada cantinho pelo qual Plínio passava, exibia tonalidades harmônicas e sutilmente delineadas.

Nunca antes despertara para a visível característica da paisagem em que vivia. Quando começou a se indagar, diante de algumas curiosidades que surgiram, ele coçava a cabeça intrigado. Nem mesmo a data de nascimento possuía como recordação. Simplesmente vivia ali, estava ali, e nada mais.

Ainda não havia parado para pensar sobre a extensão das terras em que caminhava diariamente. Um limite intransponível - uma barreira - o impedia de ir além. Sempre que tentava ultrapassar a borda que enquadrava a sua moradia, recuava em direção à outra margem - indo da varanda ao quintal e vice versa. Sabia que tinha pai e mãe, mas que morava sozinho. Mas onde eles estavam? Talvez jamais tivesse os visto. Sequer poderia imaginar como eram as fisionomias dos seus pais. Não se lembrava de quando era mais novo nem sentia que envelhecia. Parecia que estava no mesmo instante eternamente. Começou então a achar aquilo tudo muito estranho. Mas o mais estranho ainda, era que nunca havia de deparado com tal estranheza. Nunca se questionou por coisa alguma. Vivia naturalmente, como se tudo estivesse na mais absoluta normalidade.

A partir do momento em que Plínio deu início às suas interrogações lógicas, pôde compreender que, respeitando os limites territoriais, só se deslocava para as laterais. O quintal ficava na lateral esquerda, e a varanda, na direita. Para trás e para frente, não conseguia se mover. Tentou inclinar o corpo para o que considerava a parte de trás. De repente, um barulho de farpa estalando foi ouvido. Plínio se assustou, principalmente porque a superfície na qual ele estava escorado começou a afinar e a ceder lentamente. Um pequeno orifício se formou - espaço suficiente para que ele pudesse olhar o que havia além daquela parte de trás. Apenas uma estrutura lisa e branca havia lá. Nada além do que uma homogênea e opressora cor branca.

Plínio saiu da parte de trás e se dirigiu para a parte da frente. Andou, andou e... Repentinamente... Ficou nas pontas dos pés. Quase despencou. Seu corpo resvalou ao se defrontar com um imenso buraco que instantaneamente apareceu. Um gigantesco abismo se formou diante de si. Ele apavorou-se, tentou dar um passo para trás, mas seria um esforço inútil, pois seu corpo estava quase se precipitando em queda livre. A metade de seus pés apoiava-se na quina do limite para o abismo. Se chegasse tanto para trás quanto para frente, desequilibrar-se-ia. Seria fatal.

Mas da posição em que fora obrigado a ficar, com as vistas desembaçando vagamente - pois já se recuperava do susto, mesmo que ainda se imaginasse em risco de morte, pela altura -, teve clareza em observar a vastidão do que acabara de visualizar. Era um quarto de proporções gigantescas. Ele era um pequeno polegar, uma miniatura de gente, ao se comparar com as dimensões daquele quarto que avistara.

Continuou lá, na beiradinha do abismo, analisando a situação com espanto. Tentou olhar um pouco mais para baixo e se surpreendeu com a mesma estrutura esbranquiçada - atrás da enorme cama -, que havia percebido quando esteve na parte oposta da que está agora. Abaixo de seus pés, notou que algo escorria num fluxo contínuo, manchando a superfície branca. Era um líquido espesso, um concentrado multicolorido.

Logo que o processo se instalou, em menos tempo do que um piscar de olhos, a casa - seu quintal e sua varanda - as árvores, as cachoeiras, os rios, a paisagem em geral, estavam se desmanchando por completo. Até mesmo o abismo iniciou uma franca diluição. Tudo estava ruindo, derretendo. O próprio Plínio começou a se desmanchar de modo grosseiro. Suas roupas, sua face, seus cabelos, membros superiores e inferiores, ficaram todos misturados, em formato de borrão. A massa multicolorida em declínio, derretendo, escorrendo pela parede do gigantesco quarto, parecia um aglomerado de bisnagas de tinta óleo sendo espremidas a torto e a direito. Não havia mais diferença entre o Plínio e o seu pano de fundo. Eram um só, imenso borrão de tintas diversas.

(...)

Naquele gigantesco quarto, a porta se abriu. Um rapaz, com as medidas adequadas às proporções daquele quarto, adentrou. No exato instante em que fitou a parede do seu quarto, estancou os passos, contraiu o semblante - com os dentes cerrados - e se deteve perplexo. Soltou um grito de lamento que reverberou por todos os cômodos de sua casa. Sua mãe, atônita pelo som estridente emitido pela angústia do seu filho, chegou até o local, perguntando o que estava acontecendo. Ao notar o rosto aflito do filho - sem obter resposta sobre seu grito -, olhou na mesma direção em que ele estava com os olhos fixos. O rapaz então balbuciou: - O meu quadro manchou! A mãe tentou consolá-lo.

Aquele quadro, pintado pelo seu pai, Plínio, retratava-o ainda quando jovem, em sua casa de finais de semana, antes de conhecer aquela que seria a mãe do seu filho - dono do quadro. A faxineira, notando um sinal de poeira na tela, esfregou um pano úmido com o mesmo solvente que usava para limpar outras partes da casa.

Pintado pelo pai do rapaz, o quadro era a sua única lembrança material. Após a morte do seu pai, sua mãe lhe entregara a pintura feita por ele, um autorretrato, que desde então guardara com carinho, pendurando-o acima de sua cama como se fosse um anjo a lhe proteger o sono.

Agora a pintura já não mais representava, com nitidez, a cena que mantinha em seu amor de filho. Porém, aquela imagem de seu pai permaneceria com clareza e distinção para sempre na sua memória. Aquela pintura, agora reduzida à colorida mancha, continuou no mesmo lugar. O rapaz não permitiu que sua mãe a retirasse da parede, acima de sua cama. Um arco-íris se formou na tela de seu coração. Como o próprio arco-íris que surge maroto e elegante após uma tempestade, o quadro agora simbolizava a alegria de um final de tormentas.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS

sábado, 19 de março de 2011

Santo Pai, Santa Bala.













Sob caixotes empilhados, cobertos por um longo lençol branco, o altar improvisado suportava diante de si um homem ajoelhado. Na posição de clemência, Arcanjo suplicava à ausente imagem santificada. Não havia andor, nem mesmo o santo era de barro. O que havia no lugar da fé e orações, era um cartucho de bala - adorado por Arcanjo.

Há alguns anos, planejando dar cabo de sua própria vida, foi à igrejinha perto de sua casa e, com uma vasilha, recolheu um pouco da água benta que estava numa caldeira logo na entrada do templo. A bala, ele já possuía. Fora a única que restou na gaveta do seu velho pai morto - homem que se dedicara exclusivamente, até o último minuto de vida, à contravenção. Como seu pai não deixara patrimônios - apenas alguns bastardos rebentos pelo mundo afora - aquela bala fora a herança máxima de um pai subversivo.

O mais digno a ser feito por um homem de passado maculado e sem perspectiva de futuro, era cometer o suicídio com o honrado cartucho que seu pai lhe deixara. Seria lembrado eternamente por tal ato derradeiro. Por isso, cultuava aquele imponente cartucho no topo do altar improvisado - seu objeto sagrado, pai celestial.

Não constituíra família. Então, ao contrário do seu pai, não deixaria herdeiros - nem oficiais nem ilegítimos. Apenas a sujeira de seus restos mortais daria trabalho aos agentes sanitários. Um amontoado de matéria orgânica perecível. Mas tinha o corpo raquítico, logo, nem tanto ficaria exposto na cena do crime. Aquela bala de rifle faria um estrago sem precedentes. Ficaria desfigurado, irreconhecível, caso apontasse para a própria cabeça e apertasse o gatilho.

Depois de pedir permissão às santidades de sua devoção, retirou o cartucho do altar e o submeteu a um ritual de polimento visando a purificação total do artefato. Com uma fina flanela, umedecida na água benta roubada, começou a esfregar o cartucho até a última poeira desaparecer de sua superfície. Munido daquele rifle antigo, após uma limpeza minuciosa da ferramenta fatalista, encaixou o cartucho, ficou de cócoras - em sinal de penitência -, virou o cano da arma para a ponta do seu queixo, apoiou-a entre as firmes pernas - com o sangue frio, pois tudo havia sido calculado - e apertou o gatilho com obediente propósito de passar a existir na morte.

No instante do disparo, fechou bem os olhos para não sentir o forte impacto. Após alguns segundos do disparo do rifle, ainda ouvindo o silêncio - tendo seus sentidos intactos -, abriu levemente os olhos, passou as mãos pelo queixo - a procura de um rombo monumental -, mas nada achou. Era apenas vento. Falhou...

Desengatilhou o rifle e retirou o cartucho. Examinou com cuidado... Depois de tanto tempo adorando-o, constatou que estava vazio. Tragicamente vazio. Nem um mísero resíduo de pólvora se demorava ali. Concluiu então que a bala utilizada para tirar a vida do seu pai saíra daquele mesmo cartucho. Essa era a herança do seu pai: Um cartucho vazio, usado contra si mesmo, num ato de desespero.

Arcanjo lamentou a verdade dos fatos. Lamentou não poder morrer com aquela bala inexistente. Nem ao menos uma bala real com a qual poderia se suicidar, havia ali naquela herança. O ingrato do seu pai deixara como presente o símbolo de sua covarde morte: O cartucho com o qual ele se matou. Não havia mais bala. O pai não deixara a bala para a morte do filho, mas sim o vazio que simbolizava a morte do pai.

Arcanjo então se levantou, limpou os pensamentos que não cessavam em invadi-lo, desfez o altar improvisado e jogou o cartucho vazio na lata do lixo. Teve uma ideia para aproveitar os caixotes que não mais seriam úteis naquele local. Munindo-se de graxa, flanela e outros produtos a mais, colocou-os no caixote, agora transformado em cesta com apoio para os pés, e saiu à rua, finalmente, para subverter a herança macabra de seu pai. Dignamente, como engraxate, foi ganhar a vida.


ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

Marta, Mulher.













Gotas de suor lambuzam a sôfrega alma, e a suavizam. Abatida por exércitos errantes, agoniza no último suspiro. Alma inquieta silencia a quietude do desatino. O que dirá Marta? Sua boca fala para dentro no vozerio que o ouvido ecoa. O que será de Marta, transpassada pela lança cega? Seus cortes invertidos respiram a fuligem. Morte residente, desfila devassidões no certeiro espaço das rezas angulares e displicentes.

Mulher que cede. Sede de mulher. Balança o berço nu. Estende o grito no varal. Seca a angústia em vendaval. Ela se deita na rede da eterna inconstância. Brinca de cabra sem ser cega, no cio descentrado. Mornas labaredas de um gozo adormecido, desapegado, revertendo-se em destemidas arapucas maciças. Áurea abençoada no tridente da folia. Sangue que escorre de cílios perfurados na ânsia de desejos incautos.

Marta, a mulher da vida, rígida, jazia. Sepultada sem perdão. Não foram vê-la. Seus contatos e queridos do lar, em nada saudaram-na. Lágrimas de secos olhos misturadas ao choro da terra mãe - estéril chão. Cortejo fúnebre ladeado por curiosos, carpideiras - a procura do ganha pão - desafetados, desarmonia. O testamento machuca a hombridade. Papel engordurado, rasgado, nota desbotada da compra do dia seguinte


ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Romance em Tempos Perdidos.













No coreto da antiga pracinha, eles se encontraram e deram as mãos. Era um fim de tarde como há muito tempo não viam.

Os dois corações palpitavam em descompasso uníssono. Flamejante desencontro, labaredas apagadas, sorridente irregularidade. Eles bailaram sobre frágeis retalhos do passado.

Aquele entardecer fora concebido em dissonantes nuances - palheta de cores. Serpentear em conjunto de cálidas almas. Tinham certeza que não era exatamente o tempo que irradiava esse afeto embevecido e tórrido, sentido no belo clima daquele dia.

Nos contornos espirais, ambas as mãos, antes desbotadas, entrelaçaram-se. Silhuetas esculpidas em vitrines móveis, alianças duvidosas, eram salpicadas de fagulhas e centelhas em um colorido preto e branco. Trêmulas saudades em devassidão descortinaram-se. E o casal continuava lá, mãos unidas, espalmadas, certeiras, solidárias e envergonhadas, a se entreolhar.

Doce canção de velhas bandinhas ainda reverberava pela lúdica extensão da praça. A cantiga de roda da infância ecoava num som distante e baixinho, como o leve toque a acariciar a pele descontraída por um acanhado dedilhar. Mãos dadas... Juntas... Jamais atadas...

Meigos varões agachados, com suas boinas desarrumadas, terninhos alinhados, puxavam decididamente o cordão dos seus piões, artesanalmente inventados com a mesma paixão da hora do brincar. Rodavam livres e soltos em volta do leal coreto nos dias de domingo.

Ah... O coreto! Palco da primeira vez em que se viram. Foi numa terça-feira. Ela, com sua roupa de colegial, ainda sem ter completado a maioridade, admirava, extasiada, o florido caramanchão da praça. Suas amigas, que a acompanhavam na saída do colégio, já haviam tomado o rumo de suas casas. Pelo menos uma vez na semana, precisava ir até a bucólica pracinha para respirar ar puro, ouvir os pássaros e contemplar a beleza dos arranjos de flores daquele caramanchão. Ele, coincidentemente, naquele dia saiu do trabalho mais cedo, e cansado de responder ao mesmo roteiro diário, resolveu, antes de retornar ao lar, passar pela pracinha para se sentar num daqueles bancos a céu aberto em que a brisa de findas manhãs dita palavras amenas, a paisagem saúda, e o aroma rejuvenesce.

Ele se sentou, ajeitando-se confortavelmente para sentir o frescor daquele início de tarde, cruzou as pernas e retirou um romance da sua pasta - presença constante nos momentos agradáveis -, misturado às papeladas de negócios, e o abriu na página na qual o marcador estava colocado. Porém, antes mesmo de ler a linha inicial para retomar a história, avistou aquela encantadora criatura emoldurada por artísticas flores sob um cenográfico caramanchão. Ficou perplexo perante indescritível efeito visual. Seu fôlego fugira e suas palavras se dissiparam como as folhas secas carregadas pela ventania. Só tinha olhos para ela. Mas quem era ela?

Como não poderia cumprimentá-la, inarticulado no vácuo absoluto do silêncio, precipício de uma alma fugidia nos meandros escorregadios da linguagem, pegou sua máquina fotográfica de estimação, com a qual capturava imagens peculiares - deleite para os olhos -, e escondido atrás de um espesso tronco de árvore, posicionou-se para tirar o retrato roubado daquela mocinha apaixonante. Flutuava em nuvens de algodão doce. Suas mãos suavam e tremiam como varas de bambu verdes.

Ao flagrar o rapaz a observando - sob a mira da câmera fotográfica -, assustou-se, temendo que fosse um bandido que quisesse assaltá-la e disparou em fuga. Ele, por querer desfazer o mal-entendido, tentou alcançá-la, perseguindo-a. Balbuciou, menos para ela do que para si, que não era o que ela estava imaginando - como se fosse possível adivinhar o que passava pela cabeça da moça. Ela, em contrapartida, apavorou-se ainda mais, acelerando o passo, desaparecendo no horizonte.

Durante muito tempo, após o incidente ocorrido, ela não retornou mais à praça, cenário do primeiro encontro - apesar de uma inquietante interferência do destino, separando-os provisoriamente. Ele, no entanto, continuou diariamente desviando seu itinerário, após sair do trabalho, demorando-se na praça, sentado, pernas cruzadas, lendo seu livro, mas frustrado. Sua longa espera nunca mais fora contemplada com a volta da moça à cena do seu coração.

Naquele mesmo dia, depois da estranheza do primeiro encontro, ele voltou para casa, inconformado pelo susto da moça ao perceber sua presença, mas agraciado por uma única fotografia que estava em sua câmera, em negativo, às vésperas da revelação. Quando pôde segurar o retrato, já revelado, sentiu um profundo carinho.

Ela estava incrivelmente linda. Colocou a foto num porta-retratos comprado especialmente para combinar com a paisagem, com as flores do caramanchão e com roupa de sua amada platônica. Virado de tal maneira para que o olhar da moça na foto encontrasse com o seu à noite, para abençoar seu sono e alegrar o início do dia, posicionou o porta-retratos num lugar estratégico na mesinha de cabeceira ao lado da cama em que dormia.

Muito tempo passou. Ele parou de frequentar a praça, mas não desistiu do seu amor. As esperanças de reencontrá-la começaram a escassear, a minguar, perder as forças. Sentiu os espinhos da tristeza por não mais poder vê-la. Passou a ter insônias regulares - pois ao menos como insone, algo precisava se manter equilibrado -, com o olhar fixado na fotografia da moça amada, sendo acompanhado pelo olhar dela. Não conseguia parar de olhá-la, sentindo que o olhar da imagem cruzava-se com o seu. Assim parecia que estava um pouco mais acolhido em seu sentimento, beijado pela cumplicidade, mesmo que seu coração continuasse ferido na ilusão de uma convivência até então impossível.

(...)

Um dia, bem mais velho, num novo emprego, morando em cidade distante, pai de família, e estando próximo de se tornar avô, resolveu viajar até a antiga cidadezinha em que passou sua juventude. Chegando à casinha em que morou, resistiu um pouco em tocar a campainha. Uma bondosa senhora o atendeu. Ele a fitou emocionado e explicou o motivo de sua visita, apresentando-se.

A senhora, comovida, convidou-o a entrar. Ela lhe confessou que no sótão havia uma caixa de papelão, dos antigos moradores, contendo algumas recordações, e que ficou satisfeita em vê-lo, pois não sabia o seu endereço para lhe entregar os pertences. Ele foi em direção à caixa singela, abriu-a, e logo em cima dos demais objetos de sua lembrança, estava o porta-retratos com a foto da amada de sua mocidade que ainda continuava plantado em sua dolorida alma.

Ele agradeceu a senhora por sua sincera consideração, presenteando-a em retribuição à sua hospitalidade com o porta-retratos - diante da manifestação de seu desejo em ficar com a peça -, despediu-se e se retirou, levando apenas a foto consigo. Antes de partir em direção à doce pracinha, passou numa cafeteria de esquina e tomou um cafezinho bem forte para recuperar o fôlego perdido pela extrema emoção. Chegando à praça, sentou-se no antigo banquinho, e colocou a fotografia, virada ao contrário, em suas pernas, apoiando-a com as duas mãos.

Quando já estava quase cochilando, sentindo a delicada brisa que acariciava seu rosto, pelo tranquilo clima daquele lugar, notou uma presença ao seu lado. Não quis abrir os olhos, pois o cansaço já o dominava. Ficou daquele jeito, sem se mover. A pessoa ao seu lado, sentida apenas em sua presença, tocou sutilmente a sua face e segurou-lhe as mãos. Ainda fixo, com os olhos fechados, as suaves mãos envolveram seu rosto e o trouxe para perto de si. Sussurrou baixinho em seu ouvido, o que o fez abrir os olhos. Quando viu quem estava à sua frente, depois de tantos e tantos anos, ficou deslumbrado, inebriado. Era ela! Estava ali. Ele ameaçou falar. Ela tocou-lhe a boca de leve, com um sorrido nos lábios, pedindo que continuassem em silêncio.

Ela se levantou e puxou-lhe pelos braços, indicando que fosse com ela. Ele ainda admirado, sem falar nenhuma palavra, foi deslizando pelo caminho do caramanchão, que ainda se mantinha bem cuidado e florido, e contornaram os banquinhos da praça até chegarem às escadas do coreto - testemunha do primeiro palpitar, sinal do amor. Antes de subirem as escadas, deram as mãos.

Lá em cima, de mãos dadas, eles permaneceram quietos, silêncio amoroso da cumplicidade, olhando para o horizonte. Ficaram assim por muitos minutos. Quando ele recobrou a consciência daquele sublime momento, estava dançando, ao som de uma linda música, sozinho, abraçado à quase desbotada fotografia da amada - apertada ao peito -, com os olhos cheios de lágrimas. Sentia-se feliz.

Ele era um privilegiado por ter mais aquele instante com o seu amor. Já ela, era a mais viva lembrança de toda a sua história.



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

segunda-feira, 7 de março de 2011

A Máscara da Verdade.














Ao retirar a máscara que ostentava rachada, na fenda da concreta desilusão, revelou-se a mentira da pele desnuda. Aquele singelo objeto que encaixava levemente no rosto, modelando-o como outro, fora de si, não o encobria como ser anônimo, mas o exibia em verdades fluídicas.

Escolhera sua fantasia facial com o mais rigoroso cuidado. Nenhum traço poderia escapar para que denunciasse sua fisionomia de mísero mortal. Muitos dos seus amigos o reconheceriam pelo seu simples modo do seu olhar. Então tratou rapidamente de camuflar o entorno dos olhos. Na primeira tentativa - um fracasso total -, ensaiou contorná-los com um lápis preto, vários cosméticos e maquiagens. Já que nenhum produto oferecido pelo mercado da moda desse conta do recado, utilizou uma genuína graxa de sapateiro, chegando a invejáveis resultados na arte do mascaramento.

Suficientemente produzido, o mascarado adentrou um baile carnavalesco que não exigia a identificação do convidado - sem restrições de acesso -, aberto ao público. Na exuberância da festa, escancarou uma contida alegria - comparada aos discursos feitos para multidões por lívidos e impávidos monarcas -, esperando não ser detectada sua expansiva personalidade.

Caiu literalmente na folia. Estava exultante por ter sido bem sucedido na escolha da camuflagem. Sentia-se diluído em meio ao populacho, emitindo grunhidos e gemidos fervorosos de contentamento. Lamentos de satisfação eram escutados ao longe. Sua performance, muito ovacionada, rendeu exóticas coreografias ao estridente som daquela banda marcial que executava sambas saudosistas.

Estava rodeado por amigos e companheiros da labuta. Por ter atingido seus objetivos, gozava por enganá-los. Sabia que ninguém percebera ser ele, por trás daquela máscara. O escudeiro fiel de adversidades, inseparável protetor em quem todos depositavam confiança - porto seguro -, estava agora imperceptível. Nenhuma viva alma seria capaz de descobrir sua real identidade. Não teria que ouvir as inúmeras súplicas das quais sempre fora vítima, nem as solicitações de ajuda que tanto reprovava, nem mesmo o insuportável pedido de dinheiro emprestado. Nada mais ouviria. Não seria obrigado a aturar as coisas detestáveis. Dispunha de controle. Estava tão próximo de todos, porém com o máximo de distância. Com nítida e delirante paixão, eles o tocavam, puxavam-no, celebravam sua presença, mas sequer desconfiavam que aquele divertido mascarado fosse o amigo disfarçado.

Manteve-se imperturbável até um instante inusitado se apoderar de tal visceral encenação. Exausto em esconder seu segredo - ele mesmo -, começou a desejar mostrar a todos quem ele realmente era. Já não mais conseguia afastar os risos que brotavam dos seus lábios. Havia feito seus amigos de bobo. Foi a única vez que realizou essa monumental façanha. Enganara a todos com maestria.

Num frenesi que substituía a ignorância, arrancou aquela máscara fabricada pelo esmero da invisível existência. Com dificuldades para retirá-la, partiu-a ao meio, repetindo autêntico gesto teatral, como a explosão da cena final de uma épica e arrebatadora peça. Ao apresentar sua face desnuda, límpida, sem aquele adorno facial - escamoteando a razão humana -, os amigos mais íntimos, que antes não o reconheciam, continuaram sem a menor afetação pela verdade que se descortinara num ímpeto inaudível. A empolgação do ex-mascarado, ansioso para degustar a reação de espanto dos colegas, cedeu lugar à frustração da inércia que presenciara. Os olhares dos amigos não mais coincidiam com os seus. Parecia que o inóspito ato do desmascaramento gerou a inexistência. Ninguém mais notava sua presença.

Ele se esforçou o máximo que pôde para convencer as pessoas à sua volta sobre quem era ele de fato, mas nem ao menos sua voz poderia ser ouvida. Ao retirar a máscara, consumou de forma radical a sua invisibilidade – antes tão almejada, e agora tão temida e agonizante. Queria voltar a ser alguém. Mas quem? Se ninguém mais o via, será que havia existido alguma vez? E toda aquela história que conhecia de cor e salteado sobre as peripécias que viveu na companhia daqueles para os quais estava invisível? Nunca aconteceu? Nada?

A angústia de não existir, na ausência do artefato grotesco - sua máscara -, converteu-se em nostalgia da vivência ferina de mascarado. Com ela passou a existir. Virou alguém. Sentia sua falta. Precisava dela. Tinha que existir. Só aquela máscara concederia sua existência. Mas como retornar à vida, como voltar a ser visto, se a máscara jazia rasgada aos seus pés radicalmente imóveis? Agora eram duas metades. Recolheu-as do chão, mesmo assim, e, segurando cada metade com uma mão, levou-as ao rosto. Uma parte havia sido pisoteada e estava suja, amassada. A outra se manteve intacta.

Vestido novamente com a máscara, agora reduzida a duas metades, sentiu-se outra vez um alvo da visão curiosa das pessoas - compartilhando seu gozo extremo. A partir de então, teve inegável certeza que podia ser visto. Adquiriu renovada consistência. Agora estava palpável, carnal, existente. A única diferença era a cicatriz que revelava o rasgão do seu rosto mascarado, separando-o em duas faces distintas.

Ele sabia que seria visto de duas maneiras. Para quem estava ao seu lado direito, era visto como um homem sofrido, surrado, exibindo as duras feridas de uma pobre vida. Para quem estava ao seu lado esquerdo, era um aristocrata, nobre homem cortejado pela vida, nascido em berço de ouro, que jamais teve de lutar por algo, pois já tinha de tudo. Mas as únicas coisas que ambas as faces, tão opostas, mantinham em comum, eram os traços de plástico que revelavam o verdadeiro homem. A tinta negra que contornava seus olhos, nem mesmo com seu forte suor se desmanchou. Estava aderida à pele, inerente ao ser. Seus traços eram densidades que escorriam por entre arranhões e pequenas dobras daquela existente máscara de carnaval. A identidade virou anonimato. E o anonimato, a face real.



ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Sexo.
















Ela destrancou a porta. Ele girou a maçaneta. Entrou... Haviam marcado aquele encontro às escuras. Ela pouco havia conversado com ele antes de se verem. Não sabia o suficiente sobre seu caráter – se é que seja possível saber algum dia. Queria convidá-lo para se sentar num elegante sofá reservado apenas para ocasiões especiais. Não era só uma peça decorativa, pois, outrora, memoráveis momentos de supremo êxtase ficaram impressos em seu estofado. Aquela seria uma grande possibilidade de recomeço. Entorpecente promessa de vivenciar idílios inomináveis. O anonimato, afetação em raso mergulho, sem o ônus dos sentimentos, era fórmula ideal e infalível para chafurdar no melado pecaminoso.

Tinha absoluta certeza que a noite seria inesquecível. Depois de tanto tempo sendo usado somente em solitárias divagações, o aconchegante sofá iria novamente ser palco de coreografias dionisíacas. Corpos engalfinhados. Capilares enroscados. Artérias latejantes. Vasos contraídos. Olhos de sedentos felinos.

Tentou estender os braços para cumprimentá-lo. Um tremor ósseo manteve seus braços dobrados, cotovelos colados ao corpo. Não compreendeu tal reação. Paralisou-se por repentino medo que lhe reprimiu a gana erótica. O homem esbelto à sua frente implorava com lábios dóceis, que ela o domesticasse entre suas coxas umedecidas pelo gozo silencioso da transpiração. A língua estalando no céu da boca antevia a sucção esponjosa de primata amordaçado. Superfície dilacerada por enfurecidas carícias e dóceis arranhões. Invulgar semblante a comprimir e a liberar viscosas trocas fluídicas.

Ele continuou lá, parado, em frente a ela todo o tempo. Talvez esperando que ela o cumprimentasse e o convidasse para se sentar. Ela permaneceu extática perante aquele macho exalando testosterona pelos poros dilatados. Estava um pouco enferrujada – não negava, mesmo com certa resistência -, mas ainda conseguia farejar a distâncias inimagináveis o odor de um animal no cio. O másculo tronco exibido pela camisa de botão aberta. Peito desnudo. Imagem satânica que a excitava ardentemente. Provocava contorções íntimas em seu ventre. Desejos obscuros e mundanos, clamando pela realização pulsante das viscosas seivas corporais, foram suscitados. Jamais afastaria aquela tentação beatífica. Plumas vigorosas a deslizar pelas reentrâncias salivares, transbordando em cenários de arrepios vibrantes.

Lá estava ele, esperando. Ela, com o cataclismo das expectativas, não mexia nem os cílios e sobrancelhas. Seu braço continuou travado, grudado ao corpo tenso. O suor já não era quente de prazer. Era um suor frio de pavor. Rígida como uma estatueta, coroava a si própria pela estupidez da inércia e falta de traquejo pessoal. Não moveu nenhum músculo. Seu Adônis, beleza exótica, incomum, manteve-se ali, esboçando leve sorriso de timidez e constrangimento. Ambos não trocaram nenhuma palavra. Ela, no instante em que o braço descolou do corpo, pôde estender finalmente as mãos. Mas num ato de inquietante espontaneidade, empurrou o galã porta afora, e com a outra mão, fechou a porta com toda a força que seu corpo franzino poderia imprimir em tal gesto.

Calmamente, ela se virou, deixando a porta trancada para trás – assim como a trava de seu corpo –, e colocou de lado a funda borda do frustrante esquecimento. Chegou perto do seu sofá, reservado para as ocasiões especiais, alisou a beiradinha do estofado e se jogou nos braços do seu amado móvel com aquela suave espuminha de poliuretano e delicado revestimento de chenille. Estirada no sofá, curtindo a árida solidão – mas sem culpa por ter desprezado o bonitão -, acendeu um cigarro, pegou uma sexy e sofisticada taça de vinho e se preparou, recostando-se confortavelmente, para assistir a um espetacular filminho ao estilo água-com-açúcar que suas amigas sempre lhe recomendaram.


ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Elias Feijão.













Elias, sentado à mesa, repetia com voracidade a sua santificada gula de cada dia. Devorava, mastigava, engolia, com colheradas substanciais, recheadas de orgulho, um incrementado prato de feijão mulatinho. Há muito tempo não saboreava um feijãozinho como aquele. Já estava prestes a declarar sua paixão à culinária brasileira. No auge dos seus mais de quarenta anos de idade, não se lembrava de ter comido prato tão gostoso. A última vez em que esteve diante de tal sublime iguaria, foi quando era garoto e sua mãe ainda não havia morrido prematuramente, como ocorrera algumas semanas depois deste episódio - lamentando ardentemente a falta que sentia do marido que a abandonara dias antes.

Antes das fatalidades, num dia trivial, Elias estava rondando sua mãe na cozinha, como já era de costume, nas proximidades do almoço, enquanto preparava o feijãozinho caprichado e despejava todas as broncas maternas possíveis pelo inconveniente da situação. Afinal, lugar de criança nunca fora a cozinha – mesmo que nenhuma criança consiga sair de uma.

Todas as crianças nascem, de parto normal ou de parto cesariano, dentro da cozinha. Depois crescem e se proliferam na mesma ou noutra cozinha. Só quando a hora da morte chega, é que escolhem outro lugar, um pouco mais estreito, apertado mesmo, e de madeira envernizada – apesar de algumas mais humildes nem mesmo um mero vernizinho recebem.

Acontece que Elias degustava seu prato de feijão com tanto prazer, que já estava literalmente morrendo desse afeto voluptuoso. Parece que ele não escolheria outro local para bater as botas. Seria na própria cozinha, aonde nasceu, cresceu e se proliferou, lugar também eleito para morrer.

Logo após a derradeira colherada no suculento feijão, deixando o prato limpo, cristalino, seguida das certeiras lambidas que Elias deu no intuito de capturar os últimos apetitosos resíduos que a mísera colher não era capaz de alcançar, inclinou-se para trás, em sua exclusiva cadeira de refeições - porém mais empanzinado do que satisfeito -, e um ruído medonho, que não era um arroto, fora ouvido de suas partes baixas. Sua barriga inchou terrivelmente - como as bexigas de ar sendo sopradas por um levado aniversariante -, e a cabeça começou a diminuir na mesma proporção em que a barriga aumentava. Parecia nitidamente que o ar da cabeça, que encolhia, passava para a barriga, que elástica, esticava com uniformidade.

De repente, um fenômeno inusitado se instalou no recinto. Sua cabeça havia virado uma pequenina semente de feijão preto. E isso era a coisa mais estranha disso tudo. Pois não era um feijão mulatinho, como do seu banquete, mas sim um comum e minúsculo grão preto. Como então ficaria aquele corpo disforme, com uma pança imensa e uma cabeça reduzida à semente de feijão? Será que ainda seria capaz de pensar?

Do alto do seu extenso pescoço, o feijãozinho desequilibrou. Começou a bambear como um João-bobo inflável. Mas vencido pela gravidade, precipitou-se, lançando-se em queda livre, num angelical bailado de suicídio mental. Caiu certinho no meio do prato babado pela gulodice de Elias. Aquele corpo, no alto do qual a cabeça estava atarraxada, e que se reduzira a um deprimente grão de feijão, era o lugar de onde jamais o cérebro deveria ter saído.

Por alguns instantes, os pensamentos de Elias esvaziaram-se, ficaram numa paragem desértica. Mas ao readquirir a orientação espacial, ressituando-se, ao longo de fervorosas piscadelas seriadas, apalpou desesperançoso seu volume craniano, para certificar-se de sua presença, e confirmou a circunferência da cachola.

Ele não mais estava desmiolado. O formato de sua cabeça permanecia exatamente do jeito que sempre fora. Não entendendo o que havia sucedido, e temendo ter sido vítima de sintomas alucinatórios, deu uma tímida espiadela para o prato, conferindo a existência do tal feijão preto. Lá no meio estava ele, intacto. Seu corpo continuava inteiro, sem faltar nenhuma parte - nem maior nem menor.

Elias, ainda cismado com aquele único feijãozinho em seu prato - produto imprescindível da cesta básica, inclusive pela quantidade -, que antes achou que se tratasse de sua cabeça em miniatura, muniu-se de talhares, dando prioridade à faca, e ameaçou cortar o feijão ao meio. Quando levou a serra da faca ao ventre da sementinha, iniciando a operação de corte, sentiu uma aguda dor no lóbulo frontal. Parecia que suas melhores recordações estavam sendo arrancadas a pérfidos golpes de cruéis lenhadores.

Assustado com a hipótese de que seu cérebro realmente tinha caído no prato em formato de feijão, cerrou os punhos e começou a golpear sua cabeça com leves soquinhos. A cada batida, um som oco reverberava dentro da caixa craniana, como se tivesse um profundo e absoluto vazio. Passou a graduar a força e o ritmo dos golpes, mantendo sempre um eco longínquo em tais batidas, como se estivesse na beirada de um abismo com quilômetros de profundidade.

Aquela sementinha condensava toda a sua alma. Estava trancafiada numa lâmpada frágil com um emaranhado artesanal de sentimentos embutidos. A memória afetiva retornava em turbilhão excessivo, como num bombardeio cujo perdão se fazia impiedoso.

Precisava extirpar todo o mal. Sua vida se esvaia num fluxo intenso. Pensamentos recônditos vieram à tona. Estava lidando, com a superfície lisa e renal do feijão - sem a peculiaridade da benéfica filtragem de sonhos, lembranças e pesadelos -, na qual a essência desalmada se comprimia. Na iminência de ser invadido pelas reminiscências mais dolorosas, emitidas pelo feijão - não de dentro para fora, mas de fora para dentro -, num lapso enfurecido e fumegante, tentou abocanhar de volta a sua alma, mesmo submerso no ato pleno da contradição irreversível, para reordenar suas paixões em seu devido lugar de mérito: o esquecimento.

(...)

Apanhado desprevenido no contra-ataque, os lábios do feijão, maiores que os seus, alavancaram uma bocarra surpreendente, engolindo Elias antes que ele pudesse recuar em franca defesa. Não sobrou nada do heróico Elias. Só o vazio de sua cadeira apontava para sua história. E aquele único feijãozinho preto, enterrado no alvo prato de porcelana, relatou à posteridade, na rádio nacional, o dia em que Elias confessou sua orfandade.

Antes de ser totalmente digerido pelo estômago brocado de um tropeiro valentão qualquer que andava pela região, Elias constatou, pelo toque calejado daquele homem rude e faminto, do fundo da panela de pressão, prestes a ser vedada pela tampa emborrachada, que quem iria comê-lo não seria ninguém menos que seu próprio pai. Causador da morte de sua mãe, de desgosto, na última refeição, quando não mais voltou ao lar, pagou pela própria boca, na crueza do destino, ao mastigar o filho das entranhas de quem ele rejeitara.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.