sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Formação do Inconsciente x Instituição Formadora.

É só pelo desejo, como analisante, que o sujeito se autoriza a psicanalisar. Essa estorinha de ser autorizado por um título regulamentado "psicanalista da instituição", é futilidade de instituições que imaginariamente tentam ostentar um poder fálico de subordinação da "verdade" da formação psicanalítica. A palavra "autorizar" já contém em sua estrutura, a verdade ética sobre o desejo de psicanalisar: "Autor-izar". Só assim, pode haver analista. Há alguma garantia, que alguém que se autodenomina "analista", ou que foi assim intitulado por supostas autoridades competentes, seja realmente analista? O discurso do analista é a ética da peculiaridade de uma escuta do outro, da diferença. Não há como regulamentar o encontro, a transferência, as semânticas e os fonemas que são endereçados no encontro. A psicanálise é uma escuta da equivocação inconsciente, da alteridade, daquilo que está em ininterrupto deslize. A psicanálise não é uma escuta do "establishment", do tic-tac engessado de regulamentações e de significações.

Não se trata de se nomear ou não se nomear psicanalista, pois isso não interessa nem um pouco. A transferência não é um patrimônio de mercado, não fica exposta em prateleira de farmácias, não é receitada em prescrições médicas, nem é um objeto contemplativo. A transferência é um fenômeno incontrolável, que se dá numa fala endereçada a um outro, vindo à tona em relações intersubjetivas ou de objeto. A psicanálise é um ato de discursividades, uma especificidade, e não uma especialidade. A psicanálise, como enunciação, é impossível de fragmentação e de classificação em quaisquer normais regulamentares. A transferência se opera em sutilezas, em nuances, em tatos que não se traduzem por técnicas, mas por uma escuta flutuante, plástica. A psicanálise, como discursividade invisível e indizível, porém implicada na ordem da fala, não se deixa capturar por nenhuma estética nem moral, porque é uma ética, uma elasticidade subversiva da palavra. Nunhuma instituição consegue regulamentar os significantes, os discursos, a enunciação. Não se regulamentam ondas sonoras. Querer regulamentar a psicanálise, é o mesmo de querer regulamentar o afeto e o inconsciente. Impossível!

O psicanalista é uma função, e essa função pode se operar, pelo investimento da palavra de alguém, até mesmo em quem não se nomeia como psicanalista. Lembro de um filme, do qual não recordo o nome, em que uma personagem, portando o endereço do consultório de um analista, vai procurá-lo. Chegando ao prédio de sua referência, vai até ao determinado andar em que se localiza o consultório, mas erra a porta, entrando na sala ao lado do analista. Era o escritório de um advogado. Ao ver o sujeito, que não sabia se tratar de um advogado, prontamente deita-se num divã em seu escritório, e antes mesmo de se apresentar, vai logo falando de suas questões que a levaram lá. O advogado, em princípio perplexo, permanece em silêncio enquanto a personagem fala no divã. O advogado, sem ter o que responder, apenas solicita que ela retorne na semana seguinte. Após a saída da "analisanda", o advogado, que não tinha nenhuma formação psicanalítica, vai à sala ao lado da sua, que é o consultório do "verdadeiro" psicanalista, mobilizado e causado pelo discurso do sujeito, conta o que aconteceu e pede supervisão/análise. Assim, continua atendendo a tal mulher que errou de porta. O que eu estou dizendo, sem entrar no mérito da formação discutida pelas instituições, é que a transferência não escolhe títulos ou nomeações, ela se dá por traços de identificações inconscientes.

No filme, o advogado, "vítima" do equívoco da mulher que o procura, colocando-o na função de um analista, continua as sessões com sua "analisanda", e vai à sala do analista "verdadeiro" pedir supervisão/análise do que ele escutava. Ou seja, o analista só existe autorizado pela transferência. É o discurso da analisanda (paciente), que constrói um analista, é o sujeito que coloca alguém na função do analista. Não é uma nomeação que faz o analista, mas sim a fala de um sujeito transferido, que faz o analista.

Formação psicanalítica não é sinônimo de IPA. Formação psicanalítica é uma formação do inconsciente. E formação do inconsciente é análise pessoal, supervisão (que reenvia à análise pessoal) e estudos teóricos, nada mais nada menos que o tripé de formação postulado por Freud. Nessa perspectiva, não há, em hipótese nenhuma, uma instituição que possa regulamentar a formação. Só há analista em formação e a formação é permanente. A formação é do analista, como formação do inconsciente em sua análise pessoal. Não existe instituição que forme analistas.

Em tempo de concluir meus argumentos em defesa da semi-verdade transmitida pelo discurso psicanalítico, que não é da ordem da compreensão, pois o inconsciente não se compreende e sim se transmite, há um engano um tanto grosseiro em confundir desejo com vontade. A vontade é da ordem narcísica da consciência, como formação do eu, constituída como conhecimento paranóico do duplo especular, do outro imaginário. O desejo é sempre desejo de outra coisa, pois o desejo se inscreve no campo do Outro como lugar da falta significante. Já o desejo do analista é uma possibilidade de construção, somente em análise, e em nada além ou aquém da dimensão da análise pessoal. O desejo é uma formação do inconsciente viabilizada como retificação subjetiva somente durante uma experiência de análise, no divã de outro psicanalista. O desejo do analista, em seu vazio de libido, possivelmente operado num tempo lógico da análise pessoal, pode irromper no instante da travessia do fantasma, do luto dos objetos pulsionais perdidos.

O desejo do analista, oco de sentido, mobiliza a escuta do analista no desejo de que o outro possa desejar de modo singular, como este alcançou em sua experiência de análise pessoal. Há uma fina barreira, uma linha tênue que separa o sujeito desejante, que só pode se constituir em análise, do desejo do analista, que talvez se dê numa "depuração" do sujeito desejante. Numa análise, o analista, colocado nesse lugar pela transferência, como suposto saber, nessa função de escuta, não está ocupando a posição de sujeito desejante, nem respondendo do lugar do eu, mas sim como semblante da falta, como objeto causa desse desejo no analisando, lugar muito sutil e delicado, quase da ordem do impossível, sendo só viável de se sustentar na análise pessoal do analista.

Para Lacan, sempre que a palavra "desejo" comparece em seu ensino, ela se refere a um árduo e exaustivo percurso de formação. O desejo não está na origem, nem no horizonte de uma formação, mas é algo que se presentifica num lugar Outro e que consiste num instante lógico, numa sofisticação que se produz (ou não!), ao longo de um percurso de análise, supervisão e estudos. Trata-se de uma precariedade de laço, ou liame social entre os pares analistas que se sustenta apenas em formação. Tanto o sujeito desejante quanto o desejo do analista, não se constituem sem que o sujeito (analisante/analista) esteja implicado num percurso de formação em análise, embora cada um irrompa logicamente em tempos distintos da análise, e tenham funções também radicalmente diferentes. Uma formação sem desejo, é uma fôrma industrial na qual se fabrica profissionais em massa descomprometidos com a causa inconsciente. O desejo é constantemente colocado em causa num percurso de formação. Desejo, para Lacan, é sinônimo de formação psicanalítica.

Texto Escrito por Alex Azevedo.

3 comentários:

Ana SSK disse...

Um psicanalista é o que sobra de uma análise.
Belo texto.

Aline disse...

Tua escrita tá fluida, mais compreensível, e segura.

Gostei muito. Indiquei no twitter.

Alex Azevedo Dias disse...

Para Lacan, sempre que a palavra "desejo" comparece em seu ensino, ela se refere a um árduo e exaustivo percurso de formação. O desejo não está na origem, nem no horizonte de uma formação, mas é algo que se presentifica num lugar Outro e que consiste num instante lógico, numa sofisticação que se produz (ou não!), ao longo de um percurso de análise, supervisão e estudos. Trata-se de uma precariedade de laço, ou liame social entre os pares analistas que se sustenta apenas em formação. Tanto o sujeito desejante quanto o desejo do analista, não se constituem sem que o sujeito (analisante/analista) esteja implicado num percurso de formação em análise, embora cada um irrompa logicamente em tempos distintos da análise, e tenham funções também radicalmente diferentes. Uma formação sem desejo, é uma fôrma industrial na qual se fabrica profissionais em massa descomprometidos com a causa inconsciente. O desejo é constantemente colocado em causa num percurso de formação. Desejo, para Lacan, é sinônimo de formação psicanalítica.