domingo, 12 de janeiro de 2014

A Cidade Cativante.




A Cidade Cativante.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Ao saltar da embarcação, deparou-se com a estátua de um índio mal-encarado, esperando-o de braços cruzados. Apesar de austero e valente, em seu rosto, transbordava ternura e serenidade. Carmo contornou aquele monumento improvável e o comparou aos rígidos braços abertos do Cristo Redentor. Talvez em nada se assemelhassem. A posição do índio suscitava proteção e cuidado. Os braços do Cristo, frágil abraço, denotava devoção, com certa dose de desamparo. Carmo observou que o pôr do sol emprestava ímpar vivacidade à pele de bronze daquele guerreiro indômito. A camada esverdeada composta pelo tempo implacável, em contato com os últimos raios do astro adormecido, convertera a bravura do cacique em destemido amor.

Quando tomou consciência de si, ficara mais de meia hora parado em plena Praça Arariboia, olhando para o alto, contemplando a imponente estátua. Carmo deu uma olhadinha para cada lado, temendo cair no ridículo. As pessoas passavam frenéticas, para cima e para baixo, para um lado e para o outro e não se davam conta daquele inusitado visitante embasbacado pela força do ilustre anfitrião niteroiense. Ligeiramente constrangido pela cena patética à qual se entregara, Carmo abandonou a veneração ao monumento de Arariboia e saiu de fininho.

Recuperando-se da inquietante experiência, atravessou a movimentada Avenida Visconde do Rio Branco e, novamente, deparou-se, maravilhado, com a arquitetura suntuosa de um palácio em art nouveau inteiramente restaurado e iluminado. Leu que se tratava de uma edificação dos Correios, inaugurada com a presença do primeiro presidente da república brasileira. Consultou o relógio. O tempo corria velozmente. Não mais permitiria ser sugado por seu deslumbramento sensível. Ajeitou a gravata, tirou o paletó, arrumando-o no antebraço - com o cotovelo levemente dobrado para não amassá-lo - e prosseguiu viagem. Faltava pouco tempo para seu compromisso inadiável e não poderia se atrasar um minuto sequer.

Carmo não quis pegar nenhuma condução. Sabia que se não se distraísse pelo caminho, margearia a orla sem que corresse o risco de perder a hora. Tinha quase duas horas para reservar tal prazer a si. Viu, ao longe, toda a extensão da Ponte Rio/Niterói. Observou duas estátuas, também de bronze, sentadas em um banco de concreto. Uma, representando o presidente Juscelino que, entusiasmado, olhava os projetos arquitetônicos de Niemeyer. Sentiu a brisa soprada da Baía de Guanabara em seu rosto, amenizando o calor e enxugando os pequenos brotos de suor.

Passou por Gragoatá e São Domingos. Ao se aproximar de Boa Viagem não resistiu e contemplou, timidamente, o Museu de Arte Contemporânea em seu inconfundível formato de disco voador. Ele foi construído praticamente à beira de um precipício, desafiando a lógica matemática e a razão humana. Grato pela fascinante paisagem que se descortinara à sua frente, derramando beleza aos cinco sentidos, avistou uma pequena igreja no alto de uma ilha próxima ao MAC. Viu que essa ilha unia-se ao calçadão da orla por uma longa e estreita ponte de concreto armado. Notou também que abaixo dessa ponte o mar se dividia por uma fina camada de areia. Convidado por tal fenômeno da natureza aliado às façanhas humanas, Carmo, que não era católico, entregou-se, emotivo, ao sinal da cruz, dobrando sutilmente seus joelhos em reverência àquela imensidão.

Fez uma pequena pausa para fotografar a magistral obra de Niemeyer, símbolo da cidade de Niterói. Não pôde ignorar que de um pequeno lago artificial, no qual a estrutura do museu fora instalada, as ondulações refletiam os raios do sol, formando um móbile de luz em toda a circunferência daquela obra magnífica. Carmo consultou novamente o relógio. Só faltava meia hora. Agitou-se ao constatar a inevitável passagem do tempo. Apressado, atravessou, mantendo o contorno litorâneo, o bairro do Ingá. Da praia das Flechas, notou chamativas formações rochosas, conhecidas como Pedra do índio e de Itapuca. Antes de o MAC ser elevado como representante maior da cidade, tais monumentos naturais assumiam a categoria de símbolos máximos da cidade.

Acelerando os passos, ao invés de continuar seguindo pelo calçadão, já na praia de Icaraí, virou à esquerda, na Miguel de Frias e a seguiu até pegar a Moreira César desde o início. Na esquina, em frente a uma padaria, deteve-se diante de uma banca de jornais. Lá, admirou-se com cartões postais com os mais variados retratos. Primeiro viu que, perto dali, havia um amplo espaço arborizado e florido, uma reserva ambiental com um grande chafariz, bem no coração de Icaraí. Logo uma vontade atroz fustigou-lhe a alma. Mas, sabendo de seu compromisso, afastou a ideia de conhecer o Campo de São Bento. Aquele lugar lhe traria a paz tão almejada, a mesma paz que receberia como retribuição ao concluir o trabalho ao qual se comprometera. Além da compensatória paz ao final do serviço, muito dinheiro também estava em jogo.

Já mais para o fim da Moreira César, Carmo dobrou à direita, na Oswaldo Cruz e novamente se dirigiu à praia de Icaraí. Tirou do bolso um bilhete amassado. Espichou o papel até conseguir visualizar o endereço e confirmou sua exata localização. Colocou-se defronte ao condomínio luxuoso, de vinte andares. Enquanto aguardava a oportunidade adequada para entrar, teve sua atenção tomada pelos trajes elegantes com os quais os moradores desfilavam a torto e a direito. Notou que o modo de se vestir daquelas pessoas muito se assemelhava aos cidadãos que circulavam pela Moreira César. Não evitou que um sorriso malicioso escapasse de seus lábios. Mas logo se recompôs. Sabia ser aquele um bairro nobre, embora o dinheiro não fosse sua prioridade. Estava ali para cumprir seu compromisso e ponto final, sem mais nem menos.

Pacientemente, esperou que a garagem abrisse para acompanhar o veículo que entrasse ou saísse. Não demorou muito, um automóvel parou. O motorista acionou o controle remoto e o portão iniciou sua abertura. Carmo, nesse instante, comparou o portão à abertura cerimoniosa das cortinas de um teatro, convidando-o a subir ao palco. Estava exultante. Sentia que aquela era sua deixa para o encerramento de grande espetáculo. Abaixou-se à lateral do carro, tomando cuidado para não ser identificado pelo espelhinho retrovisor. Paralelamente ao movimento do veículo, foi se esgueirando lentamente até passar por completo, também sem ser visto pela câmera de segurança do edifício.

Na ausência do porteiro, Carmo, fingindo ser um condômino comum para não levantar suspeitas, sentou-se no sofá, cruzou as pernas e, calmamente, abriu o jornal do dia. Verificou outra vez o relógio. Faltava apenas cinco minutos para executar a vítima do oitavo andar. Fechou o jornal, depositando-o sobre os joelhos, ergueu de leve o corpo e conferiu discretamente o revólver preso pelo cinto da calça, junto à pele. Quando ia se levantar, estancou subitamente ao ver uma praia belíssima na capa da revista sobre a mesinha, com tampo de mármore, no centro da portaria.

Largou o jornal em cima da almofada do sofá e folheou a revista. Não pôde conter uma lágrima solitária descendo pelo seu rosto. As praias paradisíacas da região oceânica de Niterói o enterneceram. Tocaram-no profundamente. Ele não fazia a menor ideia da riqueza daquela cidade. Tudo que já tinha visto até então já fora suficiente para convencê-lo do fascínio daquele lugar. Abriu página por página. Vislumbrou retrato por retrato. Encantou-se com as praias de Piratininga, Itaipu, Camboinhas e Itacoatiara. Um sentimento tão oceânico quanto o mar aberto invadiu-lhe por completo, intensificando à exaustão as lágrimas de emoção.

Naquele instante, decidiu: largaria a odiosa vida de matador de aluguel. Diante de tanta beleza, não valeria a pena ceifar vidas, privando as pessoas da contemplação pacífica da natureza em seu esplendor e formosura. Carmo contraíra uma séria dívida com mandantes do crime na Baixada Fluminense e fora encarregado de desembarcar pela primeira vez em Niterói para assassinar um juiz de direito em troca de perdão e paz. Decidido a mudar de vida definitivamente, Carmo guardou a revista em sua pasta e saiu pela porta da frente. Ao ver o límpido e cristalino cenário, composto por um azul infinito, deixando ainda mais visível o Pão de Açúcar e o Corcovado do calçadão da Praia de Icaraí, entregou-se novamente ao mais copioso pranto.

Carmo seguiu pelo calçadão em direção ao bairro de São Francisco. Subiu a estrada Fróes até mirar a praia do alto. Certificou-se que ninguém passava naquele instante, tirou a arma da cintura com cuidado e, impulsionando bem forte o braço, arremessou-a para o meio da água. Como não poderia retornar ao Rio de Janeiro, lembrou-se que havia um conhecido seu que falsificava identidades. Coincidentemente, ele residia em Niterói. Telefonou. Conversaram longamente. Ele explicou sua situação delicada ao Petrotski - seu amigo falsificador -, nascido no estado do Paraná e também amante de Niterói, que há muitos anos fixara residência em Itaipu. Ao ouvir toda a história atentamente, sensibilizou-se pela causa de Carmo.

Algum tempo depois, Carmo passou a se chamar Manoel. Petrotski ainda foi além do combinado para ajudar o amigo. Apesar de ser num lugar distante de Itaipu, numa rua apenas numerada, sem nome e sem asfalto, Petrotski tinha mais uma propriedade que, mediante uma quantia camarada, alugou para Carmo morar temporariamente. Favorecendo o amigo financeiramente, viabilizou seu contato com pescadores da região. Rapidamente, Manoel, que jamais revelara sua real identidade aos novos amigos, enturmou-se, alugou um barquinho modesto e se aventurava, toda quarta-feira, no mar aberto, junto às traineiras e gaivotas famintas, empenhando-se no seu ganha-pão.

Após muito trabalho, comprou um espaço em sociedade com um camarada seu do mundo dos pescados no tradicional Mercado São Pedro. Logo depois, agradecendo com muito carinho ao amigo Petrotski, deixou a casinha em Itaipu e se mudou para a Vila Pereira Carneiro na Ponta da Areia - um pequeno bairro residencial construído por trabalhadores da construção naval. Manoel, O Peixeiro, como se popularizara entre os amigos e clientes da banca de peixe, vivia com um sorriso largo de orelha a orelha.

Com muito orgulho, em sua certidão de nascimento falsa, estava a cidade de Niterói como seu berço querido. E de Niterói, Manoel jamais saíra e nunca mais se recordara que um dia tivera outro nome.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

*

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Numa Noite de Natal.




Numa Noite de Natal.
Autor: Alex Azevedo Dias.

A chuva finíssima esfumaçara ao sabor dos ventos. Assim borrifada, espalhando-se dispersivamente, essa chuvinha lembrava os flocos de neve da mesma época, mas em outra estação. Uma menina desgarrara de sua mãe enquanto se aproveitava da distração desta numa vitrine importada. Separara os lábios na tentativa frustrada de abocanhar uma gota d'água, resultando apenas num rostinho úmido a soltar tímidos espirros. O calor daquele verão enganava os desavisados, confundindo a roupa molhada pela transpiração com a linda, leve e solta chuvinha do entardecer.

Notando que havia perdido a filha de vista, Lara se precipitou na multidão e, vendo Nina alheia, contemplando sua íntima nevasca, tomou-a pela mão. Aquele súbito afastamento da filha fez com que ela esquecesse a atraente vitrine com seus objetos mágicos. Lara dividira-se. Não podia ignorar aquelas imperdíveis ofertas, mas um esboço de culpa a freara, pois seu desejo por tal paraíso de vestidos, bolsas, perfumes e joias não poderia aliená-la de seu único bem verdadeiramente valioso: sua pequena Nina.

Quando chegou ao apartamento do ex-marido para deixar a filha, Lara, ainda um pouco frustrada por não ter comprado a fragrância maravilhosa, juntamente com o divino anel de brilhantes, jogou-se no sofá. Normalmente não agia daquela forma. Sentia-se desamparada. Não era partidária do machismo muito menos do feminismo, mas às vezes se martirizava por se achar impotente. Recriminava-se por ter deixado seu marido escapar. Não se via como uma boa mulher, apesar de saber ser portadora de diversas qualidades, além de ser ainda jovem e bonita. Mergulhara no consumismo como refúgio dos dissabores. Mas, naquela noite, o medo de perder a filha falara mais alto.

Já era noite de natal. Naquele ano, excepcionalmente, combinara com o pai de Nina que a menina passaria a noite de 24 de dezembro com a família dele e, no dia seguinte, teria o tradicional almoço natalino com sua própria família. Desde a separação, sempre fora o contrário: a véspera com ela e o dia de natal com ele. Lara não costumava ficar para cumprimentar o ex-marido. Nina conhecia a casa como a palma de sua mão. Aquela era a casa em que viveram juntos por oito anos, nem sempre tão felizes, mas ainda assim memoráveis. Exausta, Lara mesmo resistindo ao sono oportuno, acabou por se entregar a algo maior que um simples cochilo.

Acordou abruptamente com a filha chamando por “mamãe”. Antes mesmo de se levantar, ainda um pouco tonta pela sonolência, não se perdoando por ter adormecido naquelas condições, Lara reprimiu um grito ao ver um homem deitado de bruços ao pé da árvore de natal. Nina estava correndo de um lado ao outro, ora puxando o vestido da mãe, ora abaixando-se ao lado do homem e tocando em suas vestimentas extravagantes. A menina não pôde conter o que sua mãe mais temia: o excesso de fantasia.

- Mamãe, mamãe! Será que é ele, mamãe? Justo na casa do papai? É ele, mamãe?

Com a voz embargada e meio desorientada pela perplexidade do acontecimento, Lara verbalizou, ou melhor, balbuciou, em resposta à inquieta interrogação da filha:

- Seu pai? Não pode! Ele não é tão gordo. Não faz tanto tempo assim que eu não o vejo pra ter engordado dessa maneira.

- Não, mamãe! Que papai que nada. Não é meu pai. É o Noel!

- Como assim, Nina!? Que Noel? Este homem deve ser um encanador ou um bombeiro hidráulico que não resistiu aos apelos festivos e se entregou à bebedeira escandalosa.

- Não, mamãe. Veja, ele tem barba de verdade! Cabelos grisalhos por baixo do gorro vermelho e barba branca.

- Então é um dos amigos vagabundos, daquelas farras, que seu pai sempre trazia pra casa.

- O que você está falando, mãe? Acorda! É o Papai Noel!

- Olha o respeito comigo, heim!?

- É ele mesmo! Veja, veja...

- Quê? Será? Mas ele não existe...

Nesse instante, ao virarem o homem misterioso de barriga para cima, as luzes da árvore se acenderam repentinamente e o suave e encantador som de guizos e sinos ecoou na acústica daquela sala tão cuidada, apesar de tanta história abandonada. Mãe e filha se assustaram na presença daquele homenzarrão que se levantara de uma vez só e lhes estendera uma das mãos com um pequeno bilhete manuscrito. Lara reconheceu a caligrafia. Era de Nina. Uma letrinha singela contendo um inusitado pedido de natal. Logo depois, tudo desaparecera.

(...)

Como num passe de mágica, Nina já completara sessenta anos. Mora com o marido, um francês quatro anos mais velho do que ela, numa cidadezinha do interior da França. É véspera de natal. Seus filhos, já crescidos e bem casados, foram morar no Rio de Janeiro, sua cidade natal e de seus avós maternos. Todos chegaram à França para o natal com a família. Os netos de Nina e Charles brincam alegremente ao redor da lareira. Nina não sentira o tempo passar. Ressente-se do tempo que não vira seus pais, que, a essa altura, já estão bastante idosos. De repente, a campainha toca.

A matriarca Lara entra sorridente, cumprimentando seu genro e beijando os netos e bisnetos. Logo atrás, seu pai aparece, também cumprimentando Charles e dando tapinhas de leve na cabeça das crianças. Ao se aproximarem de Nina, seus pais estão de mãos dadas. No dedo anelar da mão esquerda de Lara, o anel de brilhantes que ela tanto sonhara. Ao ser interrogada por Nina, Lara diz que ganhara aquele presente do seu marido, renovando os votos matrimoniais. Nina os abraça afetuosamente e suspira, quase soluçando, de satisfação.

Antes de se deitar, grata por aquela noite realmente feliz, Nina se recorda de seus sete anos, quando viu o estranho homem fantasiado de Papai Noel deitado de bruços no tapete, perto da árvore de natal. Aquele bilhete com sua caligrafia continha o pedido de ter sua família de volta, unida e feliz. Uma lágrima escorreu de suas pálpebras, depositando-se na maçã corada do seu rosto. Fechou os olhos e se lembrou das feições daquele Bom Velhinho que lhe concedera o melhor presente há cinquenta e três anos e que se perpetuara para sempre, em todos os natais.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

*

Mesmo para quem é triste, o natal existe!
Um feliz natal a todos!!!

domingo, 15 de dezembro de 2013

De Sangue e Coração.








De Sangue e Coração.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Billy nasceu por mãos alheias. Foi expulso do ventre materno logo de cara. Demorou a respirar. De cabeça para baixo, seguro pelas mãos ágeis do médico, Billy não chorou. Após muitas tentativas, o ardume fora sentido junto ao primeiro ar que entrara em seus pulmões. Estertor. Gritos no lugar do choro. Após acalmar, Billy fora entregue à mãe. Inês virou-se para o lado oposto ao da criança. Recolheu as mãos, encolheu os ombros, apertou os olhos e enrugou a face. O médico insistiu, pediu a ela que abrisse os olhos para ver seu filho. Inês se encolheu ainda mais no leito hospitalar. O médico parou de insistir. Colocou o menino numa caminha própria e o encaminhou ao berçário para os primeiros cuidados após o parto.

Depois do descanso da mãe, Billy foi levado, pelas mãos de uma enfermeira, para receber a primeira amamentação no colo materno. Inês, ainda de olhos fechados, teve seu ombro tocado para que acordasse. Ao abrir os olhos e ver aquele menino nos braços da enfermeira, a mulher desesperou-se. Debateu-se no leito, virou o rosto, soltou gemidos estranhos. A enfermeira pediu à equipe para atendê-la com cuidados especiais e levou a criança novamente ao berçário para que se alimentasse de forma alternativa. Durante o parto, o pai com um amigo ainda permaneceu por algum tempo na sala de espera, mas após o nascimento, ele não se encontrara mais no hospital.

Na alta da mãe, o pai apareceu para buscá-la. O médico comunicou-lhe a situação da mulher e pediu sua colaboração para auxiliar a mãe enferma. Perguntaram a ele sobre o nome que escolhera para o filho. Um constrangimento pairou no ar. Ele não soube responder. A equipe de enfermagem, diante do mal-estar, sugeriu um nome. Disse que pelo tempo que o pequeno ficou no hospital, as enfermeiras o nomearam de Billy. O pai apenas balançou a cabeça, consentindo. Jayme, ao invés de pegar seu filho no colo, estava com uma espécie de cestinho de vime com alças no qual o menino foi transportado para sua casa. No cartório, sem a presença da mãe, Jayme registrou o menino, acatando o nome com o qual ele fora chamado no hospital: Billy da Conceição Maria. O pai invertera a ordem dos sobrenomes na certidão: da Conceição era o seu, enquanto Maria era o sobrenome de Inês.

Logo na chegada do bebê a sua casa, uma babá já o esperava na soleira da porta com um sorriso de ternura nos lábios. Inês, com semblante debilitado, precipitou-se à entrada de casa. Nesse desespero, quase empurrou a babá, caso ela mesma não tivesse a espontaneidade em abrir passagem. Jayme cumprimentou Leocádia com um aperto de mão e imediatamente entregou o cestinho de vime com o bebê enrolado num cobertorzinho surrado e já puído. Leocádia retirou Billy do cesto, levantando-o pelas axilas com as duas mãos e, sorrindo, colocou-o nos braços. Girando o corpo vagarosamente de um lado para o outro, embalou o bebê com uma canção de ninar. Billy não chorava. Apenas mantinha um silêncio desinteressado. Os olhinhos abertos que olhavam para tudo menos para o rosto de quem o segurava, fechou relaxadamente ao ritmo da musiquinha cantarolada. Jayme improvisara um bercinho, combinando sua confecção com um carpinteiro local, e o instalou no quartinho dos fundos reservado à Leocádia.

A babá levou o bebê para o seu quarto e depois foi à cozinha preparar a mamadeira de Billy. Ao tentar amamentá-lo, Billy simplesmente permanecera indiferente. Leocádia fez de tudo para fazer o menino se alimentar. Tudo em vão. Mesmo depois de muito tempo sem comer, Billy se manteve alheio à fome, não demonstrando nenhuma reação. Já preocupada com a situação, quase levando o bebê ao hospital para que se alimentasse à base de soro e de outros procedimentos invasivos, Leocádia lembrou-se que ainda deveria ter leite no peito. A babá havia perdido um filho há pouquíssimo tempo e, por causa disso, ainda deveria produzir leite.

Ela pegou Billy no colo, colocou discretamente o mamilo para fora da blusa, e sussurrou uma música pertinho do ouvido do menino. Enquanto isso, Leocádia encostou de leve o biquinho do peito nos lábios de Billy. Nem um minuto depois, como num passe de mágica, o menino puxou o suculento mamilo com a boquinha e iniciou a sucção. A babá ficou maravilhada. Billy mamou o suficiente. No final, o que era apenas um leve espasmo, Leocádia entendeu como um belo sorriso. Daí em diante, a babá o alimentava várias vezes ao dia com seu próprio leite. Seu leite aumentara com tanta fartura e encorpara de tal maneira que até Leocádia se surpreendeu com a sublime maternidade, uma maternidade de coração.

Com a sucessão dos meses, Inês foi se acostumando com a presença daquele “intruso”. Nunca oferecera os seios para dar-lhe de mamar, mas, vez ou outra, já ajudava Leocádia na troca das fraldas. Arriscava mexer em suas mãozinhas, ensaiava um beijo em sua testa, forçava-se para brincar com o menino. Logo depois, corria para seu quarto, cobria-se com os lençóis até a cabeça e de lá Inês não saía até o raiar do dia seguinte. Sempre que saía para o trabalho ou chegava em casa, Jayme repetia o ritual de beijar rapidamente a esposa, tocar os cabelinhos do filho com a ponta dos dedos e falar superficialmente com a babá, perguntando-lhe o que faltava de mantimentos para que ele pudesse comprar.

Inês e Jayme estavam planejando ter filhos. Apesar das inúmeras tentativas para engravidar, todas foram frustradas. Por haver muito amor e desejo, continuaram com o método natural, mas se aventuraram pelos artifícios da ciência. Os dois se submeteram a diversos tratamentos de fertilidade, também fracassados. Mesmo não sendo desenganada pelos médicos, Inês muito se entristeceu por se considerar estéril. Um dia, em plenas férias de verão, o casal alugou uma casinha à beira mar para que se reconciliassem com a beleza da vida e se desfizessem do pesado fardo da impossibilidade de ter filhos que há muito carregava nas costas.

Na fatalidade de uma manhã chuvosa, Jayme havia levado o molinete e um barquinho para pescar enquanto Inês ficara em casa se distraindo com artesanatos e decorações. Ao ouvir uma movimentação estranha seguida de um barulho alto no alpendre da entrada, Inês saiu para saber o que estava acontecendo. Ao abrir a porta, dois homens vestidos com andrajos, homens rudes, brutamontes, visivelmente embriagados, dominaram-na e a usaram como objeto sexual. Inês resistiu bravamente, mas sozinha nada pôde fazer contra a tortura do estupro. Quando Jayme voltou para casa, apavorou-se com a cena que se descortinara diante dos seus olhos. Jogou no chão os peixes que ostentava com orgulho e correu para socorrer sua mulher que, coberta de feridas e hematomas, encontrava-se nua e desmaiada no piso frio da sala.

Mesmo com todo cuidado e atenção do marido, Inês nunca se recuperou emocionalmente. E para abater ainda mais o casal já sucumbido pela tragédia, Inês descobriu que engravidara do agressor. A notícia abalara a já frágil configuração do matrimônio. A primeira opção foi pelo aborto. Jayme não podia admitir aquele destino macabro. Tentaram tanto ter filhos, para que sua mulher engravidasse logo num ato de violência sexual. Ficara inconsolável. Sentia-se vítima de uma poder maligno e passara a odiar o mundo. Jayme teve um momento que culpava Inês, acreditando que ela preferira engravidar de homens monstruosos em vez do seu próprio marido. Já não controlavam mais as imaginações absurdas que lhe corroíam a alma.

Depois de um luto mal resolvido, eles optaram, meio que sem vontade, que a gravidez fosse mantida. Mesmo sob a ameaça do destino catastrófico reservado para essa criança, seguiram o fluxo. O que Inês não sabia era que o sumiço misterioso de Jayme enquanto estava em trabalho de parto escondia uma verdade inimaginável. Quando o recém-nascido foi entregue à mãe, e ela recusou segurá-lo, a criança foi levada ao berçário para receber os primeiros cuidados médicos. Como Inês mergulhara numa depressão pós-parto, sofrendo sucessivas crises nervosas, os plantonistas se ocuparam mais dela do que da criança. Por causa de complicações renais, o filho do casal falecera. Antes que o registro do óbito fosse feito, Jayme entrou clandestinamente no berçário e trocou os bebês. O único menino que nascera na mesma data era o filho de uma mulher chamada Leocádia.

Jayme achava que seu desejo mórbido de abortar o fruto do estupro - mas de uma inocente criança que viria ao mundo como outra qualquer - foi o que causou a morte do bebê de Inês. Para se reconciliar com a paternidade, achou que trocar o bebê morto por outro saudável tiraria a culpa de seus ombros. Quis exorcizar o fantasma do filho ilegítimo, mas permanecera indiferente com o outro bebê, que não era seu, muito menos filho de sua mulher.

Por causa da saúde delicada de Inês, ela permaneceu por longas semanas internada. Já a pobre Leocádia, que já havia se recuperado do parto, recebera alta com a triste notícia de que seu filho havia morrido. Após um mês de resguardo, ofereceram-lhe uma proposta de emprego. Não teve ideia como souberam, mas desde que perdera seu filho, seu maior sonho era cuidar de algum bebê recém-nascido, que pudesse substituir o seu filho morto. Logo, Leocádia, que não era casada e não sabia o paradeiro do pai de seu filho, aceitou se mudar para a casa de Jayme e Inês, tornando-se babá do pequeno Billy.

Atormentado pela farsa, Jayme contou à mulher sobre o que havia feito. Contrariamente às expectativas, com a revelação do marido, Inês sentiu um alívio, como se tivesse se libertado de algum mal que a oprimia. Ficou mais corada, adquiriu vigor. Dirigiu-se ao quartinho de Leocádia, abraçou-a e beijou Billy na bochecha numa demonstração de afetividade como jamais havia demonstrado.

Ao conversar em particular com Jayme, orientou-o a fazer o que ele também já tinha em mente: devolver a criança à mãe verdadeira. Argumentou que o amor que Leocádia devotava ao pequeno Billy era algo tão extraordinário e maravilhoso que ela, inconscientemente, já deveria saber que só podia ser a mãe legítima do menino. Inês e Jayme combinaram um dia para contar a verdade a Leocádia. Quando disseram tudo àquela mulher, seus olhos se encheram de lágrimas. Eles só imploraram que ela não contasse à polícia sobre o crime cometido. Leocádia se agarrou ao pequeno Billy em prantos e o abraçou demoradamente.

Enquanto Jayme pediu para que ela guardasse segredo, Leocádia continuou vivendo no quartinho e criando o seu filho com um modesto salário que seus ex-patrões lhe davam. Com o passar do tempo, Jayme não suportou mais o peso, que só aumentava, do crime que cometera e se entregou à polícia. A partir daí, com a revelação pública da verdade, Leocádia voltou para sua antiga casinha, anulou a certidão de nascimento de Billy e o registrou com o nome de João Avellar Ribeiro Neto, o nome do seu finado pai, avô de Billy, agora João.

O pequeno João cresceu num lar recheado de amor e ternura. Tornou-se um homem honrado e um pai de família dedicado. Antes do nascimento de sua primeira filha, Leocádia falecera. Mas João nunca esquecera os ensinamentos e o carinho daquela mãe que, do coração, revelou os laços de sangue. Colocou em sua filha o nome dela e essa nova Leocádia a homenageou com a herança de ser também uma grande mulher.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

*

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Devastação: Uma Família.






Devastação: Uma Família.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Enquanto a mãe assistia à novela esparramada no sofá da sala, Samanta entrou sorrateiramente. Amarrou a blusinha na altura do umbigo, maquiou-se, colocou uma saia rodada abaixo da cintura encontrada no armário da mãe - que, de tão grande, arrastava no chão -, pôs um avental, a fralda descartável do seu irmãozinho recém-nascido na cabeça e se sacolejou freneticamente diante da TV.

Haidê, perante a cena que julgou extravagante, levantou-se com fúria, agarrou a filha pelo braço, deixando-lhe marcas vermelhas pela pressão dos dedos na pele branca, e, com o dedo em riste, ordenou que se limpasse, voltasse para seu quarto e que de lá não saísse até o término de sua novela. A menina, confusa, engoliu o choro que lhe fustigava os olhos, franziu o cenho, expressando uma leve agonia e se retirou. Ainda ouvindo algo que interpretou como um soluço baixinho, Haidê berrou da sala para que Samanta parasse imediatamente de soluçar, ameaçando ir até seu quarto lhe dar uma surra com o cinto do seu pai.

Afrânio, pai de Samanta, apareceu na sala com ares de tensão e pediu calma à mulher. Disse que não compreendia o incômodo que a filha lhe causava. Queixou-se dos maus-tratos dispensados à menina de apenas sete anos. Haidê, endereçando ao marido um olhar severo, comentou que apenas a protegia do mundo machista. Afirmou que não aceitava que Samanta fosse vista pelos vizinhos como desfrutável e oferecida. E ainda condenou a educação que Afrânio dava à filha, exigindo que ele não fosse permissivo para não fazer de Samanta uma potencial prostituta. O pai acatou as cobranças de Haidê, esfregou a toalhinha em seu rosto, enxugando-o por causa da barba que acabara de fazer. Voltou ao banheiro, arrumou a bagunça criada pelos asseios noturnos e se sentou ao lado da mulher no sofá, aconchegando-se.

Quando a novela acabou, Haidê se retirou em direção ao quarto de casal. Amamentou o pequeno Lucas, colocando-o em seguida para arrotar. Embalou o bebê, balbuciando uma canção de ninar e, carinhosamente o devolveu ao berço. Foi ao banheiro do quarto, tomou um banho demorado, pôs o pijama e foi se deitar, chamando o marido para ir dormir também. Afrânio permaneceu por mais algum tempo sentado no sofá, remoendo alguns pensamentos que insistiam em não abandoná-lo. Antes de ir se deitar, desviou o percurso, indo antes ao quarto da filha. Já estava com a luz apagada.

O pai abriu a porta que estava encostada, caminhou silenciosamente para não acordar Samanta, ajeitou-lhe os lençóis e lhe beijou a testa ao se certificar que os olhinhos da filha permaneciam fechados. Após Afrânio ter saído e encostado a porta novamente, Samanta abriu os olhos, acendeu a luz fraquinha do abajur, sentou-se - apoiando as costas no encosto da cama -, e deixou que uma lágrima escorresse até os lábios, ainda com um restinho de batom.

Aos quatorze anos, Samanta sonhava com a magia de uma grande feste de debutante. Haidê havia lhe prometido alugar um salão, contratar um buffet especial e confeccionar um belo vestidinho rosa para que ela flutuasse durante a valsa. Às vésperas de completar quinze anos, Samanta já tinha distribuído a maioria dos convites para uma quantidade seleta de convidados, quando seu pai a chamou para que conversassem no canto da sala. Afrânio, com certa dificuldade para se expressar, numa desconfortável gagueira e transpiração desagradável - afrouxando o colarinho com frequência para melhor deglutir o excesso de saliva -, comunicou à filha que a renda doméstica não fora suficiente para arcar com as despesas da festa. Os olhos da filha umedeceram, deixando que algumas gotinhas transbordassem.

As lágrimas escorregaram para as maçãs do rosto, depositando-se no queixo, para que, concluindo a jornada, caíssem no granito desbotado. O dia do seu aniversário foi um dia normal, como outro qualquer. Apenas à noite, quando foi à cozinha comer biscoitos e tomar um copo de leite, viu que a mesa estava posta. Havia uma toalhinha simples, uma garrafa de refrigerante, alguns copos, manteiga e pão. Avistou aquilo tudo com certa frustração. Quando já estava de saída, a mãe entrou com um bolinho e velas acesas, formando o número quinze. Samanta forçou a saída, tentando se desvencilhar da mãe, mas Haidê a segurou e a faz se sentar à mesa. Seu pai apareceu na cozinha com Lucas, já com sete anos no colo, batendo palmas e cantando parabéns.

Logo depois da cantoria, Haidê tirou as velinhas e, munindo-se de uma espátula, cortou a primeira fatia do bolo e a deu para Lucas. Em seguida ofereceu a segunda fatia para Afrânio. Cortou a terceira fatia, sentou-se e começou a comer. Samanta se virou para a mãe e, emburrada, perguntou se ela não a serviria. Haidê fulminou a filha com o olhar e disse que ela a criou saudável, com pés e mãos no lugar. Argumentou que por causa disso, a filha poderia muito bem cortar a própria fatia de bolo. Impulsionando o corpo com as pernas, Samanta arrastou a cadeira no chão, fazendo um barulho estridente, levantou-se com violência e foi para o quarto sem dizer nenhuma palavra.

Haidê olhou para Afrânio, apontou em direção à porta da cozinha, balançou a faquinha do bolo no alto, com o braço esticado, e vociferou aos quatro ventos o ódio que sentia daquela filha ingrata e desnaturada. Quase dois meses depois do seu aniversário de quinze anos, Lucas completou oito. Seis pais, satisfeitos com aquela data especial, cobriram o filho de mimos e presentes. Ao entardecer, vários convidados apareceram. Bexigas de gás coloridas enfeitavam a sala. Salgadinhos diversos, cachorros quentes, pipocas e refrigerantes eram ofertados aos convidados com entusiasmo. Samanta, revoltada, trancou-se em seu quarto e de lá só saiu quando o último convidado se despediu.

Quando estava com dezenove anos, Samanta se preparava para se mudar da casa dos pais. Inscreveu-se para uma faculdade rural, distante dali. Estudou muito, passou no vestibular e se matriculou no curso de veterinária. Como sempre fora uma aluna exemplar, juntou um dinheirinho com as aulas particulares que ela dava a seus colegas. Nunca contou aos seus pais sobre essa atividade que exerceu ao longo de três anos, temendo ser duramente reprimida, principalmente pela mãe. Seu pai a ajudara a escolher o apartamento, comprometendo-se a contribuir com o dinheiro do aluguel. Mas, aprendendo a não confiar nas promessas feitas por seus pais, tratou de se antecipar e arranjou um emprego para cuidar das crianças numa pequena escola da região para a qual se mudaria.

No dia em que arrumava suas bagagens, deixou em cima da cama, esticados para passá-los, os melhores vestidos, separando-os das roupas mais simples. Samanta foi à área de serviço buscar um ferro de passar roupas. Quando voltou ao quarto, encontrou seus vestidos rasgados. No exato instante em que visualizou tal aberração, levou a mão ao peito, sobressaltada, e deixou escapar um gemido em desabafo. Ao olhar para o canto do quarto, viu Lucas, já com quase doze anos, abaixado, prendendo o riso de deboche, segurando uma tesoura prateada de cabeleireiro. Inconformada, bufou de ódio e pulou em cima do irmão.

Já com a visão turva pela embriaguez da exaltação, desferiu um tapa no rosto de Lucas e lhe tomou a tesoura. Segurando o instrumento cortante com firmeza, avançou de encontro ao irmão, ameaçando-o de perfurá-lo. Lucas gritou pela mãe. Haidê surgiu rapidamente, impondo com agressividade que Samanta soltasse a tesoura, acusando-a de querer matar seu filhinho. Samanta se virou em direção â mãe, apertou mais o cabo da tesoura e, resistindo aos protestos da mãe, inclusive se alimentando deles, saltou, segurando a tesoura com o braço para o alto. Quando a filha chegou com o objeto pontiagudo perto do pescoço da mãe, Haidê a agarrou pelo pulso. Samanta a olhou nos olhos e logo relaxou os dedos com os quais pressionara a tesoura.

A palma de sua mão já apresentava vermelhidão de tanto ter comprimido o instrumento. Ela, instintivamente, deixou que a tesoura caísse no chão. Quando Haidê, contraindo a face, irascível, virou as costas da mão para lhe dar uma bofetada, foi a vez de Samanta segurar a mãe pelo pulso e impedir o golpe. Raivosa por ter sido desafiada, tentou golpeá-la com a outra mão. Novamente Samanta se defendeu. Quando a mãe tentou se esquivar das mãos que lhe apertavam cada vez mais seus pulsos, Samanta a soltou para acertar em cheio, com toda força, um tabefe na face esquerda da mãe. Haidê se curvou, levou a mão à face atingida, endireitou-se e arregalou os olhos, incrédula, em direção à filha. Samanta, raivosa, vomitou todas as palavras que há anos permaneceram entaladas em sua garganta:

- Você nunca me amou. Eu sempre fui maltratada por você. Mas fique sossegada, eu só não te odeio porque você não é digna do meu ódio. Meu pai, aquele banana sem atitude, a merece. Vocês se completam. São um casal detestável: a megera, a serpente e o ratinho débil com o qual se alimenta. Você devora tudo a sua volta. Você só não me destruiu porque eu sou mais forte. Tive coragem, sei me virar sozinha. E vou além: para o meu bem, é necessário que eu decida a minha própria vida. Antes só do que mal acompanhada, ensina o ditado famoso. Deem tudo para a peste do Lucas. Mimado, malcriado. Vocês ainda sofrerão muito nas mãos desse moleque.

Após a última frase, Samanta pegou uma pequena mala com documentos e pertences, girou a maçaneta, abriu a porta e deixou que batesse com violência às suas costas. Foi embora sem se despedir nem olhar para trás. Todos ficaram atônitos, sem reação, e não tentaram impedi-la de sair.

Durante os primeiros meses, Afrânio depositou dinheiro na conta da filha, ajudando-a com as despesas. Após esse período, alegando rombo no orçamento doméstico, cortou gastos desnecessários, incluindo Samanta. Nunca mais recebera um tostão furado. Mas, com os esforços pessoais, sobressaiu-se na faculdade e logo conciliou uma bolsa de pesquisa com o trabalho no colégio que arrumara antes de viajar, além de ter conquistado um estágio remunerado num haras local de puros-sangues. Conseguiu manter o aluguel do imóvel, montando-o do jeito que idealizara.

Mais tarde, considerando-a uma boa moça e pretendendo vender o apartamento, o proprietário combinou uma maneira de que ela adquirisse o imóvel com o suporte de uma financiadora, passando-o então para o seu nome. Somente nas primeiras férias de final de ano, Samanta visitou os seus pais. Mas a tensão naquela casa era tão insuportável que nunca mais voltou.

Fixou residência definitiva na cidade de seu curso universitário. Ao se formar, já estava com emprego garantido para exercer sua profissão no haras no qual estagiou. Abriu também uma clínica em sociedade com um colega. Logo se casaram e tiveram uma filhinha. Sua vida se estabeleceu, cresceu, multiplicou-se. Vivera feliz, apesar de que seus pais e seu irmão jamais lhe fizessem uma única visita.

Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

sábado, 14 de setembro de 2013

Amor Espelhado.







Amor Espelhado.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Sentada na beirada da cama, Leila avaliou o espelho retangular encostado na parede. Meses se passaram e ele ficara lá, jogado de lado. Era o objeto dos seus sonhos. Mandara fazer sob medida. Poucos dias antes daquele desaparecimento, sem que soubesse, estava no auge da felicidade. Queria se ver por inteira, abraçada ao seu amor, diariamente, quando se levantasse pelas manhãs, após as sempre memoráveis noites de sono ao lado de Lipe.

Os dois foram à vidraçaria, escolheram um espelho resistente, porém delicado, que refletisse a imagem com exatidão, sem que engordasse nem emagrecesse. No comprimento, cortaram vinte centímetros além da altura de Leila para que Lipe coubesse atrás, de pé, envolvendo-a com seus longos e afetuosos braços. De largura, um pouco mais de meio metro já seria de bom tamanho. Enquanto Lipe se encarregava de negociar as dimensões ideais com o vidraceiro, Leila foi a uma loja especializada em quadros e combinou que montassem no espelho uma moldura de jacarandá, entalhada, com um detalhe folheado a ouro. Era tudo o que ela mais queria.

Depois que a preparação foi concluída, levaram a estimada peça, com cuidado, para casa. Para que o espelho fosse colocado com segurança, precisava de uma armação apropriada. Na véspera do objeto de desejo ser colocado em seu devido lugar, Leila soube, por uma antiga amiga, que Lipe se acidentara numa autoestrada, bem próximo ao seu trabalho. O acidente que o vitimou fora fatal. Leila não deu nenhuma resposta à amiga. Permaneceu por alguns segundos, estática, segurando o fone enquanto a outra a chamava pelo nome em vão do outro lado da linha. Com os olhos fixos no nada, foi se encolhendo na cama. Suas mãos se abriram vagarosamente até que o fone escorregasse pelos seus dedos e batesse mudo, no carpete do quarto.

À noite, após o triste episódio, Leila se deitou no vazio. A falta de Lipe derrubara uma lágrima dos olhos da mulher que se recusava a olhar para a realidade. Por quase uma semana, ela não saiu da cama. Abandonou-se à sombra deixada pela ausência do amado. Antes, pés e mãos reprimidos, corpo tenso, deitada de lado, quase na posição fetal, manteve-se em silêncio absoluto, com olhos bem abertos, sem conciliar o sono. Depois, entregando-se à tontura cruel, foi ajeitando-se para o meio da cama até adormecer no lado de Lipe, ainda aquecido pelos fantasmas da falta que a perseguiam.

Naquele dia, pôs finalmente o espelho na parede. Com um vestido preto, longo, de gola canoa, tecido fino que Lipe a presenteara no primeiro ano do matrimônio, Leila a contemplou em frente ao espelho. Deixou por algum tempo seus cabelos presos, com apenas algumas mechas flutuando em liberdade, até soltá-los totalmente. Quase não conseguiu vê-la. Seus olhos, teimosamente, deslizaram-se para os vinte centímetros que celebravam a crueldade de um sumiço irreparável. As cortinas da janela, entreabertas, balançavam pela fresta de vento. Olhou para as finas alças que deixavam seus ombros desnudos e abaixou uma a uma até que as alças escorregassem por toda a extensão dos seus braços. Sem as tiras de pano que o sustentavam no corpo de Leila, o vestido desceu até cair embolado sobre seus pés.

A palidez e a magreza não eram defeito da superfície espelhada. O objeto dos sonhos transmitira a mais perfeita imagem. Mas agora, enegrecido pela saudade, Leila observava apenas o seu desamparo. Deu um passo para trás, dobrou os cotovelos às costas, e desprendeu o sutiã. Retirou suas alças e o arremessou à cesta de roupas esquecidas. Seus seios de boa proporção e bem delineados perderam a densidade. Sentia-os somente ao serem apalpados pelas fervorosas mãos de Lipe. Envolvia-os por completo até enrijecerem pelo calor erótico. Sem suas mãos, esmoreciam, perdendo a vitalidade e o frescor.

Leila levou o dedo indicador à boca e o umedeceu com a língua. Em movimento circular, suavemente, acariciou os mamilos. Soltou um gemido, em homenagem ao prazer perdido. Depois, levantou os seios e espalmou as costelas proeminentes. Deu um passo à frente e se desvencilhou da calcinha rendada vinda de um passado que ela resistia em recordar. Nesse instante, sentiu uma mão masculina separando suas pernas e tocando seus pelos pubianos. Um esgar de excitação crispou seus dedos sobre a mão do homem à altura do seu sexo. Instintivamente fechou os olhos. Era Lipe. Visualizou todos os detalhes daquele corpo amado. Entregou-se ao prazer. Os vinte centímetros se preencheram com beijos e tremores.

Ao abrir os olhos, não se sentiu só. O espelho continuou encostado na parede, fora do lugar, virado ao contrário. Leila esticou um dos braços para sentir Lipe, mas tocara nos lençóis amassados. Mas o calor do seu corpo não deixara sua cama. Uma força incontrolável a fez se jogar de bruços sobre o lado quente do amado. A ausência de Lipe não mais o apresentava no íntimo de Leila. Era sua presença indelével, pegadas sublimes do amor, que se ausentara de dentro daquela casa para viver no eterno abismo de sua alma.

*

Conto escrito por Alex Azevedo Dias.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Brincando com Fogo.








Brincando com fogo.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Riscou um fósforo. O aroma das tábuas o fascinava. Curvou-se em reverência. A falta de luz chegara num bom momento. Já há algum tempo observava, pelo olho mágico, a movimentação da mudança. Sua porta quase toda comida por cupins dava um toque contraditório aos riquíssimos móveis que saíam do apartamento vizinho. Os moradores de frente encaixotavam seus pertences para levá-los à nova residência. Inúmeras caixas de papelão o tiravam do sério com frequência.

Os entendidos diziam que Osmar tinha fetiche por celulose. Mas ele negava tais afirmações. Afinal, os livros não lhe causavam tanta atração. Pelos móveis, tinha verdadeira adoração. Outros, talvez com menos conhecimento do assunto, insistiam em dizer que Osmar era piromaníaco. Ele odiava essa palavra. Não tinha instinto incendiário. O que o satisfazia mesmo eram os estalos da madeira retorcendo pelo fogo. Elementos naturalmente inflamáveis não lhe interessavam.

Combustíveis em geral não possuíam a menor graça. Não que fosse um protetor das plantinhas indefesas, mas muito lhe doía a mortandade dos vegetais. Não admitia que tantas árvores fossem derrubadas, florestas devastadas, desmatamentos a torto e a direito, tudo isso para melhor reconfortar a preguiçosa humanidade. Osmar não se sentia um compulsivo. Não gostava de queimar as coisas sem justa causa. Só queimava celulose. Ele não matava as árvores, apenas botava fogo no que já estava morto.

Ateava fogo aos cadáveres das pobres plantas, usadas para servir as donas de casa - verdadeiras assassinas. O cheiro da madeira, principalmente as maciças, inebriava Osmar. Detestava compensado - madeira moída e prensada. Não queimava compensados, apenas os levava para sua casinha de campo e os enterrava no quintal para que apodrecessem. Ele não resistia à fragrância celulósica. Nas artes plásticas, amava a natureza morta não pela pintura na tela, mas pelas madeiras que emolduram a maioria dos quadros.

Quando sua mãe bateu as botas, Osmar tentou de tudo para sepultá-la com a dignidade que merecia. Pesquisou a madeira que seria a mais indicada para o caixão de uma senhora ilustre. Ficou entre o cedro e a cerejeira. Mas, por ironia do destino, sua mãe chegara ao velório num caixão de plástico. O argumento dado, foi que o tal plástico era ecologicamente correto, feito de uma resina fibrosa extraída das cascas de coníferas. Osmar estremeceu. Ficou perplexo. Soltou um berro estridente, saiu desembestado do recinto e reapareceu com uma tocha acesa. Os convidados, em desespero, amontoaram-se para fugirem do órfão insano que ameaçava a todos com chamas.

Num átimo de loucura, Osmar sacudiu a tocha até formar uma circunferência incandescente. Depois, foi queimando as coroas de flores e as pétalas de rosa até que o fogo se espalhasse e atingisse o caixão da mãe. O velório se transformou num crematório antecipado. Foi preciso que os bombeiros fossem chamados para conter as chamas. O caos se instalou. Nada restou da mãe. Osmar ficara por algum tempo internado no hospício. Após a alta, foi morar na antiga residência da mãe e, desde então, só colocava fogo em pequenas tábuas, armários, escrivaninhas e alguns caixotes. Tudo isso em sua casinha de veraneio. Jamais fora visto queimando nada no condomínio de sua mãe.

Mas naquele dia, não resistiu à tanta oferta de madeira no corredor do seu andar. Durante a madrugada, na calada da noite, Osmar saiu de casa com querosene e uma caixinha de fósforos. O breu engolira todos os objetos. Ao primeiro passo, as luzes de emergência acendeu. Mas nem um minuto depois, apagaram-se. Tudo ficara novamente na escuridão. Osmar sentiu que tivera sorte, pois assim passaria despercebido conforme planejara. Despejou várias garrafas de querosene naquela madeira toda dando sopa. Deu um passo para trás e riscou o fósforo.

Curvou-se solenemente e, num peteleco, atirou o fósforo aceso em cima da madeira embebida em material comburente. Um clarão repentino, que sucedeu a uma leve explosão, lambeu o corredor por inteiro. Já com a pele rachando e borbulhando pelo calor excessivo, Osmar dera a última gargalhada, uma gargalhada fantasmagórica que ficara agarrada às paredes do prédio como a fuligem do carbono.

Ao amanhecer, Osmar se levantou assustado. Tivera um pesadelo tenebroso. Amava tacar fogo em celulose, mas há muito tempo não cometia tais insanidades pirotécnicas. Estranhou ter acordado todo ensopado. Os lençóis estavam empapados por um líquido amarelado e de odor insuportável.

Não realizara seus supostos impulsos incendiários, mas também não escapara da punição dos deuses. Estava deitado sobre sua urina fétida. Pelo menos, molhado e humilhado, comprovara o ditado dos seus avós sobre os perigos de brincar com fogo.

*
Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A Despedida.









A Despedida.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

O maquinista apitara mais uma vez. Seria a última oportunidade de adeus antes do embarque. O alvoroço se intensificou na estação de Keleti, em Budapeste. Acenos, lágrimas, sorrisos, despedidas, um vozerio sem fim. Enquanto Edit enlaçou István com um abraço aflito e cheio de saudade, seus dois filhos se enroscaram em suas pernas, chorando copiosamente, e imploraram para que o pai não partisse.

István, contendo-se, ainda derramou algumas lágrimas antes de respirar fundo, abaixar para pegar suas malas, sorrir confiante e se virar para embarcar. Ao subir a escadinha da locomotiva, foi severamente revistado. Após a constrangedora inspeção, entregou o bilhete para o fiscal que, por sua vez, indicou-lhe o seu assento. Em seguida, ajeitou suas malas para que coubessem no bagageiro e se acomodou ao lado da janela.

Pegou um lenço do bolso para desembaçar o vidro. O frio lá de fora contrastava com o ar quente inalado e expelido pelos passageiros. Uma espessa fumaça branca, em abundância, matizou o azul do céu. O gigante de ferro se pôs a trilhar seu caminho. István tentou esconder a emoção ao ver seus filhos correndo atrás do trem.

Sua esposa, cada vez menor pela distância, com uma das mãos no rosto, disfarçando o inchaço dos olhos e a vermelhidão do nariz, apenas acenava ao longe e gritava os nomes dos filhos para que voltassem. Visivelmente abatido, István ergueu a mão e mexeu os dedos, como se apenas os abrisse e os fechasse timidamente. Tal gesto jamais seria percebido por quem fosse que estivesse do outro lado da janela.

Seu peito apertava quanto mais se afastava. Vislumbrava melhores condições na Inglaterra. A guerra já consumira a maior parte do continente europeu. Ser cidadão húngaro só levava ao pior. Invasões após invasões. Dominações após dominações.

Como se já não bastasse perder sua língua materna para o império austríaco em outras épocas, agora corria o risco de perder sua própria família para o nacional-socialismo alemão. Estava obstinado em não permitir tamanha tragédia. Embora não fosse judeu, já havia perdido amizades valiosas para o obsceno antissemitismo. Nada pôde fazer para salvá-las, mas estava em suas mãos dar uma vida mais digna à sua família.

As condições eram péssimas até para os não-judeus. Tudo ia de mal a pior. Ouvira que na Inglaterra ainda havia algo de próspero naqueles tempos malditos. Sabia que algumas personalidades, inclusive as perseguidas, de diferentes nações, encontraram asilo político e econômico por lá. Deixaria sua esposa e filhos apenas por algumas semanas, pelo menos até descobrir uma maneira de se estabelecer financeiramente. Mandaria dinheiro antes de voltar para buscá-los.

Eles não passariam por necessidades por algum tempo. Havia uma boa economia que juntara debaixo do colchão, dinheiro vivo. Não acreditava nos banqueiros. O trabalho no setor agrícola, antes que a crise despencasse de vez, tinha lhe rendido alguma coisa. Esse dinheiro seria suficiente até o seu regresso. Seus conhecidos também não os deixariam passar fome durante sua ausência.

Enquanto István pensava em todas as suas responsabilidades, o trem parou numa estação desconhecida. Oficiais da SS entraram batendo com força seus coturnos no chão, como se marcassem território. Um deles arrancou um sujeito de um assento aos murros e pontapés.

Alguém cochichou ao fundo que judeus viajavam clandestinamente, com identidades falsas. Depois daquele, outro também foi jogado do trem com violência, maltratado, pisoteado, assassinado na frente de todos. Quando os soldados apanharam o terceiro, István, movido pelo remorso de nada ter feito para proteger seus amigos judeus, levantou-se, saltou no pescoço de um oficial, agarrou-o pela farda e lhe desferiu um soco na cara.

O companheiro do oficial do serviço secreto, sem que a origem de István importasse, sacou a pistola e disparou, acertando, com precisão cirúrgica, a testa do húngaro. Os demais passageiros, menos indiferentes do que apáticos, mantiveram-se em seus assentos.

Um dos soldados agarrou o corpo de István com desdém, cuspiu em seu rosto e o jogou no trilho, deixando que o gigante de ferro terminasse o serviço - desfigurasse-o, tornando-o irreconhecível. Após identificarem o terceiro judeu, os oficiais se retiraram, levando-os para um gabinete anexo à estação.

O trem seguiu viajem como se tudo aquilo jamais tivesse acontecido. Semanas e meses se passaram sem que Edit e seus dois filhos tivessem notícias de István. Seus parentes a tranquilizavam, dizendo que os correios extraviavam muitas correspondências em época de guerra e que em breve ele estaria de volta.

Mas após dois anos sem que nada soubesse do marido e passando por terríveis necessidades, Edit cedeu aos galanteios de Moritz, um oficial alemão. Um ano depois, ela e os filhos se mudaram para uma agradável casinha no interior de Berlim. Moritz cuidava dos filhos de Edit como se fossem seus. Com os cuidados do oficial da SS, a família jamais passou por mais nenhum aperto.

Moritz prometera encontrar István. Mas, depois de muito tempo sem nenhuma pista do seu paradeiro, nem mais no nome dele a nova família alemã tocara. István fora esquecido para que a vida retomasse seu curso normal. Com o atencioso mantenedor alemão e uma nova casa em outro país, Edit reencontrou a paz indispensável para recomeçar ao lado dos filhos.


Conto Escrito por Alex Azevedo Dias.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Um Doce Encontro.


















Um Doce Encontro.
autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Diariamente, ao entardecer, ela passava pela calçada de mosaicos tortos. Artistas anônimos, mestres calceteiros, desenharam ondulações com as irregulares pedrinhas portuguesas. Talvez a maioria deles já não mais exista, mas deixaram suas marcas nas calçadas brasileiras, herdeiras que são da última flor do Lácio. Das ondas do mar de Copacabana às partituras de Noel Rosa em Vila Isabel. O mosaico do calçadão da praia de Icaraí, em Niterói, lembra os naipes das cartas de baralho, muito semelhante às calçadas lisboetas.

Pontualmente, às seis horas da tarde, aquela jovem cruzava a rua Augusta. Eu a via desde a Praça do Rossio até atravessar o trilho do histórico bonde amarelo da Praça do Comércio. A primeira vez em que a vi, eu contemplava a algazarra dos vendedores ambulantes e artistas de rua da janela do hotel em que estava hospedado. Da multidão homogênea, ela apareceu. Todos os holofotes imaginários a destacaram, enquanto a massa de transeuntes desaparecera por completo de minha vista. Vestido branco, rendado, deixando as coxas à mostra, sapatos de salto-alto, sutiã levemente visível pela alça do vestido que lhe escorregava pelo ombro. De seus cabelos longos e discretamente ondulados à maneira como balançava a cintura e brincava de esconde-esconde, cobrindo e descobrindo as costas e o colo com sua mexida de cabelo, uma saudade do Rio me tocou a alma.

Estava em Portugal a trabalho, Precisava fechar um negócio lucrativo para o restaurante paulista com o qual tinha sociedade. Iguarias lusitanas eram o meu alvo. A rua Augusta, homenagem a D. José I, o Augusto, dentre outros tipos de comércios, tem um mercado gastronômico de primeiríssima qualidade. Além da formalidade dos cafés, com suas mesas distribuídas ao longo do calçamento, os artesãos da culinária - populares preciosidades - também, e principalmente, merecem honrarias. A rua Augusta é fechada ao trânsito. Faz lembrar a rua Quinze de Novembro em Curitiba. Escrevo estas linhas daqui, de Portugal. Hoje, não mais à procura dos artistas da boa mesa, mas por outro motivo. Um motivo vital. Motivo que me impulsionou a transferir residência de São Paulo para a terrinha dos alfacinhas lusitanos.

Não sei se os lisboetas ainda consomem tanto alface, mas na época da invasão moura, talvez esse fosse um dos únicos alimentos do povo de Lisboa. Por isso o tal título pejorativo que perdura até hoje dos cidadãos lisboetas: alfacinhas. Tenho saudade da minha terra natal. Tenho saudade do Rio, de São Paulo, de Curitiba... Tenho saudade do Brasil. Mas nenhuma saudade é capaz de me tirar desta cidade. Eu amo uma mulher e amo um país. Gosto de Portugal, mas não é amor. E o meu amor pelo Brasil em nada se compara ao amor pela mulher. O amor pela mulher é mais forte e me impede de voltar para lá, para além mar.

Acho que nunca mais cruzarei a imensidão do Atlântico. Pois o sentimento que tenho pela mulher dos cabelos encaracolados - tão carioca no jeito e tão portuguesa na origem - é mais oceânico do que o mar. Tirando o samba que se ouve em cada esquina, a rua Augusta de Lisboa tem alguma coisa da rua do Ouvidor do meu saudoso Rio de Janeiro. Talvez os bares, a arquitetura, uma certa musicalidade entoada pelos tocadores de harmônica, pessoas se divertindo, comprando, cantando, bebendo, enfim... sendo felizes.

Certa vez, como quem não quer nada, peguei um bondinho turístico bem na hora em que a jovem, que já estava no meu coração sem que soubesse, passaria por lá. Quando a vi chegar à Praça do Comércio, saltei do bonde e me aproximei. Tomei coragem, respirei fundo e ensaiei um cumprimento, uma saudação, um alô de apresentação. Mas recuei envergonhado. Levava uma sacola com pasteizinhos de nata e alguns folhetos informativos sobre o folclore gastronômico da cidade. Eu me sentia mal vestido. Peças amarrotadas. Estava suado pelo tempo de andança pelas ruas de Lisboa. Usava uma boina e havia deixado a barba áspera, por fazer, e exibia um bigode cultivado há semanas. Tirando a parte do bigode que, para mim, mesmo forçando a barra, é um símbolo viril de outros tempos, eu me sentia sujo e feio. Com um pé fincado no chão, fiz que ia e que vinha duas vezes, hesitando o primeiro encontro.

Quando eu me dei por mim, lá estava ela, estatelada à minha frente, me olhando espantada. Eu parei, constrangido e a olhei, franzindo as sobrancelhas com ar patético. Ela ficou séria por mais alguns segundos até, incontrolavelmente, cair na gargalhada. Com cara de bobo, para não parecer ainda mais bobo, ri de mim mesmo. Aquela situação vexatória fora o momento mais empolgante pelo qual passei em todo aquele tempo em Portugal. Ela ria de mim. Eu ria com ela. Nosso primeiro contato. Nossa primeira risada juntos. Contrariando minha expectativa em correr com os braços abertos até ela, eu apenas suspendi a boina com a mão direita, cumprimentando-a, e corri para o sentido contrário, sem olhar para trás.

Cheguei ao meu hotel com incontida felicidade. Sempre achei a palavra "radiante" meio afrescalhada, mas tal palavra era a mais apropriada para representar minha alegria: Eu estava radiante, era isso! Mas o sentimento de euforia logo cedeu lugar a certo arrependimento por não ter ficado e conversado com ela. Por dois dias eu não a vi. Nossos horários não coincidiram. Fiz vários contatos importantes com doceiros e confeiteiros, mas o meu coração estava amargo, temendo não mais vê-la.

No terceiro dia sem vê-la, meu coração novamente açucarou. Estava tomando um cafezinho sentado a uma mesa exterior de uma cafeteria local, quando a vi se aproximar e me perguntar se eu gostaria de sua companhia. O rubor esquentou minhas bochechas. Meio afônico, eu a convidei para se sentar. Então, iniciamos nossa primeira de muitas conversas:

- O que foi aquilo na Praça outro dia? - Falou a jovem segurando o riso e tampando a boca com uma das mãos.

- Eu... é... Queria te dar um "oi".

- Só um "oi"?

- Também queria perguntar o seu nome.

- Só o meu nome?

- É... pode ser... Não sei...

- Não fique inibido. Estou brincando com você. Meu nome é Márcia. E o seu?

- Eu me chamo Fael.

- Você não é daqui, né Fael? Você fala como um brasileiro. Você é brasileiro?

- Sim. Sou do Rio. Mas moro em São Paulo. Sou sócio de um restaurante lá.

- Hum... Que interessante. Tenho tanta vontade de conhecer o Rio...

- E por que não vai?

- Porque nunca tive alguém que eu gostasse o suficiente para me fazer companhia e me apresentar a cidade.

Nesse instante, eu apenas sorri, visivelmente envergonhado. Sem saber como agir, coincidentemente, um vendedor de flores passou entre as mesas e me ofereceu uma. Sei que no Rio, comprar uma rosa para a mulher que está com você equivale, pejorativamente, ao chamado "consolo" para mulheres da vida. Mas como eu estava numa cultura diferente, e os vendedores de flores não são maltrapilhos com muitos do Rio, têm postura e elegância, resolvi arriscar. Escolhi uma, paguei e a coloquei entre as mãos, como se a fizesse um galanteio. Márcia sorriu e aceitou o presente.

- Mas que gentil, esse gajo...

- Não vou negar, estou tímido. Me desculpe se eu a ofendi com essa flor.

- Não, não. Muito pelo contrário. Eu a achei linda. Amo flores.

- Que bom, que bom. Bem... é... se quiser... algum dia... eu... é... te levo para conhecer o Brasil. Quer?

- Uauuu! Claro que eu quero. Pensei que você não me convidaria nunca.

- Você fala muito bem o português brasileiro. Tem certeza que nunca foi ao meu país?

- Sim, Nunca fui. Mas amo as músicas e as novelas brasileiras. Eu assisto a todas. Adoro MPB. Caetano. Conhece?

- Claro! Gosto muito também.

- Como não o conheceria, né? Boba que sou. Você deve ser até vizinho dele, né?

- Não, não. Nunca o vi, para falar a verdade.

- O Brasil é muito grande... Fui boba novamente por achar que o seu país é do tamaninho do meu. Portugal cabe na palma da mão.

- Mas é lindo!

- É, isso é sim.

-...

- Posso fazer uma coisa?

- Pode. O quê?

Antes mesmo de perguntar sobre que coisa ela queria fazer, Márcia se levantou, debruçou-se sobra a mesa, pegou o meu rosto com as duas mãos, suavemente, e me deu o mais açucarado beijo na boca. Naquele instante, eu descobri o que procurava em Portugal. Era o doce mais perfeito de todos. Inigualável. Nenhuma iguaria, sofisticada ou popular, chegava aos pés daquele beijo. Eu sentia a língua de Márcia. Sentia seu sabor. Eu nasci para aquele beijo. Meu paladar jamais sentira tamanha formosura. O verdadeiro manjar dos deuses. Estava no Olimpo. Não o Olimpo grego, nem o português, nem o brasileiro, caso existam, mas o Olimpo do amor.

Ela deveria se chamar Dulce, pelo açúcar e não Márcia. Mas eu gostava de Márcia. Amava aquela Márcia. No dia seguinte, ela me levou para conhecer os pontos turísticos de Lisboa. Foi um passeio incrível. Terminamos a noite no meu hotel. Amanhecemos abraçados, amando-nos, nus, um sobre o outro, do lado do outro, misturados. No outro dia, eu liguei para Jonas, o sócio majoritário do restaurante paulista. Disse para ele que de todos os doces que experimentei em Portugal, saboreei um cuja sensação maravilhosa me impedia de voltar. Disse que estava perdidamente hipnotizado por aquele sabor e que não poderia mais voltar para o restaurante no Brasil.

Ele entendeu. Também sentira algo parecido pela mãe de seus filhos. Ele se encantou por um beijo doce assim como eu me encantei pelo sabor da boca de Márcia. Márcia morava com os pais. Com a ajuda da família dela, não foi difícil conseguir o visto de permanência e a cidadania portuguesa. Nos casamos em uma cerimônia simples, porém repleta de cumplicidade e afeto. Passamos a lua de mel no Rio de Janeiro. Ela ficou encantada. Eu a levei aos principais pontos turísticos, além dos menos badalados e mais românticos. Por coincidência, Caetano Veloso fazia uma turnê pelo Rio naquela ocasião. Márcia ficou deslumbrada. Fomos ao show e seu encantamento se completou. Depois de uma semana e meia de amor melífluo, voltamos a nossa querida terrinha portuguesa.

Em frente a um dos mais belos mosaicos de pedrinhas na calçada da mesma rua em que a conheci, montei um pequeno restaurante especializado em comida brasileira. Márcia me dava ótimos conselhos. Ela virou a minha mulher, a mãe dos meus filhos, uma formidável conselheira gourmet e a responsável por açucarar meu coração.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

*

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Os Amantes.






Toda tarde de segunda-feira, Jonas tinha um compromisso inadiável: dividir a cama com Mirtes. Nos finais de semana, dedicação exclusiva às suas famílias. Não se deixavam dividir nem em pensamento. Viviam para suas famílias, e estas por eles. Passeios, afazeres, atividades e inatividades domésticas. Mas nas noites de domingo para segunda a ansiedade da espera possuía-os por inteiro, sem dó nem piedade.

Mirtes e Jonas, durante a semana, ocupavam-se integralmente com seus respectivos trabalhos. Só nas segundas, à tarde, tinham o único período de folga. Entregavam-se à carne pulsante até a proximidade do anoitecer. Depois se banhavam, arrumavam-se e voltavam para suas casas como se retornassem de uma exaustiva tarde de trabalho. Eles só se conheceram justamente pela coincidência dessa tarde de descanso.

Mirtes era professora universitária de história da arte. Jonas, arquiteto numa empresa de paisagismo e decoração de interiores situada ao lado da universidade em que Mirtes lecionava. Eles se conheceram numa cafeteria muito frequentada por professores e alunos da faculdade de humanas e filosofia.

Quando se viram pela primeira vez, não conseguiram mais desviar o olhar. Flertavam-se à distância, sem a ousadia da aproximação. Numa dessas tardes de segunda-feira, Jonas foi quem tomou coragem para o encontro inaugural. Mirtes estava sozinha sentada a uma retangular mesa com tampo de jacarandá. Jonas apreciava muito aquele cantinho. Era a única mesa da cafeteria de tal qualidade. Não tinha cadeiras. Eram dois bancos rústicos de peroba do campo.

O barista tinha acabado de servir um cappuccino quando Jonas chegou e iniciou uma conversa:

- Não sabia que se interessava também por artes sacras.

Mirtes se virou para Jonas e abriu um sorriso, convidando-o para se sentar ao seu lado. Ele prontamente aceitou e pediu ao barista que lhe levasse um cappuccino igual ao de Mirtes. Eles se apresentaram com um simples aperto de mãos. Ela comentou a abordagem de Jonas:

- Acho louvável a caridade dos franciscanos, mas dos frades capuchinhos eu só curto mesmo o sabor deste café.

Mirtes soltou uma gostosa gargalhada, sem tirar os olhos de Jonas, e voltou a falar:

- Agora sério. Sou historiadora das artes em geral, mas pouco vinculo a história à teologia. Essa parte eu deixo para os meus colegas do Mosteiro São Bento e da PUC.

Interessado – mais nela do que em sua profissão -, Jonas continuou enveredando-se por uma disfarçada indagação sobre a profissão de Mirtes:

- Mas qual tipo de arte você prefere? Medieval, renascentista, moderna ou contemporânea?

- Todas essas me interessam como professora e pesquisadora que sou. Mas na prática da vida real, extramuros universitários, a arte que eu gosto só tem uma.

- E qual é?

- A arte do sexo!

Jonas se assustou com a resposta curta e grossa de Mirtes. Ele ficou por alguns instantes tentando tomar fôlego para assimilar a frase cortante daquela mulher fantástica. De repente, ele a tomou em seus braços e se beijaram com tanta ardência que calafrios se ramificaram dos membros superiores aos inferiores numa euforia decadente e incandescente.

Para evitar os curiosos e os que se ocupavam da vida alheia, eles saíram rapidamente até o carro de Mirtes para se entregarem à paixão em qualquer motel barato de beira de estrada. O contato dos seus corpos suados produziu melodias originais. Contorceram-se voluptuosamente como dois gatos jovens brincando no emaranhado de um novelo de lã. Dentadas, unhadas, salivas e secreções. Amaram-se como adolescentes furiosos e inebriados pela descoberta do sexo.

Só imaginaram o risco que correram ao se agarrarem publicamente, quando os cigarros foram acesos e os corpos nus esfriavam pela descarga de toda a tensão acumulada. Mirtes revelou que era recém-casada. Jonas já estava casado há mais de dez anos. Enquanto Jonas tinha dois filhos, Mirtes não tinha nenhum. A sorte é que aquela cafeteria perto da universidade não era frequentada pelos cônjuges de nenhum dos dois, pois, coincidentemente, tanto a esposa de Jonas quanto o marido de Mirtes odiavam café. Continuaram se encontrando em motéis. Mas procuravam não se repetirem. Cada segunda-feira à tarde os dois iam a um motel diferente. Menos para evitar que levantassem suspeitas do que para a relação não cair num ostracismo - a dolorosa rotina que ambos conheciam muito bem em seus matrimônios.

Após muitos meses conhecendo os mais variados motéis, Jonas sugeriu que tivessem um lugar fixo no qual pudessem se deleitar, não como um casal, mas como amantes que eram. Sob pretexto de montar um escritório particular, Jonas alugou um conjugado. Realmente montou seu escritório, mas nele havia uma divisória sagrada que só era aberta nas segundas à tarde para a folia do amor. Esses encontros transcorreram sob absoluto sigilo e satisfação garantida dos amantes durante quase um ano.

Exatamente numa segunda-feira que completaria um ano de carícias fogosas no conjugado de Jonas, Mirtes não apareceu. Ele ficou apreensivo, procurou-a como pôde, e não teve nenhuma notícia dela. Resolveu ficar quieto e aguardar um telefonema que explicasse sua ausência. Uma semana passou. Outra segunda chegou. Jonas a esperou, mas nem sinal de Mirtes. Embora ansioso e impaciente, Jonas esperou por cinco segundas-feiras sem a menor noção sobre o paradeiro da amante. Na quinta segunda, ele se desesperou. Sabia onde ela morava, mas jamais pensara em tamanha ousadia. Cada um tinha seu santuário inviolável. Eles fizeram um pacto para que nenhum dos dois chegasse nem perto da família do outro.

Mas o sumiço de Mirtes o angustiou tanto que Jonas, cansado de ligar e não obter resposta do único meio de comunicação que tinha com Mirtes - o celular particular dela - não pensou duas vezes e foi até a sua casa. Estava vazia. Levou alguns dias rondando a casa de Mirtes de longe. Estava sempre fechada. Não tinha ninguém por perto. Um dia, avançou o sinal e olhou pela janela. Tudo escuro.

Verificou se a porta estava aberta. Girou a maçaneta e, no mesmo instante, uma voz de homem o fez estremecer:

- Boa tarde, senhor. O senhor veio ver a casa?

- Está à venda?

- Sim. Há duas semanas. Não viu a tabuleta na entrada?

- Não. Mas aqui não morava um casal?

- Não soube o que aconteceu?

- Não.

- Bem... Não gosto de tocar neste assunto para não espantar potenciais compradores. Mas como o senhor, pelo menos é o que parece, não está interessado em comprá-la, eu vou contar. O senhor Conrado, proprietário deste imóvel, encontrou sua esposa morta no banheiro da casa. A moça cortou os pulsos com a lâmina de barbear do marido. Fizeram a autópsia e descobriram que a mulher estava grávida. Era uma gravidez recente, por isso não puderam salvar o feto. O senhor Conrado ficou inconsolável. Amava muito a Mirtes e planejava ter filhos. Uma história muito triste...

Jonas ficou atônito. Tão pálido que o corretor, assustado, ofereceu-lhe ajuda:

- O senhor era amigo da família? Quer um copo com água?

Percebendo que não havia melhora, o corretor pegou o carro e levou Jonas ao hospital. Foi internado em estado grave. Recusava-se a melhorar. Não comia, não bebia. Estava só à base de soro e medicamentos. A esposa e os filhos de Jonas acharam que ele não suportaria. Eles revezavam para acompanhá-lo no hospital. Fizeram vigília e muitas orações para que Jonas se recuperasse. Depois de cerca de dois meses, Jonas, pele e osso, recebeu alta do hospital e voltou para casa.

A primeira coisa que fez foi procurar o corretor que o hospitalizou. Eles conversaram amistosamente por telefone. Soube que a casa de Conrado ainda não tinha sido vendida. Jonas tratou de convencer a família que precisava de novos ares para se recuperar totalmente. Colocou sua casa à venda e fechou o negócio com o corretor. Adquiriu a antiga casa de Mirtes e se mudou para lá com sua mulher e os dois filhos.

Jonas ganhou peso, ficou novamente saudável, corado, e retomou sua vida profissional.
Sua esposa ficou maravilhada com a disposição do marido em se especializar mais na arquitetura. Jonas se tornou professor titular em história da arte, com ênfase em arquitetura medieval e renascentista. A família só nunca entendeu o motivo de Jonas se trancar toda segunda-feira à tarde no banheiro da casa e se balançar sentado no vaso sanitário com as duas mãos na barriga, sem dizer nenhuma palavra.

Sua esposa muito se preocupava com o ritual de Jonas, que poderia ser o início da loucura. Mas Jonas estava tão bem disposto profissionalmente, também como pai e marido, que ela nunca o questionou sobre esse estranho comportamento.

Conto escrito por Alex Azevedo Dias.