Na fila da padaria, ele a viu pela primeira vez depois de muito tempo. Antes de vê-la, seu nome fora ouvido, pronunciado sílaba por sílaba, por aqueles lábios que tanto cobiçara em segredo. Ao sentir a fala macia, não hesitou em se virar de imediato para contemplar a dona da voz que o chamava. Seu nome - dito pela frágil boca delineada por fantasias pueris -, ressoava pela circunferência de seu orifício acústico no doce ritmo do coral de serafins. “Ann-Dréé” - Ela dizia, fazendo biquinho, com seu inconfundível sopro divinal.
Quando se virou para ver se aquele rosto correspondia com os sonhos infantis que ficaram impressos em sua memória afetiva, teve uma grata surpresa. Estava ainda melhor do que antes. Que rosto harmônico! Olhos, boca, nariz, orelhas, todos encaixando simetricamente no contorno daquele rosto em forma do frescor de maças orvalhadas pela manhã.
Ela esboçou um sorriso por ele tê-la reconhecido - afinal, já se passara muitos anos desde a última vez que se viram. Porém, à mínima aproximação do seu rosto ao dele, para tentar beijá-lo - talvez como um mero cumprimento social -, ele recuou constrangido. Não sabia se ela percebera esse pequeno movimento para trás, afastando-se. Estava suado, com a barba por fazer, roupas amassadas, precisando de descanso e de um bom banho para exorcizar as impurezas de um longo dia de trabalho. Aquele homem selvagem, ainda não civilizado pela cama de seu quarto, não poderia infectar a harmonia do rosto de seus sonhos. Uma beleza virginal, intocável, de mulheres não-virgens.
Havia algo que jamais conseguiria assimilar entre o mundano e o que não se toca. Estranha conjunção de opostos. Por que não poderia tocá-la? Contaminá-la com o se suor de homem do mundo? Aparentemente, nenhum sentido se impunha. Mas nas entrelinhas, um sentido repousava à espera de eclodir em grande estilo na cena final. Uma beatitude magnífica encerrava-se naqueles lábios. Sua virgindade residia exatamente na sua história com muitos homens. Talvez fossem seus amores que a santificassem. Sabia que vários homens descansaram sobre seu corpo nu, após os frêmitos e espasmos de uma vibrante noite.
Embora imaginasse insólitos detalhes, não vivenciara um desprezo imaculado pelo que conhecia dela. Passou a desejá-la ainda mais. Sua beleza se incrementara pelos alinhavos tortuosos dos oito anos de diferentes escolhas que os separavam. A riqueza de uma vida complexa deixara-a irradiando encantamentos. Mas ele continuava lá, obstruído pelo recuo diante da possibilidade de receber um beijo, terceiro contato - talvez nem tão íntimo -, no acaso daquele reencontro.
O primeiro contato - pois assim o considerava - fora a ressonância da voz de mulher, chamando os eu nome, enquanto esteve de costas para ela na fila do caixa. O segundo contato, não menos que o primeiro, fora a contemplação daquele rosto de mulher que mais parecia uma pintura renascentista, e a troca de olhares que o penetrou fundo na alma.
Não tinha condições para afirmar que a amava, mas seu infame recuo pôde denunciar que algum afeto atravessou seu corpo durante os fortes impactos da audição e da visão. Não era uma virgem imaculada. Era a mácula que a fazia virgem. Era virgem dele, de seus toques, de seus beijos, mas não de seus pensamentos. Mas naquele instante, quando teve oportunidade, justamente por iniciativa dela em beijá-lo, não foi capaz de tocá-la. Talvez fosse mais conveniente possuí-la
(...)
Percebendo o seu sutil recuo ao tentar formalmente cumprimentá-lo, primeiro achou que se tratasse de uma atitude vaidosa de homem burguês. Depois se lembrou que na faculdade ele era conhecido por seu comportamento anti-social, e que não havia mudado em nada naqueles últimos anos. Mas pouco deu importância a esse fato. Ela não se sentiu rejeitada nem menosprezada em relação àquele homem. Simplesmente não se reduziria à insignificância de um gesto que talvez fosse sinal de timidez. Ela deu de ombros e iniciou um diálogo com ele.
Conversaram a respeito de suas aptidões, escolhas profissionais, além dos vários descaminhos que impedem a união continuada dos amigos e companheiros de jornada. Ela disse que renunciou provisoriamente sua sublime vocação pela arte para favorecer sua formação médica. Ele se ressentiu por um talento perdido, mas sabia que suas virtudes seríamos aplicadas em sua carreira de saúde.
Com muito esforço ele se concentrava naquele diálogo, pois insistentemente a malévola beleza da mulher o invadia, atormentando-o com o desejo que o impossibilitava de tocá-la. Ela agia naturalmente, sendo que tocá-lo ou não, não era uma questão e não fazia a menor diferença. Já ele, ao contrário, não pensava em outra coisa, talvez divinizando de tal maneira aquele momento, que retornava sobre ele como um demônio da paixão, cegando-o.
Enquanto conversavam, nem se deu conta que o caixa já estava registrando seus produtos e contabilizando o valor a ser pago por ele. Não poderia prestar atenção em nada além da tentativa de dar tempo ao tempo para tomar coragem para beijá-la e abraçá-la, pelo menos na despedida.
A funcionária do caixa, após terminar de ensacar suas compras, virou-se para ele e disse o preço. Ele pegou o dinheiro, contou as notas e entregou-lhe o valor anunciado. Num ímpeto, segurou as sacolas com as compras, acenou de longe para sua paixão secreta e foi rapidamente embora. Ela pôde tocá-la. Era intocável - afirmava.
Cada um seguiu para um lado. Ela, pensando sobre sua verve artística deixada para trás em favor da medicina. Ele, não pensava em profissão nem coisa alguma parecida. Em sua mente, apenas o rosto dela ocupava o coração solitário. Um único afeto corroia-lhe a alma: A beleza virginal das mulheres não-virgens. Seu coração não era intocável. Havia sido tocado sem sentir que ela o tocasse.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
10 comentários:
Muito interessante a forma como um simples acontecimento do dia-a-dia, é carregado de tantas emoções...
Quantas vezes queremos fazer algo, ou dizer algo e não o fazemos...Mais tarde ficamos repetindo aquela cena na memória palavra por palavra...
Gostei bastante do texto, apesar de longo - comparando com outros blogs - é leve, simples e bonito, embora traga o paradoxo da vida, o estar entre o divino e o profano, das "putas-virgens". O inusitado, o desconforto, o não dado da vida aparece aí. Abraço.
http://costabbade.blogspot.com/
adorei o seu conto
vc escreve de uma forma muito bonita
e que nos prende a história
tá de parabéns
É UMA SENSUALIDADE MODERNA!
Nossa que maravilha o seu conto eeeein!
o que mais intriga e impressiona e a tal forma como vs escreve!
meeeeeus parabeens viu!
Na travessia das letras tudo é possivel, até o tocar de seu conto...
E a beleza do encontro e do desencontro, das belas virginais, vaginais em seu desejo, são elas o alimento para a poesia, para as estórias, enfim para os dias...
Abraços
Belíssimo conto, não cansa de ler. Me lembra alguns textos antigos meus - bateu uma certa saudade. Parabéns pelo nível intelectual do seu blog!
Aguardo sua visita!
Abraços e boa noite.
nem sempre toque é sexo, cronica muito bem escrita.
http://www.pequenosdeleites.blogspot.com
Como lembrar uma sensualidade sem cair na vulgaridade, entrar no intimo de um ser humano e saber expressar com nitidez cada segundo de emoçoes a flor da pele, sem tirar a beleza de um momento sublime de um flerte platõnico.
a tensão entre os dois...é o ponto alvo do texto que prende e nos faz respirar fundo.
abraço meu amigo !
te vejo no Cronicas !
Teus textos são mto bons, como já havia dito em outro comentário. Interessante o modo como tu escreve, pegando acontecimentos do dia a dia e transformando-os nestes belos textos. Parabéns!
abç
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