terça-feira, 5 de abril de 2011

Estilhaços de Alma














Antero tinha a alma despedaçada. Ainda jovem, espatifou-a no primeiro grito que deu ao ser cutucado por um colega em plena sala de aula. Tentou resistir, mas já era tarde. Sua alma já havia se quebrado em infinitos caquinhos.

Os estilhaços da alma perseguiam Antero como a sombra que fareja seu dono - fiel e inseparável. Às vezes, pela imantação do seu corpo ao caminhar, atraía os caquinhos que, ao retornarem às origens, reagrupavam-se em uma nova sintonia entre si. Quando voltavam, vários formatos surgiam. Podiam parecer um cão, ou uma ovelha ou mesmo uma lagartixa - assim como as nuvens que formam diversas imagens dependendo de quem as olha -, mas nunca se reuniam no formato ideal que se espera de uma alma tipicamente humana.

Sempre que a alma formava outro ser, Antero se comportava de acordo com o que o figurino mandasse. Transformava-se na criatura que a alma indicasse. Seu pior sofrimento foi quando a alma se reordenou no formato de um fixo cabide de plástico. Ficou lá, imóvel, trancado num armário, durante dias, até sua alma esfacelar novamente e persegui-lo como uma poeira espacial. Seus vizinhos ficaram preocupados. Pois demoraram para encontrá-lo.

Uma semana depois, ao vitimarem a porta - que arrombada jazia no chão -, acharam Antero estatelado dentro do seu armário. Chamaram uma ambulância para levá-lo ao hospital, mas nesse ínterim, a alma desmanchou o formato de cabide, caindo como farelos apátridas aos pés de seu dono. No instante em que a ambulância chegou, sua alma virou um protótipo de gaivota, alçando voo para além das neblinas que repousavam à janela do seu quarto, e rumou em direção ao horizonte

Naquele mesmo dia, ele foi encontrado num laguinho perto de sua casa, nadando com a placidez de um marreco selvagem. Resistiu bravamente antes de ceder à fatalidade de sua captura. Amarrado numa camisa de força, Antero foi conduzido ao hospício público. Chegando lá, aplicaram-lhe poderosos sedativos. Quanto mais se debatia, e as asas de marreco nascido na natureza - domesticado a força -, cortavam e sangravam ao rasparem nas grades da maca hospitalar, mais sua alma se esfarinhava, macerada que estava, diminuindo rapidamente até se reduzir a um pozinho imperceptível.

Logo, aquela relutância toda, indolência de alma partida, fora vencida pela eficaz química dos homens. Antero foi readquirindo sua forma humana e teve a violência de sua primitiva voz, apagada. Não mais se debatia nem fazia força para se soltar das cordas que o mantinham deitado no leito. Seu grito rebelde se silenciou. A selvageria se humanizou. Sua insubordinação converteu-se em solicitude.

A situação da alma de Antero estava tão decadente - parecendo uma farinha de vidro moído -, que os médicos tiveram que terceirizar os serviços, contando com a ajuda de um famoso artesão da cidade para recuperar aquela alma. Eles já contabilizando em seus currículos, o fracasso dos religiosos que lá estiveram para beatificarem a alma, em frangalhos, irrecuperável que estava pelas orações e exorcismos.

O artesão, munido de uma cola instantânea, de boa qualidade, e de um cinzel afiado, esculpiu a alma, devolvendo-a ao modelo humano. Alguns pedacinhos, perdidos ao longo dos passos de seu dono, aspirados por narinas alheias, ventilados em dias de tempestades ou espanados por alguma faxineira desatenta, ficaram faltando na obra final. Alguns buraquinhos, pela ausência das partes perdidas, ficariam visíveis caso alguém os olhasse bem de pertinho. Mas nada que afetasse o conjunto total da obra.

Após o término da convalescência, com muito custo, Antero se levantou. Sem o costume de se erguer com as próprias pernas, pelo tempo que ficou sedado no hospital, além de sentir o enorme peso da escultura humana que o fazia se inclinar para trás - o novelo colado que sua alma se tornou -, ele se despediu dos enfermeiros e retomou o rumo de sua vida.

Sua alma nunca mais mudou de formato. Ficou condenada ao mesmo molde, eternamente. Sem ser mais versátil, aquele fardo pesado obstruía a estranheza alheia. Talvez Antero não pudesse controlar sua alma, na época em que ela tinha livre-arbítrio de se transformar no que bem entendesse. Mas era justamente essa autonomia que permitia que ele voasse em seus sonhos. Arrastando-se em sua vida enfadonha e comum, não era mais chamado de louco ou de diabo em forma de gente. Virou um a pessoa normal. Monótona normalidade.

Além de tudo, como sua alma foi colada para que voltasse a ter o formato humano - sabendo que farelo de vidro misturado à cola vira um composto cortante: o cerol -, Antero virou um Rei Midas ao contrário. Golpe final de uma alma ferida e vingativa. Enquanto o tal rei estava condenado a que tudo ao seu redor virasse ouro, com o seu simples toque, inclusive seus sentimentos - engessados numa fria e maciça pedra dourada -, Antero fazia sangrar todos aqueles que ousassem tocá-lo.

E assim, ele seguia sozinho em sua desventura. Antes isolado por assemelhar-se a um louco, agora apartado por causar cortes profundos. Depois de afastado pelo medo de seu espírito liberto, passou a enganar. Visivelmente perfeito, não mais repelia. Atraia pela irresistível beleza esculpida pelo artesão. Mas ao se aproximar dele, ninguém saia ileso. Todos levavam consigo as cicatrizes daquele encontro.

De cães, ovelhas, lagartixas e até cabides, embalagens que continham uma variável e autêntica alma humana, embora não parecesse humano, foi moldado até se tornar homem apenas na aparência, tendo como alma, uma substância cortante e letal.

Violentado e ferido para se humanizar, passou a violentar e ferir os homens. Não poderia ser diferente do que uma bela escultura de cerol.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

7 comentários:

Unknown disse...

profundo, tiraram dele sua autenticidade, isso é terrível, roubaram ele dele mesmo... gostei do post parabéns

Macaco Pipi disse...

AS VEZES NADA SOBRA!!

Luiza Jardim disse...

Não dá para ng se aproximar se não nos aproximamos de nós mesmos.

Obrigada pela visita ao meu blog! E pelo comentário!
Apareça sempre que quiser!

http://ocotidianodecadadia.blogspot.com/

Até.

Wanderson Souza disse...

AS VEZES BADA SOBRA ²²

Desde já eu estou te seguindo. Já cliquei no seu anúncio para dar uma força. Eu acho que tem que ser um hábito de todo blogueiro Clicar os blogs que visitam, pois não custa nada pra quem clica e todo mundo fica feliz.
Desde já, te convido para dá uma passada no meu blog. um abraço e sucesso.
Wanderson Souza
http://comofaizz.blogspot.com/

Anônimo disse...

Quantos Anteros de alma fragmentada não conhecemos por aí?!
A impressão que tenho é de que quando algo se rompe, é impossível uma remontagem perfeita; sempre fica um vão, um espacinho entre os cacos que altera toda a persona.
Almas não deveriam se quebrar, deveriam somente crescer e se tornar mais belas...
Beijo!!!

Vitor disse...

Ok, segue meu ponto de vista, bem ao seu estilo:
Psicose? Esquizofrênico? Quem não tem a alma fragmentada, ao menos no que tange os buracos da falta? Obviamente nem todos são metamorfos, e passam a vida ensimesmados no umbigo. Mas esses sujeitos mutantes, são senhores de si, quando todos à sua volta não o são? De fato, isso está mais no romantismo de quem os vê. Cabide, marreco ou cão, são para si mesmos coisas bem diferentes do que são pro poeta, pro louco e, por que não?, para nós mesmos.
Mas com uma coisa eu faço coro contigo: uma alma engessada, uma alma domesticada, não é alma de verdade. É máquina, que nem a animal se compara, porque até mesmo o cão morde de vez em quando.

Epílogo: dócil mas nem tanto, porque se corta como cerol, se machuca quando toca... bem, ao menos toca e isso já é alguma coisa...

Iguimarães disse...

Sempre gosto de ler seu blog.
Nesse mundo de divulgação são poucas que ficam.
Acho legal sua constante mudança de tema
Parabéns