Bateu à porta. Ninguém a atendeu. Pensou em ir embora. Era a primeira vez que estava ali e, por um instante, pareceu que tal encontro não lhe seria útil. Antes de bater novamente à porta, girou a maçaneta e se surpreendeu por estar destrancada, como um sinal de que sua chegada já era esperada. Após entrar, encostou a porta e se sentou num sofá, estilo rústico, com grandes almofadas. Como a tensão a reprimia, pois sentia que daquele lugar não teria mais volta, não percebeu que se recostasse nas almofadas teria uma confortável sensação de descanso. Permitiu-se apenas passar levemente as mãos no forro do sofá, apalpando a textura do tecido - macia no centro e áspera nas bordas -, como se tateasse o próprio coração que, aflito, palpitava.
Um sombreado se precipitou pela fresta da porta do corredor, e alguém acenou discretamente em sua direção, convidando-a para entrar. Timidamente se deslocou até o local em que o homem a chamava. Entrou em uma sala à meia luz, colocou a bolsa em um pequeno banquinho, cumprimentou o homem sentado numa poltrona no canto da sala e se deitou no divã. Trêmula, tirou um cigarro da carteira, pediu licença e entregou-se ao fumo, tragando ponderadamente as fumaças.
O analista estendeu-lhe um cinzeiro sem dizer nenhuma palavra. Ao ver o objeto ofertado, depositou sem titubear o cigarro - que estava suspenso entre os dois dedos da mão direita -, ainda quase sem fumar, e no cinzeiro amassou a ponta transformada em fuligem contra a superfície de mármore. O filtro dobrou-se sobre sua mão num último arfar suplicante. Ela apertou os braços sobre o peito e suspirou.
(...)
Lena, alguns meses antes, já quase entregue aos dramas pessoais que vinham angustiando-a em escala crescente, vencida pela própria fraqueza, resolveu aceitar a sugestão da amiga de procurar ajuda. Consultou uma lista telefônica, na seção em que profissionais da saúde oferecem seus serviços, buscando somente entre os que se intitulavam psicanalistas, o nome com o qual mais se identificasse. Deslizou o dedo indicador por uma dezena de nomes e, intuitivamente ou pela simples razão de estar com as falanges do dedo queimando, pela rigidez da escolha, repousou-o de forma imperceptível sobre um dos nomes. Quando se deu conta do seu ato inconsciente, suspendeu o dedo e o nome escolhido estava lá, saltando à sua vista: Godofredo - psicanalista.
No primeiro instante em que passou os olhos por aquele nome, teve um impulso de rejeição. Não teve a menor atração pela palavra “Godofredo”. Se fosse uma escolha consciente, jamais teria se identificado com aquele nome. Mas como era muito supersticiosa, acreditou piamente que se o seu dedo havia repousado justamente ali, não seria ao acaso. Alguma força oculta e poderosa forjou a certeira e objetiva escolha de Godofredo.
Hesitava em se apresentar para entrevista com qualquer analista que fosse, mesmo com a insistência de sua amiga que tanto a aconselhara a marcar uma sessão de terapia, utilizando-se como exemplo, falando de sua bem-sucedida experiência com seu analista, de suas conquistas e descobertas. Lena sabia que já não era possível mais viver com os ombros pesados pelos problemas familiares e que o tempo de se consultar com um profissional estava se impondo radicalmente. Mas ainda assim adiava aquele primeiro encontro, reunindo todas as forças que ainda lhe sobravam para resistir.
A questão era que ao ler justo o nome que seu dedo estranhamente apontara - embora tais letrinhas não fossem do seu agrado -, não teve dúvidas de que ele era o escolhido, de que havia chegado o exato momento de ultrapassar suas barreiras, desarmar-se contra o preconceito que tinha de analistas e agendar uma entrevista. Anotou o número do telefone do seu consultório, mas não ligou de imediato. Guardou o número num pedaço de papel dobrado e esperou até a manhã do dia seguinte. No horário que reservou para telefonar, sacou seu aparelho celular da bolsa, junto ao papel dobrado, e digitou os números no teclado com uma rara convicção. Uma voz suave e decidida atendeu do outro lado. Ela falou que achara seu número na lista telefônica e que resolvera ligar para marcar uma consulta. Ele concordou em atendê-la, negociaram pormenores e combinaram um horário para a segunda-feira da outra semana.
(...)
Deitada no divã, com o cigarro mal fumado, espremido no cinzeiro ao seu lado, ofertado pelo analista, cruzou os braços e se manteve
Após dizer o seu nome, mergulhou num profundo vazio. Viu-se incapaz de pronunciar nenhuma sílaba, muito menos do seu próprio nome. De repente, uma angústia ainda maior devassou seus pensamentos, pois havia percebido que estava deitada de costas para um total desconhecido. Não tinha nem o visto direito. O analista estava sentado em sua poltrona sob uma nuvem escura, impenetrável, sem nenhuma visibilidade.
Conseguiu ver apenas a barra de suas calças - percebendo que ele sustentava sua inércia -, com as pernas cruzadas, e os seus sapatos de camurça, marrom claro. Quem é esse homem? - Interrogava-se. Sabia apenas, pela voz, que ele deveria ser um homem de meia idade, regulando com a sua própria idade, pois ela também já completara cinquenta anos. Mas apesar de todos esses pensamentos - ou talvez exatamente por causa deles -, nada a faria abrir a boca. Seus lábios ficaram inexplicavelmente colados. O tempo se passou e o silêncio sepulcral continuou intacto. Nenhum zumbido era ouvido naquela sala.
Seus braços cruzados sobre o peito, após um período inteiramente imóvel, começaram a formigar. Foi aí que um espasmo súbito fez com que ela espichasse seu braço de forma violenta, movimentando-o involuntariamente - pelo menos até aonde entendia -, em direção à mesinha ao seu lado com o cinzeiro, derrubando-o e espalhando as cinzas do cigarro pelo consultório.
Diante do susto, teve o ímpeto de se virar para recolher a sujeira. Ao se levantar e esticar o outro braço para pegar o cinzeiro e limpar as cinzas - que já voavam por toda a sala -, sua mão roçou na mão do analista, que também havia deslocado o corpo para apanhar o objeto caído. Aquele toque, encontro íntimo, despertou um medo sem precedentes. Tentou evitar um contato maior, mas acabou olhando a face do analista. Automaticamente cobriu os olhos com a mão, pegou sua bolsa, deixando o banco tombar, e sem olhar para trás, saiu do consultório às pressas e ganhou a rua.
Lena voltou para a casa e tentou limpar a imagem do analista de sua mente - já que não conseguira limpar as cinzas espalhadas em seu consultório. O contato de sua mão com a mão dele ficou gravado em seu corpo como as marcas deixadas por carimbos de ferro em brasa usados para registrarem o gado. Daquele instante em diante, sabia que pertenceria ao Godofredo. Mas como isso seria possível? Temeu ser vítima de alguma terrível bruxaria. Pensou inclusive que o analista fosse algum feiticeiro macabro que estivesse lhe provocando aquelas reações. Mas logo afastou essas ideias, considerando-as como um grande absurdo.
Muitos meses se passaram e Lena não mais voltou ao analista. Até um dia que não mais suportara a distância e resolveu ligar para agendar uma segunda sessão. Do outro lado da linha, Godofredo a atendeu com sua voz suave e decidida e assentiu que marcassem uma nova entrevista. A partir desse ponto, as sessões seguiram regularmente, semanalmente, durante anos, sem que jamais Lena tenha dito uma única palavra. Permanecia em silêncio ao longo de todas as sessões, sem emitir nem mesmo um ruído. O analista também não dizia nada. Nem para ir embora o analista encerrava a sessão. Era Lena que, sobressaltada, saía correndo e nem se despedia. O pacto de silêncio permanecia inabalável.
Os toques entre as mãos de Lena e de Godofredo tornaram-se mais frequentes, menos espaçados, e isso já não causava tanto estranhamento e inquietação. No início, tocavam sempre ocasionalmente, por descuido, mas depois, pela repetição, já era Lena que procurava a mão de Godofredo por trás do divã, ou até era ele mesmo que procurava a mão de Lena, estendendo a sua pela lateral do móvel.
(...)
Quando Lena se deu conta, mesmo jamais tendo dito qualquer palavra durante as sessões de análise, aquelas mãos dadas já tinham evoluído para braços dados. E ela, inusitadamente, viu-se vestida de noiva no altar de uma igreja, de braços dados com Godofredo, usando os trajes típicos de um noivo. No instante em que o padre que celebrava o casamento perguntou a ambos se eles se aceitavam, Lena ouviu de Godofredo um suave e decidido “sim”, enquanto sua voz espantada repetia o mesmo “sim” do futuro esposo, ao ser igualmente interrogada.
(...)
Lena, que nunca falara nada em suas sessões de análise, não resolvera nenhum dos seus problemas... Mas... Ganhara um marido - com voz suave e decidida.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
11 comentários:
Adorei o texto, ótimo desfecho !
Bomm, há quem diga que, para resolver a maioria dos problemas femininos, basta descolar um marido mesmo. Eu, claro, discordo. Mas nem vou seguir a piada misógena.
Gostei muito desse ai, Alex. Sobretudo do evento do cinzeiro e das mãos dadas. Ligação interessante e descrição sagaz. Ou seria o contrário?
No final tudo acaba bem, história interessante e uma comunicação mais interessante ainda.
Abraço.
http://bloghugogreen.blogspot.com/
e a mulher sempre será mais forte!
Mulheres....Mulheres!
aahah ótimo conto
Prezado Alex, é um deleite ler seus textos, sempre muito bem redigidos e com desfechos interessantes.
Forte abraço
Lucyano
http://cinemaparceirodaeducacao.blogspot.com/
aawn achei fofo! as melhores coisas são as inesperadas
É o inesperado se fazendo presente da maneira mais inusitada possível...
O cigarro mal fumado e as cinzas me remeteu a alusão das cinzas da alma, do incompleto, que acaba por ser remexido em sessões de análise e oferecendo novos rumos. E novos rumos vieram pra personagem...
Como sempre o seu blog nos brindando com contos espetaculares!
E ai quando sai o livro de contos?
Falar sobre a mulher é sempre deixar algo por falar...
http://ocotidianodecadadia.blogspot.com/
Até!
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