sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Pedro Bege.

















Pedro era bege. Nasceu bege. Foi registrado, batizado, tinha nome de pai e de mãe na certidão de nascimento – mas era bege – estranhamente bege. Rezava uma lenda que quem descobrisse suas diferenças antes da puberdade, ainda poderia reverter a maldita condenação de ser único. Mas Pedro só refletiu sobre ser bege com mais de doze anos, embora intimamente já tivesse descoberto desde a primeira infância. Foi quando um colega de classe desferiu uma pergunta rasteira – Por que você é bege?

Não sabendo responder, Pedro ficou com um vazio entalado na garganta. A partir daí, ele empreendeu uma verdadeira epopéia para conhecer suas referências naturais, míticas, origens ancestrais.

Na escola, Pedro era observado com espanto e curiosidade, inclusive pelas “tias” e professores. Ninguém nunca tinha visto um menino bege. Estudavam sobre etnias, antropologias, fenótipos, mas jamais chegaram a conhecer tal fascinante exemplar. As crianças, em biologia, já sabiam identificar a taxonomia, classificar raças e subespécies, todavia não compreendiam como encaixar alguém da cor bege. Em anatomia todos tiravam 10, mas e aquela cor? Existia?

Alguns diziam que Pedro tinha cor de burro quando foge. Mas Pedro nunca teve um burro, muito menos havia fugido. No entanto, ele pensava – Será que burro quando foge é bege? Se assim for, será que burro fugido sou?

Pedro, como qualquer ser humano, era bípede – embora os gansos, marrecos e aves em geral também o sejam. Por ser bípede e humano, Pedro tinha duas pernas, apesar de também ter duas patas, que criava no quintal de sua casa. Essas patas eram brancas, e não beges como seu dono. Pedro construiu um galinheiro com tábuas ocas, úmidas, abandonadas num terreno baldio – tocas de insetos e fungos. Ele sabia que aquele galinheiro improvisado não era para patas, e sim galinhas, mas não se importava com nomes.

Diferente dos demais, o galinheiro de Pedro tinha duas patas brancas. Quando o dia ficava muito quente, enchia uma caixa d’água de amianto, para suas patas brancas nadarem e se refrescarem. Por ter uma pequena rachadura, Pedro deixava a torneira aberta, com uma mangueira enroscada, continuamente, para manter a caixa d’água cheia. O tanto de água que entrava era o mesmo tanto de água que saía.

Por essas peripécias, que sua mãe traduzia como desperdício, Pedro recebia bofetões em seus raquíticos braços beges, para que aprendesse a lição. Era somente nesses instantes que ele testemunhava o fenômeno do bege virar vermelho. As marcas de dedos da sua mãe esculpiam maravilhas coloridas. Pele vermelha! Sou apache! – dizia satisfeito.

As punições que a mãe julgava corrigir a má criação do filho, acabaram tendo um efeito inverso ao desejado. Pedro passou a forjar situações que contrariavam sua mãe, só para conseguir os tabefes milagrosos que refletiam a recém descoberta capacidade de mudar de cor. Às vezes ficava roxinho. Depois amarelinho. Mas era só a mancha sumir, o contraste desaparecer, que a tragédia retornava, castigando-o, sem titubear. Voltava a majestade bege a reinar absoluta. Melancolicamente bege.

O engenho construído por Pedro funcionava com uma simples repetição. Ao contrariar as ordens maternas, desobedecendo-as, e... Olha lá o índio apache novamente – exclamava ele com visível euforia. Sou camaleão! – Disparava Pedro não se contendo de alegria.

Não! Camaleão não tem cor. Camaleão é mudança pura de cor. E se fosse para ter cor, seria verde, é um réptil! – Concluiu Pedro, reconhecendo a cruel verdade de sua origem e destino. Era um menino bege. Menino e bege. Pateticamente bege! E embora tentasse aplicar sutis beliscões em seus próprios braços, não resultou no menor efeito. O bege só ficava ora um pouco mais claro, ora um pouco mais escuro, mas ainda assim... Bege!

Quando cresceu, inventou uma maneira de aliar sua peculiar característica às atividades lucrativas. Fazia política bege. Aderia a movimentos artísticos em que o bege predominava como símbolo de vanguarda. Criou compostos químicos beges, revelando as revolucionárias propriedades medicinais da cor. Pedro ficou tão famoso no campo das pesquisas científicas que adquiriu, por projeção dos fiéis trabalhadores da empiria, um inquietante aspecto magnético, curando todos aqueles que temiam ter perdido a crença no poder da ciência.

Desse modo, Pedro absolvia-os de serem amaldiçoados por um tipo de sinédrio científico, devido aos julgamentos de uma das faltas mais graves: A heresia – que consistia em negar, pela falta da fé, a suprema e única verdade abençoada pela Lei das aferições e experimentações.

Mesmo com todas essas distintas regalias que o tempo lhe concedeu generosamente, Pedro rememorou, na fatalidade latente de um lapso, por carecer de respostas lógicas, a traumática pergunta que um colega lhe fez em sua meninice, quando contava um pouco mais de 12 anos. Assim, sua carreira de sucesso foi interrompida.

- "Por que você é bege?"

Perante o regresso avassalador de tal questão, mesmo tendo sido formulada sem aparente hostilidade, numa inocente curiosidade de criança, Pedro foi estremecendo do dedão do pé ao mais longo e inalcançável fio de cabelo. Olhou desconfiado para suas mãos, na esperança de uma incorporação camaleônica. Havia mudado radicalmente de humor. Mas o bege continuava lá, inalterado.

Constrangedor e deprimente bege!

Pedro permaneceu lá, parado, estatelado. Voltou ao instante exato em que tal pergunta fora proferida pelos lábios infantis, ferindo-o em suas referências racionais, tão caras ao já adulto menino bege.

Foi aí, nessa circunstância, na falta de respostas à pergunta existencial, que Pedro tomou uma medida drástica. Como ainda não conhecia a praia, pois vivia em regiões montanhosas, mesmo tendo aproveitado rios e cachoeiras, resolveu viajar para o litoral. Lá chegando, novamente constatou a brutal diferença que sua pele era emblema. Avistou uma ampla dimensão de areia, que emoldurava, combinando com as espumas brancas, o infindável oceano. Reparou nas pessoas que circulavam no calçadão, além daquelas que torravam, deitadas ao sol, e as outras que liam, bebiam água de coco, tomavam cervejas em lata, conversando, fixadas em sombras feitas por exageradas barracas de nylon fincadas na areia.

Sem pensar duas vezes, dirigiu-se à areia, sentou-se à mesa de um barzinho móvel, passou o bronzeador comprado em um vendedor ambulante, dispensando o protetor solar, e pediu um coquetel de frutas cítricas. Depois foi até o limite do mar, onde as ondas quebravam, alugou uma cadeira de praia e por lá ficou cerca de meia hora. Por causa da ardência, voltou à mesinha do bar e pediu uma tônica para reidratar. Quando se deu conta, não era mais alvo da atenção dos curiosos. Tinha se homogeneizado, adaptado ao ambiente. Passou sua cor em revista e... Não acredito! – Exclamou.

Estava com a pela bronzeada, exatamente como todos os veranistas que se instalavam na praia, adotando-a como segunda residência. Ficou deslumbrado! Tão surpreso, tão surpreso por ter finalmente mudado de tonalidade, ficando idêntico a todos... que acabou tendo saudade de sua antiga cor bege.

Assustado com o resultado, principalmente por ter se igualado a todos que viviam na orla, decidiu passar um tempo repousando no hotel que reservara no litoral, sem sair do apartamento. Em algumas semanas já havia desbotado suficientemente, conseguindo readquirir seu inconfundível tom bege.

Ao sair do hotel, já em tempo de voltar para casa, teve outra surpresa que não foi em hipótese nenhuma menor que a primeira, ao constatar seu bronzeado. Notou que todos os turistas, visitantes, veranistas, que estavam chegando à praia, como ele também antes chegara, sem exceção, exibiam a mesmíssima cor bege. Espantado, suspeitou que fosse objeto de algum feitiço, quebranto, mandinga, pois retornou à sua cor bege justamente para fugir do anonimato, da igualdade, mas que agora, todos os recém chegados à praia estavam exatamente iguais a ele: Beges!

Zonzo pela violenta descoberta, empalidecido, aproximou-se de um dos recém chegados à praia, abordando-o. Qual a sua cor? Qual a sua cor? – Perguntou Pedro visivelmente perturbado. Os primeiros a serem abordados por tal enlouquecido transeunte, desviaram-se dele apavorados, esquivaram-se com horror. Depois de várias tentativas fracassadas, um dos homens beges parou, dando exemplo de solidariedade com pobre criatura desorientada. Após ouvir sua pergunta com atenção, o bondoso homem respondeu: Minha cor é branca!

Essa resposta causou enorme agitação em Pedro, perturbando-o ainda mais. Mas se aproveitando da gentileza do homem bege – que disse ser branco – insistiu nas perguntas, agora querendo que ele lhe respondesse sobre sua própria cor. O homem, sensibilizado pela condição atordoada de Pedro, dispôs-se a responder mais uma de suas perguntas, afirmando de forma taxativa: - Branco! Sua cor é branca...

Após ouvir a resposta, Pedro recuou, atônito, até visualizar, coincidentemente, um cartaz que anunciava uma seleção para uma agência de modelos. O cartaz dizia que estavam convocando homens e mulheres brancos e negros. Pedro apertou a vista para ter mais nitidez e acuidade visual, mirando algumas fotografias de modelos já selecionados. Percebeu que havia alguma incoerência nos dizeres do cartaz e nos retratos expostos. O cartaz dizia brancos e negros, mas nas fotografias só havia homens e mulheres beges - uma escala variante de tons de bege! – Afirmou um Pedro inculcado.

Numa epifania religiosa, dom que só os místicos, bêbados e presidiários são contemplados, a verdade foi revelada a Pedro, vinda como um raio certeiro que lhe abriu a cabeça. Pedro pôde compreender, após passar anos sem respostas, que em sua terra natal, não há negros e não há brancos. Na pátria tupiniquim, como todos são bastante misturadinhos, miscigenados - só há beges! Variando para o tom bronzeado nos dias quentes de verão – A cor do pecado!


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

27 comentários:

vidaadolescente disse...

rs, bem bacana (:

Luciano Castro disse...

NUOSSA, FIQUEI BEGE AGORA!!!
HEHEHE
GOSTEI MUITO, PARABENS MESMO

Eliana disse...

Mas porque Pedro era uma pessoa tão confusa, meu Deus! Quase um Michael Jackson! rsss

Pobre Pedro...

Abraços!

Alex Azevedo Dias disse...

Mas quem não é? Cada um com sua confusão! Agradeço a leitura. Abraços...

Gabriela Freitas disse...

Ual, UASHUASH Muito bom.

Eliana disse...

Esse assunto realmente instiga... a vida após a vida. Não sou espírita por "formação", não estudo a fundo a doutrina, mas leio bastante a respeito e tenho certeza (que na hora certa) eu vou estudar... é preciso ter preparo psicológico, creio nisso!

Você escreve muito bem!
Andei olhando seus textos e achei muito interessantes... Certamente vou lê-los aos poucos... Ler é sempre bom!

Abraços!

Lua- Eu Crio Moda disse...

Meu Deus eu achei que quando ele entro de férias e viu que todo mundo era bege, pensei ele era alienigiena e depois da cor dele ser branca, pensei que o pai dele era o padeiro...

o "El Bugu" disse...

Alex, primeiro, obrigado por ter visitado meu blog e feito excelentes comentários no texto "a prostituta da minha infância". Segundo: eu vou utilizar a história do Pedro, o Bege no meu trabalho. Sou professor de história e particularmente venho notando que a narrativa literária quando utilizada como instrumento para o desenvolvimento de conteúdos e conceitos mais complexos, consegue expandir o grau de abstração do adolescente. A história pequena, articulada com a História importante (dos historiadores dos gabinetes), faz com que ambas tenham sentido na cabeça do estudante. Há anos tendências de escrita e pesquisa em história separaram o micro do macro, mas atualmente estamos notando que as duas formas articuladas se complementam e efetivamente.
Mais uma vez, muito bom seu texto
Abraços

Alex Azevedo Dias disse...

Pedro não é um alienígena. Ele é só brasileiro. Filho de padeiro? hum... Podem até achar que ele é um pão... Afinal, há gosto para tudo - gosto não se discute! rs... Abraços!

Thaamy disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Thaamy disse...

Você escreve muito bem.
Poderia ler e reler o texto mil vezes!
Parabéns pelo blog.
dá uma passada no meu ?
Te espero lá,

http://blackbluedot.blogspot.com/

um beijo

Urbano disse...

Ahhh, o desfecho ficou bege na lição sobre racismo. Abs!

Anônimo disse...

É essa mistura de cores e raças, junto às misturas de gênios e atitudes, que nos enriquece e faz de cada um de nó ser único em essência.
Mais uma excelente história, Alex!

Victor Von Serran disse...

A epopéia de Pedro o Bege !!!!!

Acho que esse foi o texto mais engraçado que eu li de vc Alex.


no meio do auge de sua fama alguem pergunta....porque vc é bege ?

Hilario !!!!!!

http://universovonserran.blogspot.com - As vezes você não consegue fazer tudo sozinho..
sigo e comento quem seguir e comentar
blog indicado pelo jornal destak e revista enfoque !

Paulo Cesar PC disse...

Quem de nós não somos por vezes confusos srsr

Vanessa Souza disse...

Pedro multi-cor. Bonito.

Thaamy disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Thaamy disse...

Oi, sou dona do blog blackbluedot, Passei pra dizer que eu não removi seu comentário, assim como não removo de ninguém.
Sinceramente, pensei que você tinha removido. não sei oque houve.
Magina, desculpe eu.
Volte sempre lá tá ?
estarei também aqui no seu blog
sempre comentando.
Obrigada.
Um beijo

Nathacha disse...

onseguiu tudo , mas não aceitava o que era...um mj da vda mesmo
http://www.medicinepractises.blogspot.com/

Victor Von Serran disse...

ja comentei e to esperando o proximo...atualizei o cronicas e sua opinião tornou-se importante..

se me der a honra de me visitar !

http://universovonserran.blogspot.com - As vezes você não consegue fazer tudo sozinho..

Rebeca Youssef disse...

eu gosto dessa coisa das cores dizerem. voce trabalha bem com isso, parabéns! =)

Urbano disse...

Hahahahahah!! toda vez que alguém escreve: "me segue que eu te sigo, imagino um cachorro atrás do outro andando em círculos!"

Cara, vou fazer uma relaçnao desss pessoa sem noção e ir ironizando os comentários. A gente precisa se divertir de alguma forma! Vlw!! abs!

Victor Von Serran disse...

voltei pra ler e mostrei pra uns amigos...se te adicionarem do nada ai vc ja sabe !

tem texto novo e seu comentario é top list !

http://universovonserran.blogspot.com/ o dia do cavaleiro
Te espero lá no meu blog !!!!

Alex Azevedo Dias disse...

Agradeço a leitura de todos. Victor, será um prazer. Só para informar, eu reformulei a maioria dos meus contos. Reescrevi-os para possibilitar uma maior dinâmica de leitura, coerência e concordância. Todos os meus contos já estão republicados na versão atualizada. Abraços a todos!

Pobre esponja disse...

Que maravilha!
Usando da ficção para falar do preconceito, vc fez um texto lúdico, porém pungente.

abç
Pobresponja

Leninha disse...

adorei!!!
lindo!!!

Anônimo disse...

Adorei o modo que você usou p/ tratar as diferenças e o preconceito,mostrando também no final que tudo é muito simples,os complicadinhos somos nós!!Parabéns pelo blog!!