segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

À Mesa do Café.














No fogão à lenha da rústica fazenda, o café estava sendo preparado num adorável artefato culinário. Daquele bule de cerâmica, exalava um aroma inconfundível de café fresquinho, pronto para servir. A colheita era realizada num cafezal exclusivamente de subsistência da fazenda. Os grãos, submetidos à rigorosa seleção, só eram separados para torrefação e moagem obedecendo às regras de qualidade para o exigente paladar da família.

No instante em que a mãe inclinou o bule, para que o líquido viscoso escorresse até à xícara de porcelana, uma suave fumaça serpenteou do bico do artefato, exalando aquele inebriante aroma de café quente. O primeiro contato do café com a xícara liberou lembranças de momentos felizes que se repetiam sempre que a bebida, de origem etíope, era generosamente servida à mesa.

Tudo transcorria na mais perfeita ordem e calmaria, excetuando um detalhe... Na xícara do pai, um movimento estranho foi notado. Ele achou indelicado chamar a atenção dos demais pelo evento inusitado que ocorria ali, no conteúdo de sua apreciada bebida. O pai não queria ser estraga prazeres. Não queria interromper a harmonia do horário do café, em que toda a família estava reunida. Mas algo se debatia na intimidade de sua pequena xícara.

Tentou empurrar com a pontinha do dedo a coisa que boiava na superfície do seu café, mas quanto mais procurava afastá-la sutilmente, num empenho para jogá-la fora no pires, mais se frustrava. Aquela coisa afundava a cada tentativa, mergulhava com força para o fundo, ficando impossível de retirá-la. Apreensível, apesar de se esforçar em esconder seu temor, para não perturbar a paz familiar, pois já estava sendo alvo dos olhares curiosos de seus filhos, tomou uma golada com vontade, fingindo que nada acontecia de irregular àquela mesa. Deus sabe o sacrifício que o pai fez, extraindo forças de suas entranhas, para simular contentamento, mesmo sendo protagonista da mais esdrúxula cena.

Por ostentar bigodes frondosos, símbolo máximo de virilidade – também servindo como filtro natural das impurezas do que deglutia – notou que após o primeiro gole, carregava um peso extra entre o nariz e o lábio superior. Sentiu uma súbita coceirinha em seu másculo traço facial. Algo não corria bem. Olhou para o conteúdo de sua xícara, e nada mais encontrou além do café. Mas em seu bigode, algo se mexia.

Disfarçadamente, levou seu dedo indicador, com leveza, aos seus fartos pêlos negros e brilhantes – encerados e engraxados – na esperança de espanar a ameaçadora criatura que insistia em se mexer, embaraçada na cabeleira. Sem sucesso na empreitada, colocou em prática seu outro plano – soprar obstinadamente com as narinas, na intenção que a coisa voasse de seus bigodes e não lhe atrapalhasse mais o café em família. Mas o seu filho, espantado com a cena do seu pai fungando enfurecidamente – para fora, diga-se de passagem – lançou a pergunta sem titubear:

- Pai! O senhor está passando mal?

O pai, que não esperava estar sendo observado, muito menos por esse filho – que se distraía com bolachas e bolinhos – levou um susto tão grande que se engasgou. Com o chamado repentino do filho, ficou desorientado por alguns instantes, até recuperar novamente a consciência sobre o que estava acontecendo.

- Nada, meu filho... Volte a tomar seu café! – Disse o pai, respirando fundo.

Logo após ter respondido ao filho, sentiu uma irresistível vontade de espirrar. A coisa estranha havia entrado em sua narina esquerda, e se alojado junto à mucosa, grudada num comprido pêlo nasal. A coisa começou a mexer e se remexer lá dentro, sem parar. O pai já estava tendo um troço, suando frio, ainda tentando disfarçar o que ocorria com ele - quase desmaiando de nervoso. Novamente escolheu o dedo indicador para trabalhar em sua missão de limpeza, mas uma coisa é esfregar os fios do bigodes, outra coisa é enfiar o dedo no nariz em público, sentado com sua família, à mesa do café.

Teve a ideia de colocar uma mão na frente do rosto, para formar uma barreira, e, assim, pôr mãos à obra – e dedo. Ao perceber que sua barreira manual funcionou ao contrário, atraindo mais os olhares alheios ao invés de afastá-los, com o ardil de um criminoso flagrado em delito, exigiu que todos voltassem rapidamente ao café. Conseguiu impor respeito e cumpriu a performance masculina, para nenhum digno patriarca botar defeito.

Mas o mexe e remexe continuava em seu nariz. A coisa se deslocava para as partes mais internas de sua cavidade nasal. Aquela coceira já estava insuportável. A agonia era tanta, que o pai começou a acompanhar o ritmo da coisa que se mexia em seu nariz, ensaiando um rebolado na cadeira. Foi um tal de mexe e remexe na cadeira que os seus familiares imediatamente pararam de tomar o café, ficando perplexos com a visão patética que se desenrolava diante deles. Logo, o pai se levantou, pulando, e seguiu com o mexe e remexe no chão. Os demais, boquiabertos, com os queixos caídos, não viam nem mais o café. Alguns, ainda segurando suas xícaras, sem perceberem, deixaram entornar o café na toalha de mesa novinha.

De repente, o pai foi vítima de um espirro monumental, que lhe arrancou até as sobrancelhas. Com a violência do espirro, o intruso foi expelido de sua narina, indo se depositar em algum lugar em que a visão humana não alcança. Sem dar a menor importância aos olhares estupefatos que o seguiam, o pai, sem fazer cerimônia, voltou ao seu lugar na cabeceira da mesa, pegou o bule de cerâmica e se serviu da deliciosa bebida matinal.

Como tudo se reequilibrou, o pai pôde se dedicar ao único elemento que lhe habitava os pensamentos: O café. E assim, continuou pensando sobre os grãos que colheria no dia seguinte do cafeeiro - se seria arábica ou robusta – como poderia moê-los e o tipo de torrefação, talvez uma média, para deixar a textura mais elaborada e o paladar sempre apurado.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

16 comentários:

Unknown disse...

É tudo acaba em um cafezinho, eu gosto muito dessa visão de colheita e mistura com um texto voltado a um produto, mas mostra o cotidiano e depois começa tudo de novo...

Anônimo disse...

Pequenas situações que nos desviam do cotidiano mas, somente terão peso ou força caso venhamos a lhe atribuir isso. Sem contar a destreza e empenho do pai em não abalar o momento familiar. Após o suposto incidente, a normalidade volta a reinar.
Gostei do clima bucólico do conto! E, coincidentemente, li com uma xícara de café nas mãos. rsrs
Bj!

Truco ladrão disse...

Oo
noos começo com algo simples
e desenvolveu td essa história

parabéns ae
escreve mto beem :D

http://trucoladrao.blogspot.com
http://trucoladrao.blogspot.com

TRUCO LADRÃO ! ♣ ♥ ♠ ♦

o "El Bugu" disse...

Eu sempre achei que um dos papéis fundamentais da arte é provocar algum tipo de emoção. A que eu senti ao ler este conto foi "agônia". Essa sensação se desperta no primeiro gole de café e se acentua no nariz e passa com um espirro. Muito boa narrativa.
Quanto ao uso que pretendo dar para a história do Pedro Bege, ainda não decidi a forma, mas ele me será útil quando alguma discussão sobre questões raciais vierem a tona.
Novamente, obrigado por acompanhar minha produção. Está sendo legal acompanhar a sua também.
Um grande Abraço

Fernando disse...

Ele poderia ter ido ao banheiro, logo após um pedido de licença sutil e recatado.

Que o café de amanhã seja servido sem surpresas. Ou não. Afinal, nada como quebrar rotinas e tradições, não é verdade?

Forte abraço,
Fernando Piovezam
seuanonimo.blogspot.com

Anônimo disse...

A quebra de rotinas e padrões é o que faz a poética da vida ser tão interessante

marcos disse...

retribuindo a visita, e gostei do que encontrei. Em primeiro lugar, parabéns pela escrita, muito bem feita, envolvente. Sobre a história, gosto de temas simples, cotidianos, vistos de algum ponto de vista em especial, e você fez isso muito bem! Também escrevo contos, quando publicar algum, te peço uma opinião :D
abraços!

Anônimo disse...

Acho que todos merecemos essas doses de boa nostalgia pela manhã, mais uma vez me fez pensar como certos gostos, cheiros, podem nos fazer voltar no tempo e encontrar boas recordações.
Coisas assim simples do dia-a-dia que trazem felicidade de que precisamos.
Texto muito bem escrito e impecável.
http://infinitalixeira.blogspot.com/

Anônimo disse...

Desconheço a mensagem vinda por trás deste conto, considero as 'surpresas' da vida, inusitadas, e não desconfortantes.

Escreve bem, parabéns pelo conto.


meu blog: http://www.mundomudoouvidossurdos.blogspot.com/

Alex Azevedo Dias disse...

Magalli, não há mensagem por trás do conto. Mas se você diz que a desconhece, é porque sabe muito bem qual é! Agradeço a todos pelos comentários inteligentes e pertinentes. Um grande abraço!

Luciano Castro disse...

TUDO É UM RETROCESSO. O NOVO HA TEMPOS NÃO EXISTE...

OBRIGADO PELO COMENTÁRIO EM MEU BLOG
AMANHA, MAIS UMA DICA RÁPIDA.
http://lucconceito.blogspot.com/

Unknown disse...

E quem nunca passou por uma situação complicada durante o café .. Taí um momento muito gostoso da vida

Eduardo o/ disse...

cafés são bons momento pra mim

x]

http://oarlecrim.blogspot.com/

REGINA GOIS DE MELLO disse...

Belo conto, deu para sentir o cheirinho do café e o desespero do pai.Gostei muito do seu estilo.
Parabéns!
Venha visitar o meu blog

REGINA GOIS DE MELLO disse...

Adorei o seu estilo.
Parabéns!

Katiele França disse...

Adorei seu comentário no meu blog, poucas pessoas analisam filmes assim, parabéns pela reflexão, ótimo cérebro.