sábado, 15 de janeiro de 2011

Cléo
















Foi numa noite típica de centros comerciais, em que a escuridão é afugentada pelas lâmpadas incandescentes das vias públicas, com estrelas eternamente encobertas pelos arranha-céus, que Jonas conheceu Cléo. Um estranho laço os uniu. Laço, que de tão absurdo, revelava um traço familiar.

Em horário avançado, mas não tanto para que as principais vias estivessem vazias, Jonas caminhava pela calçada de uma ruela de acesso à larga avenida. Voltava de uma longa jornada de trabalho - estendida por uma rápida conversa com amigos, de pé, encostado no balcão de um botequim de esquina - quando estancou seus passos diante daquela presença. Impacto agudo, misto de inebriante repugnância e de uma não menos embriagante atração.

Um petardo invisível, mas de alto poder destrutivo, invadiu-lhe o nervo ótico já refratário a aventuras românticas pelas rugas de decepções que colecionava em seu cenho. Aquele irresistível chamado inaudível sugou os pensamentos avariados de Jonas, fazendo-o concentrar sua atenção, impetuosamente, na híbrida figura deitada à porta fechada de uma luxuosa agência de viagens. Uma jovem mulher dormindo quase no chão, na solidão movimentada da rua, visão causadora de aspectos oscilantes, ora de hostilidade, ora de ternura - beleza ferina, feiúra libertina.

Cléo estava coberta por uma espessa camada de sujeira, deitada feito uma mendiga, sem pedir migalhas de compaixão. Jonas hesitou por alguns instantes para se aproximar dela, devido às condições desfavoráveis, afinal, ele era um trabalhador e ela, uma condenada à indigência. Além também de haver alguns indivíduos mal encarados que contribuíam para a distância precipitada, pois Jonas temia que mesmo não sendo de ninguém, Cléo estivesse rodeada por homens que a considerassem propriedade deles. Aquela mulher dormindo no território da mendicância, de um grupo de moradores de rua, poderia ser julgada como objeto pertencente a alguém.

Absorvido pela fixa vibração que o extasiava, não resistiu por muito tempo e furou a barreira que o impedia de chegar perto da mulher. Jonas ficou bem próximo dela, inclinando seu corpo para frente no intuito de vê-la melhor. Não se intimidou com os prováveis curiosos que o observavam. Mas a posição do volume do seu corpo, contra a incidência da luz, provocou um sombreado nas pálpebras de Cléo, causando o seu súbito despertar.

Ao abrir os olhos, encontrou o olhar assustado de Jonas, e de forma penetrante, fitou-o longamente. Não desviou seu olhar por nenhum momento. E notando o constrangimento estampado no rosto do homem que a estava contemplando, Cléo esboçou um sorriso que imediatamente se transformou em uma aparvalhada gargalhada. Jonas ameaçou correr, fugir da situação vexatória, mas permaneceu congelado diante daquela hipnótica presença.

Ela se levantou e tentou colocar a mão no ombro de Jonas. Ele se esquivou instintivamente, disfarçando o nojo que sentia, não permitindo ser contaminado por uma mão imunda. Caso uma de suas unhas, foco de proliferação de bactérias, arranhasse sua pele hidratada e higienizada, fatalmente estaria contaminado. Mas Jonas não se deu conta que outros tipos de bactérias já haviam se transmitido de forma irreversível. Uma força exercia sobre ele uma potencial atração à qual se submetia inegavelmente, embora aquela aparência suja o repelisse.

Foram caminhando juntos. Cléo se colocou ao lado de Jonas de uma maneira tão natural que não parecia que tinham se visto pela primeira vez a pouco menos de meia hora. Ela não tinha mais de 25 anos. Pele morena – o que foi possível enxergar debaixo de toda aquela sujeira – olhos azulados, cabelos louros, lisos e ondulados nas pontas. Os cabelos pareciam bem cuidados, apesar do aspecto de seu corpo noticiar a secular falta de uma ducha caprichada, de uma chuveirada vigorosa para tirar as grossas camadas que já aderiam à sua pele.

Foi durante essa animada conversa, caminhando pela calçada do centro da cidade, com Jonas quase cedendo à insana vontade de beijar aqueles lábios que o chamavam enquanto articulava-os ao falar, dirigindo-se a ele, que uma proposta surgiu. Cléo avistou um cartaz que anunciava uma festa à fantasia, com a data marcada para começar brevemente, a apenas alguns minutos. Jonas certificou-se do convite, aberto ao público, e identificou alguns nomes de conhecidos seus.

Percebendo se tratar de mais uma escolha excêntrica, refletiu sobre o motivo de estar ali, com aquela mulher suja – apesar de muito bela – vestindo andrajos. Balançou a cabeça, na esperança de afastar pensamentos recorrentes e desanimadores e avaliou a circunstância de ser uma festa à fantasia. Contrariando a lógica asséptica, Cléo, mesmo sem banho, com toda aquela sujeira, não cheirava mal.

Talvez não tivesse nenhum odor. Era neutra em matéria de aromas. Quando Jonas começava a se sentir bem com ela, sentia cheiros de lavanda, jasmim, alfazema e sândalo, cheiros característicos de limpeza, mas sabia que eram fragrâncias exaladas de seu inconsciente apaixonado. Esses cheiros não vinham dela, pois definitivamente ela não tinha odor, não fedia nem cheirava bem.

Sem o cheiro para denunciar a condição miserável, sua aparência seria normalmente incorporada ao tema da festa à fantasia. Dessa forma, Jonas não seria rejeitado socialmente por andar ao lado de uma mulher naquele estado deplorável. Sua grossa camada de sujeira seria recebida pelos convidados, cada um trajando suas indumentárias extravagantes, como uma autêntica fantasia. Ninguém veria o exterior daquela mulher suja. As pessoas fantasiadas veriam apenas a beleza feminina por baixo de uma armadura sebosa.

Na festa, a realidade subumana de Cléo fez enorme sucesso entre os convidados, pela espontaneidade e capacidade inventiva dela, por ter conseguido fielmente reproduzir o natural em sua singular “fantasia”. Ambos permaneceram juntos, conversando em rodas de amigos, comendo e bebendo. Ninguém sequer poderia imaginar a verdade grosseira, fardo pesado que só Jonas era obrigado a carregar. A própria Cléo parecia desmemoriada. Levava em seu corpo a origem humilhante, mas agora disfarçada, trocada por uma real fantasia de si.

Jonas cada vez se espantava mais com as atitudes de Cléo. Ela exibia movimentos pomposos, sinuosos, andar elegante como se estivesse flutuando pelo salão, fala galanteadora e afinada. Será que só ele tinha consciência da verdade? Cléo havia se esquecido? Ou será que nunca soube, que estava esse tempo todo alienada de sua condição? Jonas não parava de se impor essas perguntas, repetidamente. Ficou isolado na festa, excluído, com as têmporas latejantes de dúvidas. Enquanto Cléo alcançava o estrelato instantâneo, sendo adorada pelos membros mais nobres da família anfitriã da festa, abordando sempre assuntos inteligentes e sedutores, Jonas ia se apagando, entrando no anonimato, distanciando-se.

Depois que retornou à festa, da sacada do casarão antigo - endereço no qual o tema da alegria cedeu espaço à irrealidade antipática, à outra face de Cléo, invisível - revelou-se a verdade que não foi vista por Jonas. Era disso que ele se esquivava, não da suposta sujeira. Temia o encontro mortífero com o desconhecido, com algo que estava muito além de seus limites mundanos. Jonas percebeu que só existia uma sujeira – a que tampava seus olhos. Tela que bloqueava sua visão. Cegueira da alma. Via apenas a imundície - seus próprios olhos. Não via Cléo. Agora que o véu caiu, podia vê-la, mas ela já não estava lá. Era ela que se esquivava, não o conhecia.

Cléo desapareceu dos olhos de Jonas. As paredes daquele lugar a consumiram. Seu corpo virou éter e foi absorvido pela porosidade do casarão antigo. A festa parou. O tempo parou. Ninguém mais se mexia. Apenas Jonas ainda ouvia um suave dedilhar de violoncelo que fazia um eco baixinho na acústica que se formou pelas mobílias afastadas, no espaço reservado à dança. Só a essência de Cléo insistia em não abandoná-lo. Agora era ela a sua consciência. O olhar de Cléo que o seguia.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

6 comentários:

Paulo Cesar PC disse...

Cléo e Jonas, centralizam esse texto, que bem pode ser comparado a outras tantas, das quais nos deparamos vida a fora.
Obrigado pela visita lá no blog. Gostei do texto!

Lynda Evy disse...

Tão bom ^^

Dam. disse...

Otimo texto... Boa noite abraço
Visita eu depois http://dresputs.blogspot.com/

pris disse...

mt longos os textos vou seguir depois leio e comento
abaço ;)

Alex Azevedo Dias disse...

Realmente, são longos - leitura nociva à saúde. Cuidado! Textos com mais de 140 caracteres causa queda dos olhos. O Ministério da Saúde adverte que ler mais de duas linhas por semana, faz os globos oculares saltarem das órbitas e escorregarem até o umbigo.

Anônimo disse...

Li o comentário idiota de quem vai seguir mas não lê. Adorei tua resposta! Mais que merecida.

Cléo me parece uma instância psiquica de Jonas que chega e se faz presente; que lhe mostra uma possibilidade adversa à que ele está habituado. Um choque entre real e imaginário. Gostei!