quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Escritor.










Um final que não agradaria nem os leitores menos letrados. Nunca foi nenhum cânone, mas já era merecidamente badalado pela imprensa local. Aquele final medíocre era indigno de seu talento literário.
Seu festejado protagonista - homem de iniciativa e poucas palavras - morrera estupidamente antes do final da história. Quando estava a caminho para mais uma empreitada de sucesso - vendedor brilhante de seguros que a todos convencia - passando por baixo de um dos prédios mais altos da cidade, fora atingido por um objeto até então não identificado. A robusta lombada de um livro lançado do último andar do edifício acertou em cheio a sua cabeça. Foi morte súbita. Destino cruel ou irônico para a personagem de um escritor quase renomado. Tiro e queda. Imediatamente, o próspero vendedor, antes mesmo de fazer qualquer careta de dor, perdera os sentidos e tombou como um touro abatido.
Pensou duas vezes para concluir o trágico desfecho. Todas as alternativas de preservação do seu protagonista redundaram em absoluto fracasso. Por que terminar assim? - Ele se perguntava com frequência... Vencido pelo cansaço, já exausto por não inventar um destino mais atraente para seu personagem, aceitou a derrota, pediu trégua à falta de criatividade, e deixou que o livro despencasse, em queda livre, batendo diretamente na cachola do seu astuto, porém indefeso, vendedor de seguros.
O autor desconsolado ensaiou a derradeira tentativa para alterar o esdrúxulo final reservado ao seu personagem. Ao iniciar a reescrita, talvez por imprimir muita força nos dedos - já demasiadamente frustrado -, quebrou ao meio a frágil madeirinha do lápis. Foi aí que reconheceu que o universo literário conspirava contra seu gênio autoral. Aquilo não poderia ser obra da mente humana - ponderou o já assustado escritor. Não tão resignado, aceitou o destino que alguma força maior reservara para ele. Fechou o livro, colocou-o sobre a escrivaninha, levantou-se e caminhou calmamente para o sofá. Quis tirar um cochilo breve.
Ao se dirigir para o sofá, subitamente teve a sensação que seu cérebro fervia. Estava quase derretendo. Uma fumaça esbranquiçada saia pelos orifícios de sua cabeça, principalmente ouvidos, olhos e narinas. Deteve-se. Num átimo, atirou-se contra o livro. Engalfinhou-se no chão, amassando, com fúria, a capa e o miolo. Mordeu-o com tanta vontade, que as marcas dos dentes estampou na orelha da contracapa, ranhuras como um código de barra. Não estava nem um pouco conformado com sua incapacidade de mudar o destino de seu querido vendedor de seguros - criado com a dedicação digna de escritores consagrados.
Combalido e já quase vencido pelo embate corporal, cravou as unhas no livrinho inacabado e arremessou-o pela janela meio aberta. Um senhor distinto, vestindo um elegante terno, numa infeliz coincidência, distraidamente, atravessou a marquise do prédio do qual o livro despencava acelerado, de uma altura nada convencional, e estacionou rente à coluna em que residia o irascível e fatigado autor. Como se houvesse uma mira invisível, o objeto de celulose traçou uma linha certeira até atingir a moleira do incauto transeunte. O impacto fulminante nem estremeceu sua vítima. Os pedestres ao redor nada perceberam. Apenas após o corpo desfalecido do homem tombar no espaço público, que uma porção de curiosos rodeou-o, só cedendo lugar quando os paramédicos chegaram para logo constatarem que nada poderiam fazer.

(...)

Mediram sua pulsação. O bafo deixado no espelhinho colocado diante do seu nariz revelara o quase óbvio. A vida não havia lhe abandonado. Mesmo com a pressão arterial um pouco enfraquecida, pôde segurar uma xícara de café meio requentado. Sentou-se no sofá. Ainda estava um pouco tonto. Achou que dormira demais. Logo que se despediu dos seus companheiros, com apertos de mão e beijinhos no rosto das senhoras, levantou-se rapidamente - porém se escorando no braço de uma velha cadeira -, pois a tontura ameaçou derrubá-lo, e colocou em prática uma idéia fixa que não deixara de martelar sua cabeça quando acordara.
Pegou sua esferográfica e rabiscou as primeiras linhas. Não mais adiaria a execução dos seus planos. Seria agora ou nunca. Estava certo disso. Apontou sua caneta para o papel e num movimento retilíneo, enfiou a ponta de sua ferramenta tinteira nas páginas em branco do seu caderno de anotações e manuscritos. Vagarosamente, a tinta escura se espalhou pelas folhas, cobrindo-as de uma mancha espessa, sem uniformidade. Inclinou a cabeça para trás, num gesto típico de regozijo, e se entregou a uma gargalhada estridente, repetindo a mesma frase incessantemente: “Sou um assassino!”. “Sou um assassino!”.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

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