quarta-feira, 30 de maio de 2012
Os Fugitivos.
Correu desembestado em direção ao terreno baldio. Com o cenho franzido e os lábios retorcidos, esbaforido, suando frio, pulou a cerca de arame farpado. Na tentativa de se desvencilhar das fisgas de ferro enferrujado, esfarrapou sua roupa e abriu algumas feridas superficiais nos braços e nas pernas. Por causa da agitação da fuga – adrenalina que tudo apaga -, não sentiu a mínima dor dos arranhões. Eduardo se esgueirou, quase engatinhando, e conseguiu chegar aos fundos do terreno, embrenhando-se num capinzal. Espreitando a presença de seu adversário, continuou agachado, escondendo-se nas inúmeras folhas espessas de capim. Mesmo tremendo de medo, fez o possível para manter-se imóvel, camuflado, como um animal acuado.
Empunhando a espingarda calibre 12, com a coronha apoiada no ombro direito, Galeano estava ao encalço de Eduardo, sem derramar nenhuma gota de suor. Andando macio, nas pontas dos pés para que o outro não percebesse sua posição, escorou-se no tronco grosso de uma amendoeira, para descansar o braço de apoio da arma, e deixou o cano da espingarda apontado para a cerca de arame farpado. Emaranhado no matagal cerrado, Eduardo, mesmo tiritando de pavor, não soltou nenhum pio sequer, entregue a um silêncio sepulcral.
Observando de trás da amendoeira, Galeano pressentiu que Eduardo estava metido naquele terreno baldio, afinal, sempre soube que ele tinha certa quedinha por vadiagens, e ambientes selvagens. Mirou bem nos arbustos dos fundos do terreno, segurou a espingarda com firmeza, colocou o dedo no gatilho e impostou a voz o suficiente para ser ouvido daquela distância: “- Eduardo, saia já dai! Não sou tolo. Sei que você está escondido no meio desse mato!” Não obtendo resposta nem ruídos vindos do capinzal, Galeano saiu de trás do tronco e se pôs a caminhar até os limites da cerca de arame farpado. Posicionou-se adequadamente – como um estrategista militar -, colocando a perna direita sobre uma rocha irregular encravada na terra, encostou a cabeça no ombro direito para enquadrar a mira mais ou menos no centro da touceira de capim, na qual se supunha estar o fugitivo.
- Saia daí já, seu paspalho! Só pra isso você serve? Pra fazer merda e depois correr de medo? Enfrente-me agora, seu mijão!
- ...
- Se você não botar essa cara de bunda pra fora do mato, eu te arrebento de bala. Você não me engana... Sei que tá escondidinho aí feito marica, seu frouxo!
- ...
- Vou contar até três e meter o dedo! Vou tirar você daí na marra, a base de balaço.
Uma vozinha frágil e meio abafada se fez ouvir detrás da densa cortina de folhagens: - Não, não. Atire não, Seu Galeano. O senhor sabe que eu tô aqui, mas daqui eu não saio, não. Pra quê? Procê me matar? Não senhor.
- Aham... Vejam, só... Acertei, né? Os ratos sempre se escondem em buracos! Ponha essa cara deslavada daí pra fora! Se apresente! Morra dignamente como um homem! Prove-me o contrário. Me prove que eu tô errado, sua ratazana!
Tomando ares de uma pretensa e duvidosa coragem, porém contraindo-se em espasmos, Eduardo respondeu, vociferando: “- Ah, é?! Quero ver! Então deixe de ser covarde e atire logo de uma vez!” Galeano, espumando pela boca, enfurecido, apertando a arma entre os dedos com destemor, trincou os dentes, raivoso, crispou as mãos e precipitou-se no gatilho da espingarda. Mas, segundos antes do gatilho ter sido apertado até o fim, ouviu-se o barulho ensurdecedor de uma sirene. Como num coito interrompido, Galeano relaxou o dedo, sem ter disparado, e voltou sua atenção para uma viatura policial que lentamente se aproximou do local. Sobressaltado, Galeano largou a espingarda – que caiu entre a rocha e o tronco da amendoeira – e correu de encontro ao arame farpado. Impulsionou seu corpo para saltar e, meu desengonçado, perdendo seu sapato que ficara enganchado numa das fisgas, conseguiu aterrissar em solo firme, do outro lado da cerca.
Num pulo digno de modalidade olímpica, Galeano – agora desarmado - mergulhou na touceira de capim em que Eduardo se escondia. Eles se estranharam, acotovelaram-se, empurraram-se, sem que dissessem nenhuma palavra, até que Eduardo cortou o silêncio: - “Mas que diabos você tá fazendo aqui?” Ambos se entreolharam perplexos. Como Galeano não respondeu, Eduardo prosseguiu o interrogatório: - “Tá devendo pras autoridades, é?!”, E riu gostosamente, gozando daquela situação inusitada.
Ao notarem uma movimentação suspeita, os dois policiais que passavam por ali, pararam a viatura e desceram do veículo. Um deles foi até o cercado, abaixou-se e, fazendo força para retirar o objeto imprensado entre a rocha e o tronco de árvore, recolheu a espingarda que estava abandonada no local. O que apanhou a arma do chão passou-a para o companheiro que, envolvendo-a numa sacola plástica, prontamente a guardou no porta-malas do carro como evidência que serviria para uma futura análise pericial.
- Ei, tem alguém aí? – Disse o policial que vinha dirigindo a viatura.
- Fique parado, fique parado! – Sussurrou Eduardo para Galeano.
Os policiais comentaram um com o outro a respeito da procedência daquela arma. Eles não viram Galeano se apressando em desaparecer no matagal. Era incomum a criminalidade pelas redondezas, por isso, a dúvida das autoridades em se armarem prontamente, dispostos em par, para a defesa ou futura ofensiva. Um deles levantou o quepe, coçou a cabeleira rala, esfregou o nariz, olhou longamente para o outro, mas não sacou o revólver do coldre.
Fez sinal para seu companheiro na intenção de que ultrapassassem a cerca de arame farpado. Entrelaçou os dedos para que o colega apoiasse o coturno e impulsionasse o corpo para ganhar o lado de dentro do terreno. Mas antes que aquele imponente coturno ralasse em suas mãos, desfez o entrelaçamento, colocou a mão no ombro do parceiro, e disse alguma coisa inaudível - talvez o encorajando a desistir para que não corressem o risco de rasgar seus uniformes novíssimos e depois terem as emendas descontadas de seus já reduzidos salários.
Galeano e Eduardo estavam aflitos, quase gelados de medo. A paralisia que se apoderou dos seus corpos acabou sendo um ponto positivo, pois se mantiveram, involuntariamente, imóveis. Os policiais permaneceram ainda por um tempo conversando. Um, com o braço espichado, apoiando a palma da mão na amendoeira, e o outro, sentado na rocha, estavam se deleitando num animado diálogo sobre mulheres e bebidas – e por que não sobre alguns assuntos ilícitos, soltando às vezes estridentes gargalhadas. Eles se demoraram por quase uma hora - tempo no qual, ambos os “meliantes”, continuaram numa absoluta quietude -, entregues à divertida prosa. Ao se darem conta da hora avançada, e relembrando-se das obrigações públicas e oficiais, os dois policiais desfizeram os sorrisinhos que ostentavam nos rostos, corrigiram suas posturas, endireitaram as fardas, entraram na viatura e, mesmo sem que a sirene fosse ligada, rapidamente seguiram o percurso habitual, voltando-se a se dedicarem ao serviço da lei e da ordem.
Mesmo após a viatura estar a léguas de distância dali, Galeano e Eduardo custaram muito para recobrar os sentidos. Depois que Eduardo deu uma espiadela por entre as folhas, resolveu gradativamente se afastar. Galeano, seguindo os passos do seu adversário - transformado em companheiro pela fatalidade das circunstâncias -, foi atrás. Deram a volta no terreno, onde encontraram um portãozinho na lateral, e se viram livres daquele aperto. Olharam-se longamente, ambos lívidos e com o semblante contraído. Mas não se encararam por muito tempo. Logo, esboçaram um sorriso largo, deram-se as mãos, num rápido cumprimento – menos de solidariedade do que de um companheirismo de longas datas -, e foram em direção ao botequim mais próximo.
- Dudu, vamos afogar as mágoas? – Disse um alegre Galeano.
- Claro, meu camarada! Agora mesmo! Vamos beber até não aguentarmos mais.
E foram os dois amigos, abraçados, sorridentes, dando tapinhas nas costas, rumo ao bar para acenderem uns cigarrinhos, bebericarem umas cervejinhas e - por que não? – se entregarem às mulheres e às práticas ilícitas. Afinal, ao contrário dos policiais que perdiam o tempo falando, eles, que nada tinham de autoridade, podiam livremente ganhar tempo fazendo, só no bem bom!
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
quarta-feira, 16 de maio de 2012
O Difícil é Aprender.
Sentados nas cadeiras e bancos escolares, tendo diante de cada um de nós, um quadro negro e um professor, como aprendemos? Será que precisamos apenas destes elementos primários - o aprendente, o ensinante e as palavras soltas ao vento para a absorção passiva dos alunos? E o enlace subjetivo - o desejo, a paixão - que sustenta as relações humanas? Para início de conversa, o termo utilizado para designar aquele que supostamente aprende, nega-o em sua essência. “Aluno” deriva de aluado, alienado, ou seja, fixado num padrão repetitivo que inviabiliza o modo singular que cada sujeito lida com o aprendizado. O que está para além de um vínculo reducionista entre receptor (aluno) e emissor (professor)?
Não é à toa que Platão afirmava ser todo conhecimento uma rememoração. Na dualidade de sua metafísica, oposição entre o sensível (mundo das aparências) e o inteligível (mundo das essências), o processo de aprendizagem é a recordação do que já existia enquanto ideia transcendente. Talvez possamos aproximar esse ponto do pensamento platônico, en passant, com a lógica freudiana do repetir para recordar, para enfim elaborar. No contexto analítico, é apenas sob transferência que o inconsciente - discurso do Outro, estruturado como uma linguagem - irrompe e pode ser trabalhado. Lacan dizia que a condição sine qua non do estabelecimento transferencial é o endereçamento do sujeito suposto saber para o lugar do analista. É sempre de um retorno (do recalcado) que se trata em análise. E trazendo novamente Platão, conhecer é reconhecer, é rememorar, assim como a lógica do inconsciente na dinâmica da transferência.
Quando Nietzsche articula o conhecimento ao que há de mais alegre (potente) na ordem dos afetos, talvez antecipe a ideia freudiana da libido, ou pulsão, como força motriz tanto disruptiva quanto associativa, capaz de desagregar e de agregar os significantes do inconsciente. Aprender é uma afetação no sentido de ser algo que concerne intimamente ao sujeito. E sendo assim, também como um representante afetivo, jamais é sem angústia. Pois nesse processo de aprendizagem, indissociável da rememoração, o que retorna é o recalcado em sua embalagem sintomática.
A análise é um trabalho de luto propriamente dito. Primeiro, porque o sujeito reconhece que o saber depositado no analista não passa de um saber sobre si - de uma falta de saber sobre si. Segundo, que as certezas imaginárias caem, na travessia do fantasma, viabilizando uma abertura, mobilizando os afetos sob transferência, para a desidealização de um conhecimento mágico, onipotente. O que permite a saída de uma reprodução estéril do sintoma dos pais, para a liberdade da produção de um senso estético singular. Nesse sentido, é inevitável considerar uma aproximação entre o modelo escolar do aluno recebendo passivamente um saber do professor com a alienação ao sintoma parental. E, assim, construir a passagem, não sem luto, para uma apropriação do sintoma singular do sujeito, subjetivando afetivamente a vida, sua realidade psíquica, como produção desejante do saber (não-saber) inconsciente.
Será que um sujeito submetido à categoria de aluno, sustenta um desejo, é sujeito de seu desejo? Talvez esteja numa posição objetal em que o “saber” do Outro se impõe, sem ser subjetivado, sem ser ressignificado na singularidade do seu discurso. Para aprender é indispensável que haja uma afetação, que o conteúdo exposto pelo professor cause o sujeito, diga algo a seu respeito. E isso não é tarefa fácil. Sempre que um saber inconsciente é instigado a se presentificar, por algum estímulo externo, a angústia comparece, sinalizando a resistência contra o retorno do recalcado.
É possível aprender sem ser por transferência? Freud era incisivo quando dizia que a transferência é uma repetição dos afetos recalcados, na ausência de recordação das representações ligadas a eles. A transferência é uma reedição dos clichês e estereótipos libidinais, uma forma de repetir esses afetos, uma forma de rememorá-los, atuá-los, sem que para isso se recorde simbolicamente dos eventos traumáticos que constituíram o sujeito falante. É em transferência com o outro (analista/professor) - sujeito suposto saber - que o discurso do Outro repercute no sujeito. É em transferência que os afetos reverberam, repetem-se, mobilizam pulsões, sintetizam e escandem os não-saberes inconscientes. Não existe aprendizagem sem paixão. É preciso que certa dose de mal-estar, não sem entusiasmo, fale intimamente ao pé do ouvido do sujeito, fazendo-o lidar com aquilo que o concerne, com aquilo que o clama pelo nome, que afeta o sujeito em sua história subjetiva. Pelas cartografias da pulsão, a linguagem corta e costura o saber inconsciente.
Essa alegria como maior representante dos afetos, segundo Nietzsche, nunca gratuita e descompromissada, inclui o objeto (des)conhecido no âmago do sujeito desejante. É só aí que o processo do aprender é operado. Na posição subjetiva do sujeito, sua cadeia significante na qual um significante só representa o sujeito para outro significante (Lacan), que ele articula algo do saber, sempre meio desarticulado, capenga, naquilo que lhe escapa e em que está implicado intimamente, tragicamente.
Entre aquele que aprende e aquele que ensina, há mais mistérios do que conhece a nossa vã filosofia. Essa dialética é mediada pelo desejo, pelo sintoma, pela paixão, pelos alegres - e por que não angustiados? - afetos inconscientes.
Depois dessa sucinta explanação, fica patente a impossibilidade de separação entre o processo do aprendizado - a aquisição da linguagem, os atravessamentos do discurso do Outro - e as dificuldades inerentes a essa aprendizagem. Para Lacan, antes do nascimento do indivíduo, e mesmo na anterioridade lógica da constituição do sujeito, o bebê já está submetido à linguagem. Ele é atravessado pelas fantasias parentais, pela transmissão de significantes, pelo lugar construído no desejo desses pais.
A aprendizagem e suas vicissitudes deixam em evidência os mecanismos de defesa exclusivos da sexualidade infantil que estruturam a singularidade do sujeito. Uma criança com dificuldade de aprender matemática pode revelar um conflito interno com as subtrações e divisões típicas de sua vivência relacional. Para que um sujeito se constitua, é necessário que o gozo imaginário se descole, seja subtraído enquanto objeto de satisfação pulsional. A série de divisões objetais, operadora da função simbólica, inaugura a circunscrição do sujeito do desejo, assujeitado à linguagem do Outro. Essas equações, as ambiguidades que estão no cerne da irrupção do sujeito, dizem respeito ao drama subjetivo da entrada do sujeito no simbólico, suas questões inconscientes.
A psicanálise não se reduz aos manuais de instruções nos quais, isso quer dizer aquilo e aquilo quer dizer isso, pois é apenas no um a um de cada caso, sob transferência, que o analista pode sustentar a escuta da enunciação, daquilo que autoriza a emergência do singular. É no drama psíquico, nessa tensão constante entre o eu e o isso, os equívocos do sujeito - seu inconsciente -, que as peculiaridades subjetivas de cada um podem ganhar um lugar simbólico, uma desamarração do lugar passivo de aluno. É nessa desalienação do que foi necessário no início da história do sujeito, que ele pode se deslocar do lugar de objeto, na divisão do seu desejo, e não mais ser o nó do sintoma dos pais/professor, para fazer laços com suas próprias criações (aprendizado), reinventando a vida.
Desse modo, conclui-se que não há aprendizagem possível sem dificuldade. Talvez indo um pouco mais longe para afirmar que a dificuldade de aprendizagem coincide com o próprio processo do aprendizado. Não é à toa que sendo a aprendizagem uma potente forma de afetação (Nietzsche) e um (re)conhecimento do que já estava lá (Platão), essa dificuldade concerne ao aprendizado, sempre inacabado, como conflitos de contrários no inconsciente, responsável pela própria beleza de constituição diária do sujeito ao lidar com seu desejo sempre singular.
Artigo Escrito por Alex Azevedo Dias.
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