quarta-feira, 1 de junho de 2011

Duas Almas.
















Solitário em um vagão de trem, seus pensamentos se embaralhavam no mesmo ritmo desavergonhado e frenético que chocalhava a locomotiva no trilho irregular. Subiu com o trem já em movimento, clandestinamente, como se seu ato refletisse e exorcizasse a violência de sua orfandade. Há anos vivia em absoluto anonimato. Arrastava-se de um lado para o outro nas vias públicas, mas um estranho manto que cobria seu corpo o deixava completamente invisível na multidão. A não ser os seus olhos - dois rasgões acesos como faróis, emoldurando a obscura face. Quando seu isolamento muito o afligia, questionava-se a respeito de sua alma. Será que não a possuía? Ou era uma película tão fina e transparente - já meio puída e desgastada - que se tornava imperceptível para o véu carnal dos olhos alheios?

A estrutura do trem era de aparência antiga, estilo Maria-Fumaça, da época da revolução industrial. No vagão, Francis estava recostado em um dos grandes sacos atulhados de minério de ferro e carvão, provavelmente sendo transportados a serviço de alguma usina siderúrgica. As sucessivas paisagens, quadro a quadro, visualizadas pela janelinha retangular do vagão de carga, de tão repetitivas, exerciam um domínio hipnótico naquele clandestino viajante. Ele resistia para não adormecer, pois acreditava que mantendo os olhos bem abertos não perderia a direção do trajeto - mesmo já sabendo que há tempos não conseguia mais identificar o lugar em que estava.

Além do barulho do trem se deslocando sobre os trilhos - um bailado de faíscas soltas pelo deslizar da máquina em contato com o carril de metal -, Francis não ouvia o exterior que se insinuava levemente como bucólicas imagens borradas através do vidro sujo de sua janela. Pela primeira vez sentiu falta do burburinho das ruas da cidade. Imerso na multidão, desaparecia. Mas ainda assim a ouvia. No vagão, até seus pensamentos começaram a silenciar. Um assovio baixinho era o som que sua enovelada memória exalava como aroma de cansaço.

Quando suas pálpebras começaram a pesar e os sonhos tremulando como um filme projetado na queda d’água, Francis estranhamente pressentiu que sua companhia não se limitava às tórridas e bruxuleantes imagens de sua intimidade tagarela. Dos sacos de estopa vazios ao seu lado, Francis se viu refletido em dois olhinhos reluzentes como botões polidos de cristal que, arregalados, miravam-no fixamente. Por um instante uma associação se impôs a Francis, dominado por refrescante ternura: Aqueles olhinhos faziam lembrar esmeraldas em pó, fininhas, polvilhadas na úmida relva vespertina.

Era uma menina de uns cinco anos apenas que talvez estivesse dormindo durante todo aquele tempo, aninhada no rústico tecido que mais parecia a língua áspera dos corpulentos, carinhosos e maternais felinos selvagens. Ambos permaneceram se encarando por um curto período, mas que deixava a sensação de horas pela surpresa causada por tal inusitado encontro. Um balbucio surdo e contido fora ouvido pela sensibilidade não-verbal de Francis. Atônita, mas sem perdê-lo de vista, ela ameaçou recuar. Deu alguns passos sufocados para trás, afastando-se daquele homem alto e esfarrapado, que na cabecinha infantil deveria ser semelhante a um alienígena.

Francis, perplexo por esse acontecimento, iludia-se pela falsa realidade de estar sozinho ao longo de toda a trajetória do trem. Aquela sombra itinerante o seguia curiosa com faceiro e sonolento olhar. Contrariado pela enganadora percepção de isolamento -, pois em nenhum momento chegou perto de renunciar a companhia solitária e viajante daquele semblante infantil - embora não se conscientizasse de sua inequívoca condição gregária, ainda encontrou forças para abordar a pequenina garota sobre o motivo de se esconder num vagão tão perigoso para alguém daquela idade.

- Ei! O que uma garotinha como você faz aqui?

Sem obter respostas, Francis prosseguiu em seu intento.

- Onde estão os seus pais? Você tem que voltar para casa!

Com seus olhos fixos, a menina não mexia nenhum músculo além de andar para trás quando Francis, gesticulando, tentava se aproximar.

- Para onde você está indo?

Neste instante, com os olhos inchados e marejados, escapuliu da menina um apelo embargado: - Quero meu pai!

Francis se comoveu com a lamúria da criança - talvez por se identificar com sua própria condição de desamparado andarilho. Menos por solidariedade com a dor infantil do que por sentir que o choro de indefesa criança espelhava o apelo abandonado de um adulto órfão do mundo, Francis agachou-se para nivelar sua altura com a baixa estatura da menina e murmurou palavras reconfortantes.

- Sinta-se segura comigo. Acredito que nossos caminhos se cruzaram por obra de alguma força maior.

Quando Francis se levantou, a garota se agarrou à perna dele em silêncio, apertando seu rosto contra o joelho do seu companheiro de viagem. Francis foi absorvido por uma atmosfera de encantamento e se demorou numa ausência de reação, envolvido apenas pela cumplicidade muda daquele abraço.

- Vou até meu pai! - Disse a menina com os lábios semicerrados.

- Onde seu pai está?

- Trabalhando.

- É longe de sua casa?

- Sim, é em outra cidade.

- E sua mãe? Ela está com você.

- Não, está em casa.

- Ela sabe que você está aqui?

- Não, eu fugi.

- Meu Deus! Você é muito pequena, como pode ter fugido?

- Sinto falta do papai. Eu sempre fujo. O trem passa em frente a minha casa. Papai pega esse trem. Ele passa muito tempo no trabalho. É muito distante.

Francis coçou a cabeça, não por desconfiança, mas por compreender a enrascada em que se meteu. Ele percebeu que também era um fugitivo, mas não estava procurando seu pai. Ele insistia numa fuga impossível de si mesmo. Não aturava a visão cotidiana do vai e vem das medíocres famílias burguesas de sua cidade. Era insuportável se confrontar com o reflexo de sua deformada imagem em cada miserável cidadão e suas rotinas sem sentido apenas para sustentarem suas vidinhas desprezíveis.

Talvez fosse exatamente por se sentir abortado de sua própria pátria que ele tanto se identificava com a desesperada busca da garotinha por seu pai. Como seu desamparo poderia aconchegar a menininha agarrada à sua perna? Mas ela estava lá, ajeitando-se na calça desfiada de Francis. Nesse exato instante, ele pôde perfeitamente captar o inaudível entrosamento que se dava entre as duas figuras com histórias tão diferentes, mas com destino em comum - de trágica afinidade.

Sabiam que o sublime sentimento de ternura os unia. Eles eram cúmplices e fugitivos. Estavam ligados por um exílio que se apresentava feroz. A falta paterna mobilizava a menina em sua insólita aventura. Já a falta de pátria, condenando Francis ao êxodo da alma, impelia-o à sua vocação para construir redundantes rotas de fuga de si mesmo.

No encontro furtivo com a meiguice infantil, pela primeira vez realizou o que seria impossível: Abandonou-se. Francis completou finalmente sua tão almejada fuga de si, pois se dirigindo fraternalmente àquela criança que não estava simplesmente perdida - sabendo muito bem para onde ia -, ele reforçou o contorno de uma essência da qual esteve privado. O viajante - sombra de uma alma inexistente - passou a ser através dos olhos verdadeiros olhos de uma menina que amava seu pai. Francis não era nada além do que aqueles olhos infantis - símbolos perenes e afetuosos há muito tempo abafados e reprimidos.

(...)

Não tinha mais volta. O trem seguia seu destino. Uma lágrima cansada de se esconder deslizou tímida pelo rosto aquecido de um Francis preenchido pela emoção da menina carente. E eles, abraçados, seguiram viagem.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

4 comentários:

Tamires Santos disse...

Impressionante como o seu texto me fez imaginar toda uma cena, cheia de detalhes...Quase deu pra sentir o vento da janela do trem...

Muito bom texto. Meus parabéns.

Beijos, Misunderstood.

AssiZ de Andrade disse...

Excelente texto.
Mto bom.
É grande, mas vale a leitura.
Parabéns!

Vou nessa,
Abrçs!

http://cafeeagua.blogspot.com
http://redutonegativo.blogspot.com

O Cadáver Poético disse...

Detalhista....Adoro contos, e escrevo alguns, junto com poesias

viste se puder

http://ocadaverpoetico.blogspot.com/

Bruno disse...

Viajar é preciso, encontrar-se não é preciso. Talvez nessas fugas Francis consiga ver-se a si mesmo, e não numa essência que encontrará para o libertar como um messias da vida ordinária, mas nos trilhos, nas paisagens outras, no vento e na velocidade. Espero que perceba que sua busca é vã e o que quer já tem, ou já está. A verdade é uma ilusão, talvez ele consiga montar uma mentira.


http://costabbade.blogspot.com/