Jornal Cravo e Canela: Contos | Crônicas:
Dolores não tinha atributos físicos que invejassem as outras mulheres e as transformassem em suas rivais. Mesmo feia de doer, levava uma vida cheia de amores. Seu tempero inebriava os paladares e olfatos mais exigentes. Não havia um homem que resistisse aos encantos culinários de Dolores. Feitiçaria que não se valia da voz - como as belas sereias responsáveis pela ruína dos embasbacados navegadores -, mas sim das boas mãos que espalhavam os aromas sedutores aos quatro cantos da fraqueza masculina. De queixos caídos pela fragrância exalada daquelas curvas morenas, os homens pronunciavam as letras do seu nome como se entoassem notas musicais, estalando a língua no céu da boca cada vez que se entregavam à degustação prazerosa das carnudas sílabas: Do-Lo-Res.
Certa vez, debulhando espigas de milho para preparar sua deliciosa pamonha na folha de bananeira e ralando coco para a canjica e para a moqueca de camarão, ela recebeu um verdadeiro chamado dos deuses. Sentiu uma estranha presença ao seu lado. Procurou por todos os lados com a ânsia de quem não via a hora de pegar o abusado em flagrante - pois Dolores acreditou que algum rapaz intrometido a espiava escondido. Ela se levantou e explorou todos os cantos à procura do suposto engraçadinho que a observava, mas não foi bem sucedida. Quando já estava dando sua busca por encerrada - voltando a se concentrar na receita das guloseimas -, pressentiu novamente que alguém a endereçava um desejante olhar.
Por uma inexplicável intuição, virou levemente o pescoço para o lado esquerdo e deixou seu corpo inclinar para frente até que o banquinho que estava atrás da mesa da cozinha se tornasse visível. Lá de cima uma garrafinha de dendê a fitava sem um pingo de timidez. Não era gente. Era só o dendê que acompanhava todos os seus movimentos, quietinho, lá de trás da mesa. Dolores se lembrou que sem esse ingrediente não existiria nenhuma moqueca. Era o dendê que dava o sabor especial à maioria dos seus pratos. Antes de finalizar suas gostosuras, deixava escorrer fios generosos do azeite para dar o toque apetitoso e requintado ao manjar que fisgava os peixões de pequeno, médio e grande porte - os homens dos casebres das redondezas -, mesmo os casados, os que estavam noivos e até os comprometidos com Deus.
Sem hesitar, pegou o frasco contendo o dendê, besuntou as palmas das mãos, esfregando-as uma na outra exatamente do mesmo jeito que se unta um tabuleiro com manteiga para levá-lo ao forno. Ao erguer os braços para melhor espalhar o óleo nas mãos, o líquido viscoso com aroma inigualável escorreu pelos cotovelos e ombros, pingando nos volumosos seios que rapidamente se enrijeceram em contato com as propriedades eróticas daquela gordura, despertando os mais recônditos apetites. Dolores, ainda com os braços para cima, posicionou-os em direção à boca e, abrindo-a, deixou que algumas gotinhas do dendê caíssem sobre a língua - que serviria como passagem até a garganta e as cordas vocais, lubrificando-as.
Extasiada pelo efeito afrodisíaco da gordura em seu corpo, cantarolou de olhos fechados uma musiquinha folclórica que só era cantada pelas mulheres virgens na véspera de serem defloradas por seus potentes machos na alcova de amores. Não satisfeita - querendo mais e mais -, Dolores se serviu de maiores quantidades do dendê e lambuzou toda a extensão das pernas delineadas e incandescentes que brilhavam condimentadas pelo toque da paixão. Com os pêlos eriçados, as coxas roliças e pulsantes, a pele esticada e delirante, um calafrio de orgasmo percorreu-lhe a espinha. Após massagear as coxas com sensualidade, Dolores repetiu o ritual exótico, dedilhando suavemente a panturrilha e a canela. Ao besuntar essa parte da perna, lembrou-se imediatamente da especiaria aromática da casca interna de um caule especial.
Dolores se levantou em estado de transe e se dirigiu ao pequeno armário em que guardava seus potinhos de condimentos. Abriu um deles e separou um punhado de cravos-da-índia. Pegou dois pauzinhos de canela e um ralador para raspar as especiarias. Numa panela, Dolores despejou um pacote de açúcar e deixou no fogo baixo até engrossar, formando uma calda espessa. Em outra panela, ferveu o cravo e a canela. Espremeu alguns limões frescos e esperou o caldo esfriar para logo depois coá-lo e misturar tudo com a cachaça mais pura que tinha reservada em sua adega. O licor maravilhoso com a essência do cravo e da canela, encorpado, com textura cremosa, deixou escapar um perfume tão hipnótico, uma combinação tão irresistível, que seria impossível não provocar a chama da volúpia até nos mais beatos que fizeram voto de castidade.
Nenhuma gota do licor foi ingerida por Dolores. Ela simplesmente derramou no corpo do mesmo modo que fez com o dendê. Após se entregar à massagem de cada dobra vulcânica do seu tronco e membros, a excitação cedeu lugar à sensação de relaxamento. Um torpor dominou-a por inteiro até adormecê-la completamente. Seu corpo desfalecido desabou na frieza do azulejo branco da cozinha. Uma fumaça colorida, exalando odores arrepiantes e avassaladores, sobrevoou Dolores como a alma gêmea que se sacrifica à procura da metade que sempre falta. Um suor melífluo começou a germinar dos seus poros, misturou-se às essências oleosas e alcoólicas das penugens em sua pele. Como as fermentações da garapa da cana-de-açúcar, os líquidos corporais de uma Dolores inconsciente, imóvel, adormecida, evaporaram-se gradativamente, diluindo seu corpo que já se confundia com o dendê, o cravo e a canela.
Dolores se fluidificou, virando uma essência tão volátil que rapidamente se perdeu no fluxo dos ventos. Já reduzida a vapores e gases, a densa nuvem de especiarias aderiu ao teto da cabana na qual Dolores residia. Condensou-se e se transformou num líquido espesso que ficou depositado no teto, formando um grude, uma goma irremovível por todos os lados daquela cozinha.
O paladar do povo da cidadezinha ficou órfão com o sumiço daquela mulher feia, mas que irradiava o tempero do desejo. Ninguém soube o seu paradeiro. No início, antes que tomassem a atitude de entrar à força na casa de Dolores - pois o portão que estava trancado com pesada tramela teve que ser arrombado - a alegria da cidade sofreu uma queda tão radical que o povo degenerou e definhou. O cheiro e o sabor dos temperos de Dolores, que contagiavam a libido de todos, de repente cessou por completo, causando irremediável tristeza na população local.
O povo triste e agressivo, afetado pela ausência dos ingredientes balsâmicos, desesperado pela falta daquela mulher feia, já considerada uma santa milagreira, derrubou o maciço portão da casa de Dolores com um grosso tronco de árvore. Ao entrarem violentamente na casa, bufando e com olhos arregalados, interromperam os passos estupefatos. Eles não a encontraram, apenas uma fina e transparente camada nebulosa fora sentida. Intensa e irresistível vontade de dançar tomou a todos. Quando balançaram os braços tateando o vazio, perceberam que havia uma capa gordurosa aderida à tez daqueles homens aflitos.
Como as nuvens negras carregadas de chuva, aquela fumaça - formada por uma Dolores desmaterializada - começou a gotejar nas rudes faces masculinas. Desde as primeiras gotículas, os duros semblantes desanuviaram. O álcool e o óleo que recuperaram o original estado líquido soltaram-se do telhado daquela cozinha e acariciaram o olfato e as papilas gustativas dos homens inebriados. As águas de Dolores, com seus sensuais aromas de cravo e canela, penetraram por todos os poros masculinos, transmitindo nuances de sabores cítricos, salgados e adocicados. Numa selvagem alacridade, seduzidos e derretidos pela culinária da sereia desencarnada, sem a menor consciência de seus atos, os homens se devoraram em absoluto estado de euforia. A total satisfação, gozo verdadeiro de uma existência, culminou com a morte e a extinção dos sentidos numa plenitude de vigor e alegria - autêntico banquete para o pecado da gula.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.