segunda-feira, 27 de junho de 2011

Jornal Cravo e Canela: Contos | Crônicas




Jornal Cravo e Canela: Contos | Crônicas:
"Os Temperos de Dolores Conto escrito por: Alex Azevedo Dias.

Este conto inaugura minha coluna no Jornal Cravo e Canela. Escrevi em homenagem aos temperos da Bahia de todos os santos!




Dolores não tinha atributos físicos que invejassem as outras mulheres e as transformassem em suas rivais. Mesmo feia de doer, levava uma vida cheia de amores. Seu tempero inebriava os paladares e olfatos mais exigentes. Não havia um homem que resistisse aos encantos culinários de Dolores. Feitiçaria que não se valia da voz - como as belas sereias responsáveis pela ruína dos embasbacados navegadores -, mas sim das boas mãos que espalhavam os aromas sedutores aos quatro cantos da fraqueza masculina. De queixos caídos pela fragrância exalada daquelas curvas morenas, os homens pronunciavam as letras do seu nome como se entoassem notas musicais, estalando a língua no céu da boca cada vez que se entregavam à degustação prazerosa das carnudas sílabas: Do-Lo-Res.

Certa vez, debulhando espigas de milho para preparar sua deliciosa pamonha na folha de bananeira e ralando coco para a canjica e para a moqueca de camarão, ela recebeu um verdadeiro chamado dos deuses. Sentiu uma estranha presença ao seu lado. Procurou por todos os lados com a ânsia de quem não via a hora de pegar o abusado em flagrante - pois Dolores acreditou que algum rapaz intrometido a espiava escondido. Ela se levantou e explorou todos os cantos à procura do suposto engraçadinho que a observava, mas não foi bem sucedida. Quando já estava dando sua busca por encerrada - voltando a se concentrar na receita das guloseimas -, pressentiu novamente que alguém a endereçava um desejante olhar.

Por uma inexplicável intuição, virou levemente o pescoço para o lado esquerdo e deixou seu corpo inclinar para frente até que o banquinho que estava atrás da mesa da cozinha se tornasse visível. Lá de cima uma garrafinha de dendê a fitava sem um pingo de timidez. Não era gente. Era só o dendê que acompanhava todos os seus movimentos, quietinho, lá de trás da mesa. Dolores se lembrou que sem esse ingrediente não existiria nenhuma moqueca. Era o dendê que dava o sabor especial à maioria dos seus pratos. Antes de finalizar suas gostosuras, deixava escorrer fios generosos do azeite para dar o toque apetitoso e requintado ao manjar que fisgava os peixões de pequeno, médio e grande porte - os homens dos casebres das redondezas -, mesmo os casados, os que estavam noivos e até os comprometidos com Deus.

Sem hesitar, pegou o frasco contendo o dendê, besuntou as palmas das mãos, esfregando-as uma na outra exatamente do mesmo jeito que se unta um tabuleiro com manteiga para levá-lo ao forno. Ao erguer os braços para melhor espalhar o óleo nas mãos, o líquido viscoso com aroma inigualável escorreu pelos cotovelos e ombros, pingando nos volumosos seios que rapidamente se enrijeceram em contato com as propriedades eróticas daquela gordura, despertando os mais recônditos apetites. Dolores, ainda com os braços para cima, posicionou-os em direção à boca e, abrindo-a, deixou que algumas gotinhas do dendê caíssem sobre a língua - que serviria como passagem até a garganta e as cordas vocais, lubrificando-as.

Extasiada pelo efeito afrodisíaco da gordura em seu corpo, cantarolou de olhos fechados uma musiquinha folclórica que só era cantada pelas mulheres virgens na véspera de serem defloradas por seus potentes machos na alcova de amores. Não satisfeita - querendo mais e mais -, Dolores se serviu de maiores quantidades do dendê e lambuzou toda a extensão das pernas delineadas e incandescentes que brilhavam condimentadas pelo toque da paixão. Com os pêlos eriçados, as coxas roliças e pulsantes, a pele esticada e delirante, um calafrio de orgasmo percorreu-lhe a espinha. Após massagear as coxas com sensualidade, Dolores repetiu o ritual exótico, dedilhando suavemente a panturrilha e a canela. Ao besuntar essa parte da perna, lembrou-se imediatamente da especiaria aromática da casca interna de um caule especial.

Dolores se levantou em estado de transe e se dirigiu ao pequeno armário em que guardava seus potinhos de condimentos. Abriu um deles e separou um punhado de cravos-da-índia. Pegou dois pauzinhos de canela e um ralador para raspar as especiarias. Numa panela, Dolores despejou um pacote de açúcar e deixou no fogo baixo até engrossar, formando uma calda espessa. Em outra panela, ferveu o cravo e a canela. Espremeu alguns limões frescos e esperou o caldo esfriar para logo depois coá-lo e misturar tudo com a cachaça mais pura que tinha reservada em sua adega. O licor maravilhoso com a essência do cravo e da canela, encorpado, com textura cremosa, deixou escapar um perfume tão hipnótico, uma combinação tão irresistível, que seria impossível não provocar a chama da volúpia até nos mais beatos que fizeram voto de castidade.

Nenhuma gota do licor foi ingerida por Dolores. Ela simplesmente derramou no corpo do mesmo modo que fez com o dendê. Após se entregar à massagem de cada dobra vulcânica do seu tronco e membros, a excitação cedeu lugar à sensação de relaxamento. Um torpor dominou-a por inteiro até adormecê-la completamente. Seu corpo desfalecido desabou na frieza do azulejo branco da cozinha. Uma fumaça colorida, exalando odores arrepiantes e avassaladores, sobrevoou Dolores como a alma gêmea que se sacrifica à procura da metade que sempre falta. Um suor melífluo começou a germinar dos seus poros, misturou-se às essências oleosas e alcoólicas das penugens em sua pele. Como as fermentações da garapa da cana-de-açúcar, os líquidos corporais de uma Dolores inconsciente, imóvel, adormecida, evaporaram-se gradativamente, diluindo seu corpo que já se confundia com o dendê, o cravo e a canela.

Dolores se fluidificou, virando uma essência tão volátil que rapidamente se perdeu no fluxo dos ventos. Já reduzida a vapores e gases, a densa nuvem de especiarias aderiu ao teto da cabana na qual Dolores residia. Condensou-se e se transformou num líquido espesso que ficou depositado no teto, formando um grude, uma goma irremovível por todos os lados daquela cozinha.

O paladar do povo da cidadezinha ficou órfão com o sumiço daquela mulher feia, mas que irradiava o tempero do desejo. Ninguém soube o seu paradeiro. No início, antes que tomassem a atitude de entrar à força na casa de Dolores - pois o portão que estava trancado com pesada tramela teve que ser arrombado - a alegria da cidade sofreu uma queda tão radical que o povo degenerou e definhou. O cheiro e o sabor dos temperos de Dolores, que contagiavam a libido de todos, de repente cessou por completo, causando irremediável tristeza na população local.

O povo triste e agressivo, afetado pela ausência dos ingredientes balsâmicos, desesperado pela falta daquela mulher feia, já considerada uma santa milagreira, derrubou o maciço portão da casa de Dolores com um grosso tronco de árvore. Ao entrarem violentamente na casa, bufando e com olhos arregalados, interromperam os passos estupefatos. Eles não a encontraram, apenas uma fina e transparente camada nebulosa fora sentida. Intensa e irresistível vontade de dançar tomou a todos. Quando balançaram os braços tateando o vazio, perceberam que havia uma capa gordurosa aderida à tez daqueles homens aflitos.

Como as nuvens negras carregadas de chuva, aquela fumaça - formada por uma Dolores desmaterializada - começou a gotejar nas rudes faces masculinas. Desde as primeiras gotículas, os duros semblantes desanuviaram. O álcool e o óleo que recuperaram o original estado líquido soltaram-se do telhado daquela cozinha e acariciaram o olfato e as papilas gustativas dos homens inebriados. As águas de Dolores, com seus sensuais aromas de cravo e canela, penetraram por todos os poros masculinos, transmitindo nuances de sabores cítricos, salgados e adocicados. Numa selvagem alacridade, seduzidos e derretidos pela culinária da sereia desencarnada, sem a menor consciência de seus atos, os homens se devoraram em absoluto estado de euforia. A total satisfação, gozo verdadeiro de uma existência, culminou com a morte e a extinção dos sentidos numa plenitude de vigor e alegria - autêntico banquete para o pecado da gula.



CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

"Crítica" de um dos meus contos.


Recebi uma "crítica" de um tal de Guilherme-não-sei-o-que, do Digestivo Cultural, sobre um dos meus contos - o primeiro do blog - que inclusive ele não deve ter lido. Mas o conteúdo ofensivo e gratuito me fez declinar a respeito do meio no qual almejo circular: o dos escritores. Não que meus contos sejam indubitáveis quanto à qualidade literária, não entro nesse mérito, mas ofensas que beiram o escatológico e o esdrúxulo, são de arrepiar. Havia transcrito o conteúdo da ignóbil crítica, mas por respeito aos meus leitores, pouparei-os dos detalhes sórdidos. Resolvi excluir o teor da "crítica". Caso alguém tenha curiosidade, solicite-me que eu enviarei para esclarecimentos. Mas deixo apenas minha indignação registrada como lamento e manifesto.

P.S. Continuo escrevendo contos, mas - pelo menos por enquanto - não os publicarei neste blog. Espero compreensão dos que me acompanham.

Abraços cordiais, Alex.


Uma pequena estória de breve despedida:

Amor Manchado

Ela colecionava desilusões desde seus 16 anos, quando seu primeiro amor a deixara. Passou a odiar a figura masculina. Reduzida às sombras dos maus-tratos dos homens, destinava ao retrato do pai - morto quando ainda nem completara 9 anos - uma série de impropérios que mais machucava a si do que hostilizava o falecido.


Um ano depois um novo amor surgiu, afagando suas amarguras e renovando as esperanças. Mas contrariando suas crenças, a repetição manteve-se fiel à tragédia e em menos de um ano ele partiu. Revoltada, repetiu as ofensas à imagem do pai - símbolo da irredutível condição de desgraça - partindo o porta-retrato em milhares de caquinhos.


A fotografia do velho homem não suportou o impacto e, já aderida ao vidro, espatifou juntamente com os cacos. Triste por mais essa perda, e agora sem a figura do pai para contemplar e reverenciar todas as noites antes de dormir, foi consolada por um colega de classe que, notando sua angústia, aproximou-se. A partir daí, entrou num terceiro romance.


Com a progressiva falta de memória do pai morto, desmanchando em seus olhos, ao ser pedida em casamento, aceitou relutante. Casaram-se. As feições do pai se perdiam enquanto os traços do amor se condensavam e a possuíam. O rosto do amado estava nítido. Nunca mais o amor se desmanchou. A mácula de Eros penetrou com solidez. Novamente o pai a abandonou - dessa vez levou a mancha consigo.


ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.


quarta-feira, 1 de junho de 2011

Duas Almas.
















Solitário em um vagão de trem, seus pensamentos se embaralhavam no mesmo ritmo desavergonhado e frenético que chocalhava a locomotiva no trilho irregular. Subiu com o trem já em movimento, clandestinamente, como se seu ato refletisse e exorcizasse a violência de sua orfandade. Há anos vivia em absoluto anonimato. Arrastava-se de um lado para o outro nas vias públicas, mas um estranho manto que cobria seu corpo o deixava completamente invisível na multidão. A não ser os seus olhos - dois rasgões acesos como faróis, emoldurando a obscura face. Quando seu isolamento muito o afligia, questionava-se a respeito de sua alma. Será que não a possuía? Ou era uma película tão fina e transparente - já meio puída e desgastada - que se tornava imperceptível para o véu carnal dos olhos alheios?

A estrutura do trem era de aparência antiga, estilo Maria-Fumaça, da época da revolução industrial. No vagão, Francis estava recostado em um dos grandes sacos atulhados de minério de ferro e carvão, provavelmente sendo transportados a serviço de alguma usina siderúrgica. As sucessivas paisagens, quadro a quadro, visualizadas pela janelinha retangular do vagão de carga, de tão repetitivas, exerciam um domínio hipnótico naquele clandestino viajante. Ele resistia para não adormecer, pois acreditava que mantendo os olhos bem abertos não perderia a direção do trajeto - mesmo já sabendo que há tempos não conseguia mais identificar o lugar em que estava.

Além do barulho do trem se deslocando sobre os trilhos - um bailado de faíscas soltas pelo deslizar da máquina em contato com o carril de metal -, Francis não ouvia o exterior que se insinuava levemente como bucólicas imagens borradas através do vidro sujo de sua janela. Pela primeira vez sentiu falta do burburinho das ruas da cidade. Imerso na multidão, desaparecia. Mas ainda assim a ouvia. No vagão, até seus pensamentos começaram a silenciar. Um assovio baixinho era o som que sua enovelada memória exalava como aroma de cansaço.

Quando suas pálpebras começaram a pesar e os sonhos tremulando como um filme projetado na queda d’água, Francis estranhamente pressentiu que sua companhia não se limitava às tórridas e bruxuleantes imagens de sua intimidade tagarela. Dos sacos de estopa vazios ao seu lado, Francis se viu refletido em dois olhinhos reluzentes como botões polidos de cristal que, arregalados, miravam-no fixamente. Por um instante uma associação se impôs a Francis, dominado por refrescante ternura: Aqueles olhinhos faziam lembrar esmeraldas em pó, fininhas, polvilhadas na úmida relva vespertina.

Era uma menina de uns cinco anos apenas que talvez estivesse dormindo durante todo aquele tempo, aninhada no rústico tecido que mais parecia a língua áspera dos corpulentos, carinhosos e maternais felinos selvagens. Ambos permaneceram se encarando por um curto período, mas que deixava a sensação de horas pela surpresa causada por tal inusitado encontro. Um balbucio surdo e contido fora ouvido pela sensibilidade não-verbal de Francis. Atônita, mas sem perdê-lo de vista, ela ameaçou recuar. Deu alguns passos sufocados para trás, afastando-se daquele homem alto e esfarrapado, que na cabecinha infantil deveria ser semelhante a um alienígena.

Francis, perplexo por esse acontecimento, iludia-se pela falsa realidade de estar sozinho ao longo de toda a trajetória do trem. Aquela sombra itinerante o seguia curiosa com faceiro e sonolento olhar. Contrariado pela enganadora percepção de isolamento -, pois em nenhum momento chegou perto de renunciar a companhia solitária e viajante daquele semblante infantil - embora não se conscientizasse de sua inequívoca condição gregária, ainda encontrou forças para abordar a pequenina garota sobre o motivo de se esconder num vagão tão perigoso para alguém daquela idade.

- Ei! O que uma garotinha como você faz aqui?

Sem obter respostas, Francis prosseguiu em seu intento.

- Onde estão os seus pais? Você tem que voltar para casa!

Com seus olhos fixos, a menina não mexia nenhum músculo além de andar para trás quando Francis, gesticulando, tentava se aproximar.

- Para onde você está indo?

Neste instante, com os olhos inchados e marejados, escapuliu da menina um apelo embargado: - Quero meu pai!

Francis se comoveu com a lamúria da criança - talvez por se identificar com sua própria condição de desamparado andarilho. Menos por solidariedade com a dor infantil do que por sentir que o choro de indefesa criança espelhava o apelo abandonado de um adulto órfão do mundo, Francis agachou-se para nivelar sua altura com a baixa estatura da menina e murmurou palavras reconfortantes.

- Sinta-se segura comigo. Acredito que nossos caminhos se cruzaram por obra de alguma força maior.

Quando Francis se levantou, a garota se agarrou à perna dele em silêncio, apertando seu rosto contra o joelho do seu companheiro de viagem. Francis foi absorvido por uma atmosfera de encantamento e se demorou numa ausência de reação, envolvido apenas pela cumplicidade muda daquele abraço.

- Vou até meu pai! - Disse a menina com os lábios semicerrados.

- Onde seu pai está?

- Trabalhando.

- É longe de sua casa?

- Sim, é em outra cidade.

- E sua mãe? Ela está com você.

- Não, está em casa.

- Ela sabe que você está aqui?

- Não, eu fugi.

- Meu Deus! Você é muito pequena, como pode ter fugido?

- Sinto falta do papai. Eu sempre fujo. O trem passa em frente a minha casa. Papai pega esse trem. Ele passa muito tempo no trabalho. É muito distante.

Francis coçou a cabeça, não por desconfiança, mas por compreender a enrascada em que se meteu. Ele percebeu que também era um fugitivo, mas não estava procurando seu pai. Ele insistia numa fuga impossível de si mesmo. Não aturava a visão cotidiana do vai e vem das medíocres famílias burguesas de sua cidade. Era insuportável se confrontar com o reflexo de sua deformada imagem em cada miserável cidadão e suas rotinas sem sentido apenas para sustentarem suas vidinhas desprezíveis.

Talvez fosse exatamente por se sentir abortado de sua própria pátria que ele tanto se identificava com a desesperada busca da garotinha por seu pai. Como seu desamparo poderia aconchegar a menininha agarrada à sua perna? Mas ela estava lá, ajeitando-se na calça desfiada de Francis. Nesse exato instante, ele pôde perfeitamente captar o inaudível entrosamento que se dava entre as duas figuras com histórias tão diferentes, mas com destino em comum - de trágica afinidade.

Sabiam que o sublime sentimento de ternura os unia. Eles eram cúmplices e fugitivos. Estavam ligados por um exílio que se apresentava feroz. A falta paterna mobilizava a menina em sua insólita aventura. Já a falta de pátria, condenando Francis ao êxodo da alma, impelia-o à sua vocação para construir redundantes rotas de fuga de si mesmo.

No encontro furtivo com a meiguice infantil, pela primeira vez realizou o que seria impossível: Abandonou-se. Francis completou finalmente sua tão almejada fuga de si, pois se dirigindo fraternalmente àquela criança que não estava simplesmente perdida - sabendo muito bem para onde ia -, ele reforçou o contorno de uma essência da qual esteve privado. O viajante - sombra de uma alma inexistente - passou a ser através dos olhos verdadeiros olhos de uma menina que amava seu pai. Francis não era nada além do que aqueles olhos infantis - símbolos perenes e afetuosos há muito tempo abafados e reprimidos.

(...)

Não tinha mais volta. O trem seguia seu destino. Uma lágrima cansada de se esconder deslizou tímida pelo rosto aquecido de um Francis preenchido pela emoção da menina carente. E eles, abraçados, seguiram viagem.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.