sábado, 23 de abril de 2011

Dedos e Anéis.














Com as mãos abarrotadas de sacolas de compras, Rebeca caminhava do centro da cidade em direção à sua casa. Para isso, precisava pagar o bilhete na estação das barcas, antecipadamente, pois estava com pressa e aquele era um meio de transporte que não ficava disponível com frequência. Como morava do outro lado da cidade, não havia alternativa de condução além das barcas para atravessar a baía que a separava do tranquilo bairro no qual residia.

O vozerio da multidão consumindo as muambas do camelódromo misturava-se aos gritos entusiastas dos anunciantes, oferecendo produtos de qualidade duvidosa. Rebeca gradativamente se afastava da balbúrdia do mercado informal em franca ascensão, e se aproximava de uma região um pouco mais vazia. O som enlaçado dos compradores e dos vendedores, ora abafando-se num desgrenhado falatório, ora ampliando-se em pandemônios fonéticos, pela distância de Rebeca, ficavam cada vez mais inaudíveis - alívio para os tímpanos condoídos.

Já distante do ápice carnavalesco dos comerciantes, afunilou ainda mais o vai e vem aturdido das pessoas na rua, filtrando o excesso da corriqueira agitação. Ao chegar à passarela - passagem mais segura para alcançar a outra margem de uma perigosa avenida -, única opção para acessar a praça da estação das barcas, Rebeca, que vinha alternando uma leve distração com as vitrines e a rotineira preocupação com os afazeres domésticos que por ela esperavam, de repente, percebeu que o lugar no qual se encontrava estava completamente deserto, silencioso, e com um odor azedo de que alguma coisa sinistra a aguardava.

- Isso é um assalto! Passe-me a aliança!

- O que é isso, meu senhor?!

- Você não ouviu? Passe-me, agora! Estou armado! Ou me dê sua aliança ou lhe arrancarei o dedo!

- Mas eu nem sou casada!

- Olhe, dona... Não me interessa se você é casada ou não... Passe-me a aliança, agora!!

- Ter este anel no mesmo dedo em que uma mulher casada põe sua aliança é mera coincidência e...

- Você quer morrer? Está de brincadeira comigo? Não tem noção do perigo?

Seu primeiro impulso foi se adequar à linguagem do bandido, incorporá-la automaticamente, mas por razões inexplicáveis, ele falava sua língua.

- O senhor tem uma voz impostada, típica de locutores de rádio. O que está fazendo aqui em vez de exercer essas abençoadas cordas vocais que Deus lhe deu?

- Atirarei em você caso não coopere comigo! É meu último aviso!

- Você é um homem instruído.

- Sim. Recebi boas instruções para roubá-la. Um comparsa localizado no comércio me passou as dicas, descrevendo-me suas feições e posição - sozinha, sem companhia.

- Não. Falo instruído no sentido de letrado. Sei que a vida é cruel, que não tem misericórdia dos que sofrem. Mas o senhor tem uma boa aparência, bem apessoado, além de utilizar a gramática como ninguém. Sua professora de português deve se orgulhar do aluno que você foi. Aliás, não estou sozinha. Estou com o senhor, aqui.

Com os olhos marejados e já meio inchados, o assaltante respondeu:

- Você foi a primeira pessoa que notou o meu português... Fiz Curso Normal. Tornei-me educador e professor no ensino fundamental. Mas os desafios com os precoces alunos da rede pública e o salário miserável que em nada compensava o esforço não permitiram que eu continuasse com meus sonhos.

- Mas o senhor ainda é muito jovem! Ainda tem muito pela frente...

- Você que é otimista... Depois que fracassei, não podendo mais enfrentar a barra que era cuidar e ensinar aquelas crianças em sala de aula, e sem ter condições para colocar comida na mesa das minhas crianças, dos meus filhos, eu então me profissionalizei no mundo do crime.

- O senhor é um rapaz muito simpático. Deve formar uma família linda com seus filhos!

Voltando à realidade daquele contexto, pois entregue a um lapso emotivo perdera o foco, o sujeito resgatou sua postura cênica - engrossou a voz e enrijeceu o semblante -, empunhando o revólver.

- Escute aqui, moça... Isso é um assalto!

Instintivamente, varando o ar, a mulher acertou a cara do assaltante com um tabefe, digno de câmera lenta, com toda a força que seus bíceps lhe permitiram. O assaltante, não prevendo tal reação, derrubou a arma e levou sua mão ao rosto, na tentativa de amenizar o impacto.

- Você estava caindo em tentação, virando novamente um bandido. Eu precisei lhe dar esse bofetão para ter certeza que em suas veias ainda pulsava alguma gota de sangue.

- Quem você pensa que é para me bater desse jeito?

- Apenas uma pessoa como você...

Nesse instante, o assaltante se impulsiona e salta na garganta de sua vítima, furioso. Rebeca dá um passo para trás e consegue se esquivar do bote quase fatal.

- Espere! Não fique irado! Desculpe-me...

Já espumando de raiva, o assaltante se abaixa para pegar o revólver, mas nada encontra.

- Cadê a minha arma? O que fez com a minha arma?

- Não fiz nada. Eu só a vi quando caiu e...

- Basta! Basta!!

O assaltante virou o braço com uma energia descomunal, tentando esmurrá-la. Ele rodopiou no vazio em um giro de trezentos e sessenta graus e desabou de joelhos no asfalto úmido por sua excessiva transpiração. Olhou atônito em seu redor e não avistou mais ninguém. Em cima de seu revólver, um anelzinho fosco de cor amarela repousava em leito póstumo. Pegou o revólver e deixou o anel rolar desprezado até tombar sobre a tampa enviesada de um bueiro.

Colocou sua arma na cintura - entre o cinto frouxo, por baixo da camisa de botão -, e novamente lançou o olhar em direção ao anel. Foi até o bueiro, agachou-se, e apanhou o anelzinho. Verificou-o suficientemente para constatar que fora produzido em latão, sem o menor valor de mercado. Deu de ombros e ameaçou jogá-lo no vácuo do esquecimento. Mas algo o deteve, revertendo sua intenção de se desfazer do artefato. Sentiu seu braço bloqueado por uma corrente de vento sobrenatural e uma vontade irresistível de examinar o anel. Ao passar o dedo na superfície interna do objeto, percebeu uma inscrição em revelo. Ao ler o que estava escrito, um frio cortante gelou sua espinha. Seu nome estava gravado naquela aliança.

(...)

- Juan, acorde! - Vociferou a professora.

- Você estudou a matéria? Teremos uma avaliação surpresa.

- Ahm.. O quê? Perdão, professora.

Todos os colegas caíram em gargalhada pela distração de Juan que o levou a ser chamado a atenção pela professora. Rebeca era uma professora severa, mas sua rigidez representava apenas a exclusiva dedicação que dispensava à sua turma de português instrumental. Ela sabia do potencial de Juan. Escrevia belas redações sobre sua realidade cotidiana na favela em que morava. Tinha um talento ímpar para a escrita criativa, com afinada coerência em suas narrativas e na composição de personagens. Mas para complementar o salário de seus pais, que mal dava para pagar as despesas domésticas, Juan trabalhava como guia turístico na praça histórica da estação das barcas. Por isso a sonolência do garoto durante algumas aulas, reflexo da extensão do trabalho nas épocas em que uma grande quantidade de turistas solicitava seus serviços.

Como a professora de português morava do outro lado da cidade - embora desse aulas numa escola municipal próxima à casa de Juan -, ela diariamente atravessava a baía, passando pela praça em que trabalhava seu aluno. Algumas vezes, quando Rebeca não tinha maiores compromissos que restringissem seu tempo, ambos conversavam - professora e aluno - animadamente, sempre se maravilhando com o amplo conhecimento do garoto de história e geografia. Rebeca costumava elogiar o emprego gramatical do seu aluno, tanto pelo seu modo desembaraçado e articulado de falar, quanto pela forma impecável de escrever.

Rebeca sabia do futuro brilhante que esperava por Juan, mas os seus pais discordavam das afirmações deslumbradas da professora. Eles agradeciam a insistência daquela mulher em apostar no garoto, mas não tinham a menor dúvida de que se ele não fosse capturado pelo caminho do tráfico, não assumiria posto mais alto do que servente de pedreiro.

Juan nutria um carinho especial por sua professora. Confiava em suas sábias palavras. Mesmo sofrendo pela falta da crença de seus pais em sua grande possibilidade de vencer na vida, sabia que sua professora não jogaria palavras ao vento. Ela estudou, por isso, tudo que dizia teria valor.

(...)

Nos momentos em que perdia as esperanças, ferido pelo sentimento negativo que seu meio lhe transmitia, sentava-se na praça das barcas, quando não havia turistas por perto, e esperava sua professora passar. Costumava observar seus dedos para ver se ela era casada. Mas ela nunca usava anéis, muito menos uma aliança. Para recuperar o fôlego e a alegria de estudar e trabalhar imaginava-se no altar, depois de crescido, atuando no magistério, tendo a mão de sua professora entre as suas. Ajoelhado diante dela, Juan colocava o anel de ouro legítimo em seu dedo anelar, com a felicidade de uma criança que acabara de abraçar sua mãe verdadeira.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

A Análise de Lena.














Bateu à porta. Ninguém a atendeu. Pensou em ir embora. Era a primeira vez que estava ali e, por um instante, pareceu que tal encontro não lhe seria útil. Antes de bater novamente à porta, girou a maçaneta e se surpreendeu por estar destrancada, como um sinal de que sua chegada já era esperada. Após entrar, encostou a porta e se sentou num sofá, estilo rústico, com grandes almofadas. Como a tensão a reprimia, pois sentia que daquele lugar não teria mais volta, não percebeu que se recostasse nas almofadas teria uma confortável sensação de descanso. Permitiu-se apenas passar levemente as mãos no forro do sofá, apalpando a textura do tecido - macia no centro e áspera nas bordas -, como se tateasse o próprio coração que, aflito, palpitava.

Um sombreado se precipitou pela fresta da porta do corredor, e alguém acenou discretamente em sua direção, convidando-a para entrar. Timidamente se deslocou até o local em que o homem a chamava. Entrou em uma sala à meia luz, colocou a bolsa em um pequeno banquinho, cumprimentou o homem sentado numa poltrona no canto da sala e se deitou no divã. Trêmula, tirou um cigarro da carteira, pediu licença e entregou-se ao fumo, tragando ponderadamente as fumaças.

O analista estendeu-lhe um cinzeiro sem dizer nenhuma palavra. Ao ver o objeto ofertado, depositou sem titubear o cigarro - que estava suspenso entre os dois dedos da mão direita -, ainda quase sem fumar, e no cinzeiro amassou a ponta transformada em fuligem contra a superfície de mármore. O filtro dobrou-se sobre sua mão num último arfar suplicante. Ela apertou os braços sobre o peito e suspirou.

(...)

Lena, alguns meses antes, já quase entregue aos dramas pessoais que vinham angustiando-a em escala crescente, vencida pela própria fraqueza, resolveu aceitar a sugestão da amiga de procurar ajuda. Consultou uma lista telefônica, na seção em que profissionais da saúde oferecem seus serviços, buscando somente entre os que se intitulavam psicanalistas, o nome com o qual mais se identificasse. Deslizou o dedo indicador por uma dezena de nomes e, intuitivamente ou pela simples razão de estar com as falanges do dedo queimando, pela rigidez da escolha, repousou-o de forma imperceptível sobre um dos nomes. Quando se deu conta do seu ato inconsciente, suspendeu o dedo e o nome escolhido estava lá, saltando à sua vista: Godofredo - psicanalista.

No primeiro instante em que passou os olhos por aquele nome, teve um impulso de rejeição. Não teve a menor atração pela palavra “Godofredo”. Se fosse uma escolha consciente, jamais teria se identificado com aquele nome. Mas como era muito supersticiosa, acreditou piamente que se o seu dedo havia repousado justamente ali, não seria ao acaso. Alguma força oculta e poderosa forjou a certeira e objetiva escolha de Godofredo.

Hesitava em se apresentar para entrevista com qualquer analista que fosse, mesmo com a insistência de sua amiga que tanto a aconselhara a marcar uma sessão de terapia, utilizando-se como exemplo, falando de sua bem-sucedida experiência com seu analista, de suas conquistas e descobertas. Lena sabia que já não era possível mais viver com os ombros pesados pelos problemas familiares e que o tempo de se consultar com um profissional estava se impondo radicalmente. Mas ainda assim adiava aquele primeiro encontro, reunindo todas as forças que ainda lhe sobravam para resistir.

A questão era que ao ler justo o nome que seu dedo estranhamente apontara - embora tais letrinhas não fossem do seu agrado -, não teve dúvidas de que ele era o escolhido, de que havia chegado o exato momento de ultrapassar suas barreiras, desarmar-se contra o preconceito que tinha de analistas e agendar uma entrevista. Anotou o número do telefone do seu consultório, mas não ligou de imediato. Guardou o número num pedaço de papel dobrado e esperou até a manhã do dia seguinte. No horário que reservou para telefonar, sacou seu aparelho celular da bolsa, junto ao papel dobrado, e digitou os números no teclado com uma rara convicção. Uma voz suave e decidida atendeu do outro lado. Ela falou que achara seu número na lista telefônica e que resolvera ligar para marcar uma consulta. Ele concordou em atendê-la, negociaram pormenores e combinaram um horário para a segunda-feira da outra semana.

(...)

Deitada no divã, com o cigarro mal fumado, espremido no cinzeiro ao seu lado, ofertado pelo analista, cruzou os braços e se manteve em silêncio. Ela pensou que se acalmaria quando estivesse na sala do analista, mas aquela posição a deixara ainda mais tensa. Respirou fundo e disse seu nome entre os dentes, balbuciando. Não se apresentou ao entrar na sala, apenas o cumprimentou com um “oi”, mas não disse o seu nome, não disse nada. Deitou-se somente porque o braço do analista, imerso em sua escuridão corriqueira, indicou o divã como o espaço no qual deveria se acomodar.

Após dizer o seu nome, mergulhou num profundo vazio. Viu-se incapaz de pronunciar nenhuma sílaba, muito menos do seu próprio nome. De repente, uma angústia ainda maior devassou seus pensamentos, pois havia percebido que estava deitada de costas para um total desconhecido. Não tinha nem o visto direito. O analista estava sentado em sua poltrona sob uma nuvem escura, impenetrável, sem nenhuma visibilidade.

Conseguiu ver apenas a barra de suas calças - percebendo que ele sustentava sua inércia -, com as pernas cruzadas, e os seus sapatos de camurça, marrom claro. Quem é esse homem? - Interrogava-se. Sabia apenas, pela voz, que ele deveria ser um homem de meia idade, regulando com a sua própria idade, pois ela também já completara cinquenta anos. Mas apesar de todos esses pensamentos - ou talvez exatamente por causa deles -, nada a faria abrir a boca. Seus lábios ficaram inexplicavelmente colados. O tempo se passou e o silêncio sepulcral continuou intacto. Nenhum zumbido era ouvido naquela sala.

Seus braços cruzados sobre o peito, após um período inteiramente imóvel, começaram a formigar. Foi aí que um espasmo súbito fez com que ela espichasse seu braço de forma violenta, movimentando-o involuntariamente - pelo menos até aonde entendia -, em direção à mesinha ao seu lado com o cinzeiro, derrubando-o e espalhando as cinzas do cigarro pelo consultório.

Diante do susto, teve o ímpeto de se virar para recolher a sujeira. Ao se levantar e esticar o outro braço para pegar o cinzeiro e limpar as cinzas - que já voavam por toda a sala -, sua mão roçou na mão do analista, que também havia deslocado o corpo para apanhar o objeto caído. Aquele toque, encontro íntimo, despertou um medo sem precedentes. Tentou evitar um contato maior, mas acabou olhando a face do analista. Automaticamente cobriu os olhos com a mão, pegou sua bolsa, deixando o banco tombar, e sem olhar para trás, saiu do consultório às pressas e ganhou a rua.

Lena voltou para a casa e tentou limpar a imagem do analista de sua mente - já que não conseguira limpar as cinzas espalhadas em seu consultório. O contato de sua mão com a mão dele ficou gravado em seu corpo como as marcas deixadas por carimbos de ferro em brasa usados para registrarem o gado. Daquele instante em diante, sabia que pertenceria ao Godofredo. Mas como isso seria possível? Temeu ser vítima de alguma terrível bruxaria. Pensou inclusive que o analista fosse algum feiticeiro macabro que estivesse lhe provocando aquelas reações. Mas logo afastou essas ideias, considerando-as como um grande absurdo.

Muitos meses se passaram e Lena não mais voltou ao analista. Até um dia que não mais suportara a distância e resolveu ligar para agendar uma segunda sessão. Do outro lado da linha, Godofredo a atendeu com sua voz suave e decidida e assentiu que marcassem uma nova entrevista. A partir desse ponto, as sessões seguiram regularmente, semanalmente, durante anos, sem que jamais Lena tenha dito uma única palavra. Permanecia em silêncio ao longo de todas as sessões, sem emitir nem mesmo um ruído. O analista também não dizia nada. Nem para ir embora o analista encerrava a sessão. Era Lena que, sobressaltada, saía correndo e nem se despedia. O pacto de silêncio permanecia inabalável.

Os toques entre as mãos de Lena e de Godofredo tornaram-se mais frequentes, menos espaçados, e isso já não causava tanto estranhamento e inquietação. No início, tocavam sempre ocasionalmente, por descuido, mas depois, pela repetição, já era Lena que procurava a mão de Godofredo por trás do divã, ou até era ele mesmo que procurava a mão de Lena, estendendo a sua pela lateral do móvel.

(...)

Quando Lena se deu conta, mesmo jamais tendo dito qualquer palavra durante as sessões de análise, aquelas mãos dadas já tinham evoluído para braços dados. E ela, inusitadamente, viu-se vestida de noiva no altar de uma igreja, de braços dados com Godofredo, usando os trajes típicos de um noivo. No instante em que o padre que celebrava o casamento perguntou a ambos se eles se aceitavam, Lena ouviu de Godofredo um suave e decidido “sim”, enquanto sua voz espantada repetia o mesmo “sim” do futuro esposo, ao ser igualmente interrogada.

(...)

Lena, que nunca falara nada em suas sessões de análise, não resolvera nenhum dos seus problemas... Mas... Ganhara um marido - com voz suave e decidida.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Ser Sem Rosto.














Ainda assustado pelo clarão que avistara, temeu que aquilo fosse um sinal de maus tempos. Sentia sua falta como a ardência de uma lança cravada no peito. Desde sua partida, não mais pôde vê-la, nem em seus pensamentos. Apenas a dor deixada por afetos febris insistiam em não diluir seu passado.

Sempre soube que não viveria sem ela. Apenas arrastava uma sobrevivência de relatos em diários ainda não escritos. A fisionomia daquela mulher fora rapidamente convertida em inomináveis sentimentos e vibráteis saudades que percorriam o corpo frágil. Seu rosto desaparecera por completo na escuridão de dias amargos. Na solidão da memória, os rastros das emoções perdidas e das lembranças vazias recheavam-se de feridas e de chagas lacrimosas.

Ele precisava tê-la em seus braços, envolvê-la num longo abraço, aconchegá-la em seu peito. Mas o contorno do rosto que tanto desejava afagar já se dissipara em neblinas, projetando, translúcido, uma densa penumbra naquela pobre alma engarrafada pela ausente alegria. Apenas uma gota de suor que corria por sua testa, pulava pelos cílios avolumados, escorregava pela maçã do rosto e se depositava em seus lábios, afigurou a imagem evanescente da amada como uma mordida onírica arrepiando a penugem da nuca.

Foi aí que o clarão se impôs, impávido, exigindo que o triste homem enxergasse para além do barro cozido que emoldurava seus olhos - rompendo a fina, porém opaca casca -, ou que ficasse cego de vez, lavando por completo a razão se sua tristeza. Intimamente sabia que a segunda opção estaria cortada, pois após ter dado o último passo, o regresso seria ilusório.

O mau presságio imediatamente transmitido pelo clarão - primeiro contato, impactante -, com o que se conformara por não mais existir, logo fora suprimido por um sentimento esperançoso. Talvez a silhueta embaçada à qual suas lembranças se reduziram, não representasse sua inclemente condenação. Talvez pudesse revê-la e senti-la claramente como sempre fora antes de sua morte.

Não que concordasse que a morte fosse só uma passagem para outro mundo, verdadeiro mundo, mas confiava na realização de outra passagem, aquela de que tudo é transitório, de que só o tempo cura. Mas o tempo ainda o enganara, tratara-o com escárnio. Não cumprira seu contrato assinado. Não havia respondido a seus apelos para que, ou recuperasse o sorriso da amada, ou apagasse os afetos latentes que crucificavam sua alma já tão esmagada pelos escombros dos momentos felizes. Precisava decapitar os perversos resíduos de amor que o atormentavam com uma ferocidade implacável. Seria impossível esquecer aquela que fora sua única mulher.

O contraste entre a razão e a emoção ainda o surpreendia em obtusa e profunda melancolia. O amor por uma mulher com a qual compartilhou toda a sua vida era visceral, consumindo-o em chamas. Mas esse amor não mais possuía uma face nítida. Amava-a humildemente, com todas as suas forças. Embora soubesse que a amava e distinguia quem amava, não mais tinha recursos para conceber o rosto de sua mulher. Quando forçava a memória, via apenas um borrão no lugar do rosto. Aquilo ardia em seu peito como uma azia que deposita um resto amargo no paladar. Mergulhado na vivacidade do sentimento, sufocava ao forçar a memória a sublinhar os contornos já diluídos da amada. Evaporou-se por inteiro seu registro visual.

Mas com o advento do clarão - mesmo sem a nitidez e clareza tão caras à razão humana -, a forma foi devolvida ao seu caráter palpável. Temeu - no primeiro instante em que o clarão o iluminou - rever aquelas feições há tanto tempo esquecidas. Quando seu afeto etéreo enfim se materializou na silhueta desfocada da amada, berrou em agudo desespero. Um buraco negro abriu-se, avassalador, tragando para o seu núcleo as lembranças mais sombrias que circulavam no amante em luto. Num breve instante, a fisionomia da amada se reconstituiu para o seu deleite. Ele se ajoelhou perante a imagem, suplicante, pedindo que ela o levasse consigo. Ela, delicadamente, esboçou um sorriso de ternura, compadecendo-se daquele homem para o qual nutria o mais puro sentimento, mas que quase já não suportava mais sua ausência, sucumbindo em prantos de cristais esfacelados.

A aparição momentânea da amada foi o suficiente para fazê-lo resgatar as mais difusas e controversas lembranças, plasmadas numa realidade material e visível. Mas na mesma medida em que as recordações o dominavam, elas corroíam todos os seus arquivos mentais como um vírus devastador. Quando mais se lembrava, agrilhoado na dor de existir, mais essas mesmas lembranças apagavam a complexa substância que o fazia humano. Como não haveria mais lugar para a dor, a alegria, como consequência, também se extinguiria.

(...)

Condenado a vagar desmemoriado, não mais na presença da dor pela amada ausente - pois sua ausência também já se ausentara -, os espinhos da falta dos esquecimentos e das lembranças, furavam a opacidade de olhos que viam demais, num mundo em que a potência dos afetos desativara-se.

Não havia mais tábuas de salvação. Nenhum sólido mármore no qual escorar os gritos de sua dolorida identidade - mas ainda assim uma identidade. Não mais se sentia só. Estar acompanhado deixou de ser um conceito útil. Apenas seguia seu roteiro básico. Os atos de comer, beber, trabalhar, caminhar, dormir, não encerravam qualquer qualidade. Nenhum ganho de prazer ou de desprazer além da simples satisfação das necessidades. Desumanizou-se sem se tornar um animal, um selvagem. Sem afeto, apenas seguia sem pensar.

Sem angústia, sem amar, sem desejo, sem prazer, sem a dor das lembranças da falta do rosto de sua mulher amada, aquele homem - sobre o qual já não se sabia mais onde estava sua humanidade -, arrastava-se como sólido, escorria em formato líquido, bruxuleava nauseabundo e se sublimava na calada e inaudível inexistência. Ele nunca mais bem-disse nem mal-disse sua amada, muito menos pôde novamente ser falado por ela.

(...)

Dizem que em períodos de tempestade, relampejando, com trovoadas, ele surge sorrateiramente, pelo repentino clarão em noites vagas, encarnado em cegantes feixes de luz... Mas sempre... Sem rosto.


ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Toque-me!














Na fila da padaria, ele a viu pela primeira vez depois de muito tempo. Antes de vê-la, seu nome fora ouvido, pronunciado sílaba por sílaba, por aqueles lábios que tanto cobiçara em segredo. Ao sentir a fala macia, não hesitou em se virar de imediato para contemplar a dona da voz que o chamava. Seu nome - dito pela frágil boca delineada por fantasias pueris -, ressoava pela circunferência de seu orifício acústico no doce ritmo do coral de serafins. “Ann-Dréé” - Ela dizia, fazendo biquinho, com seu inconfundível sopro divinal.

Quando se virou para ver se aquele rosto correspondia com os sonhos infantis que ficaram impressos em sua memória afetiva, teve uma grata surpresa. Estava ainda melhor do que antes. Que rosto harmônico! Olhos, boca, nariz, orelhas, todos encaixando simetricamente no contorno daquele rosto em forma do frescor de maças orvalhadas pela manhã.

Ela esboçou um sorriso por ele tê-la reconhecido - afinal, já se passara muitos anos desde a última vez que se viram. Porém, à mínima aproximação do seu rosto ao dele, para tentar beijá-lo - talvez como um mero cumprimento social -, ele recuou constrangido. Não sabia se ela percebera esse pequeno movimento para trás, afastando-se. Estava suado, com a barba por fazer, roupas amassadas, precisando de descanso e de um bom banho para exorcizar as impurezas de um longo dia de trabalho. Aquele homem selvagem, ainda não civilizado pela cama de seu quarto, não poderia infectar a harmonia do rosto de seus sonhos. Uma beleza virginal, intocável, de mulheres não-virgens.

Havia algo que jamais conseguiria assimilar entre o mundano e o que não se toca. Estranha conjunção de opostos. Por que não poderia tocá-la? Contaminá-la com o se suor de homem do mundo? Aparentemente, nenhum sentido se impunha. Mas nas entrelinhas, um sentido repousava à espera de eclodir em grande estilo na cena final. Uma beatitude magnífica encerrava-se naqueles lábios. Sua virgindade residia exatamente na sua história com muitos homens. Talvez fossem seus amores que a santificassem. Sabia que vários homens descansaram sobre seu corpo nu, após os frêmitos e espasmos de uma vibrante noite.

Embora imaginasse insólitos detalhes, não vivenciara um desprezo imaculado pelo que conhecia dela. Passou a desejá-la ainda mais. Sua beleza se incrementara pelos alinhavos tortuosos dos oito anos de diferentes escolhas que os separavam. A riqueza de uma vida complexa deixara-a irradiando encantamentos. Mas ele continuava lá, obstruído pelo recuo diante da possibilidade de receber um beijo, terceiro contato - talvez nem tão íntimo -, no acaso daquele reencontro.

O primeiro contato - pois assim o considerava - fora a ressonância da voz de mulher, chamando os eu nome, enquanto esteve de costas para ela na fila do caixa. O segundo contato, não menos que o primeiro, fora a contemplação daquele rosto de mulher que mais parecia uma pintura renascentista, e a troca de olhares que o penetrou fundo na alma.

Não tinha condições para afirmar que a amava, mas seu infame recuo pôde denunciar que algum afeto atravessou seu corpo durante os fortes impactos da audição e da visão. Não era uma virgem imaculada. Era a mácula que a fazia virgem. Era virgem dele, de seus toques, de seus beijos, mas não de seus pensamentos. Mas naquele instante, quando teve oportunidade, justamente por iniciativa dela em beijá-lo, não foi capaz de tocá-la. Talvez fosse mais conveniente possuí-la em pensamento. Não queria se culpar por um passo em falso, desastroso, que colocasse seus sonhos a perder por uma mal-sucedida realização do seu desejo.

(...)

Percebendo o seu sutil recuo ao tentar formalmente cumprimentá-lo, primeiro achou que se tratasse de uma atitude vaidosa de homem burguês. Depois se lembrou que na faculdade ele era conhecido por seu comportamento anti-social, e que não havia mudado em nada naqueles últimos anos. Mas pouco deu importância a esse fato. Ela não se sentiu rejeitada nem menosprezada em relação àquele homem. Simplesmente não se reduziria à insignificância de um gesto que talvez fosse sinal de timidez. Ela deu de ombros e iniciou um diálogo com ele.

Conversaram a respeito de suas aptidões, escolhas profissionais, além dos vários descaminhos que impedem a união continuada dos amigos e companheiros de jornada. Ela disse que renunciou provisoriamente sua sublime vocação pela arte para favorecer sua formação médica. Ele se ressentiu por um talento perdido, mas sabia que suas virtudes seríamos aplicadas em sua carreira de saúde.

Com muito esforço ele se concentrava naquele diálogo, pois insistentemente a malévola beleza da mulher o invadia, atormentando-o com o desejo que o impossibilitava de tocá-la. Ela agia naturalmente, sendo que tocá-lo ou não, não era uma questão e não fazia a menor diferença. Já ele, ao contrário, não pensava em outra coisa, talvez divinizando de tal maneira aquele momento, que retornava sobre ele como um demônio da paixão, cegando-o.

Enquanto conversavam, nem se deu conta que o caixa já estava registrando seus produtos e contabilizando o valor a ser pago por ele. Não poderia prestar atenção em nada além da tentativa de dar tempo ao tempo para tomar coragem para beijá-la e abraçá-la, pelo menos na despedida.

A funcionária do caixa, após terminar de ensacar suas compras, virou-se para ele e disse o preço. Ele pegou o dinheiro, contou as notas e entregou-lhe o valor anunciado. Num ímpeto, segurou as sacolas com as compras, acenou de longe para sua paixão secreta e foi rapidamente embora. Ela pôde tocá-la. Era intocável - afirmava.

Cada um seguiu para um lado. Ela, pensando sobre sua verve artística deixada para trás em favor da medicina. Ele, não pensava em profissão nem coisa alguma parecida. Em sua mente, apenas o rosto dela ocupava o coração solitário. Um único afeto corroia-lhe a alma: A beleza virginal das mulheres não-virgens. Seu coração não era intocável. Havia sido tocado sem sentir que ela o tocasse.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O Vulto.














Ao atravessar a esquina de sua casa, ele surgiu. Corpulento, olhar penetrante, assustador. Ficou lá, parado, observando-o fixamente. Ao vê-lo, logo que se deparou com ele, quis gritar, mas acalmou-se a tempo para tentar compreender aquela inusitada presença.

Antes mesmo de tirar qualquer conclusão, precipitou-se em fuga, pois tal encontro estava tornando-se insuportável, sem a menor condição para elaborar essa angústia. Quando minimamente se movimentou para escapar de tal estranho encontro, a aparição repetiu exatamente os mesmos movimentos do fujão. Sem pestanejar, notando o fenômeno que se delineava à sua frente, estancou os passos imediatamente e retomou o contato visual com a obscura criatura.

Chegou ainda mais perto do vulto, tomando coragem, e com isso percebeu que não se tratava de uma sombra, mas sim de uma silhueta colorida e transparente. Estranhou as feições da aparição. Tinha um traço familiar. Ficou com a impressão que conhecia sua fisionomia de algum lugar. Mas de onde? Quem será?

A estranha presença continuava a imitar seus mais insignificantes trejeitos. Tinha uma sintonia fantástica. Parecia que havia treinado e ensaiado seus movimentos com fidelidade, como se todos fossem previsíveis ou mesmo que, sem explicação, já houvessem acontecido num passado próximo ou remoto.

Embora já quase derrotado, sucumbindo diante da enigmática presença, não tendo mais quase nenhuma energia para resistir, conseguiu vencer a hipnose que se exercia sobre ele. Rompeu o campo de força astral que o mantinha prisioneiro. Cortou o que o amarrava ao solo, sua inércia - paralisia psíquica causada pela familiar estranheza -, e começou a sacudir os braços como se estivesse num circo dos horrores.

Espichou o braço esquerdo e tentou tocar o rosto do seu assustador semelhante. Com riqueza de detalhes, o vulto seguiu-o, repetindo simetricamente seu gestual. Ao erguer sua mão, o outro também ergueu a sua, simultaneamente, bloqueando a possibilidade de ter seu rosto tocado. Encontrou apenas a mão do outro. Essa mesma situação ocorreu em todas as demais tentativas de tocar outras partes do corpo do vulto. O levantar de seu braço era seguido com o levantar do braço do outro. Em qualquer parte que tentasse encostar com a mão, só conseguia tocar na mão da criatura. Pensou em fazer diferente. Tentou pegá-lo distraído. Preparou o bote para acertar a barriga do vulto com a cabeça.

Ao dar a cabeçada, movimentando-se repentinamente - antes que o outro ameaçasse antecipá-lo - no mesmo instante o vulto se abaixou e ambos bateram a cabeça uma na outra, testa com testa. Logo se deu conta que era impossível pegá-lo desprevenido. Ele talvez fizesse excelente leitura corporal. Sabia de seus mais finos movimentos de antemão. Não podia bater com uma parte de seu corpo em outra parte do corpo do outro. Só batiam joelho com joelho, cabeça com cabeça, mão com mão, jamais diversificando essa angustiante repetição.

Mesmo já ciente dessas regras que a aparição impôs a ele, uma vibração maligna apoderou-se de sua alma e o obrigou a levar sua mão até a garganta do vulto para apertar seu pescoço. Suspendeu o braço e o levou em direção ao pescoço do vulto - agora sua vítima -, para enforcá-lo. Como não poderia ser de outro modo, o vulto fez exatamente o mesmo percurso com o braço, encontrando-o com o seu próprio.

Frustrado e impotente por mais uma tentativa fracassada, esbugalhou os olhos e lançou um ódio mortal para a aparição. O vulto repetiu o mesmo gesto. Só que dessa vez, ele sentiu-se sufocar, como se estivesse sendo enforcado. Não havia nenhuma mão enlaçando seu pescoço. Ambos estavam com os braços soltos, para baixo. Ensaiou um grito de pavor, mas pela falta de ar, reprimiu a voz. Ficou com os olhos lacrimejando e quase fechados, pela dor do sufocamento. Mas foi o suficiente para ver que o vulto repetia a mesma cena de desespero, com a diferença que esboçava um sorriso, podendo ouvir um som nada modesto de sua risada. Ele não ouvia o som da sua própria voz, mas conseguia escutar os grunhidos de deboche vindos do vulto.

Mesmo sem compreender, começou a sentir que talvez não fosse o vulto que repetisse os seus gestos, mas ao contrário, inversamente, fosse ele próprio que repetisse os gestos do vulto. Ele era secundário em sua relação. Seus gestos nada tinham de espontâneos. Talvez ele fosse controlado por linhas invisíveis. Um boneco de marionete comandado pela habilidosa e perversa mente do vulto.

Como isso tudo acontecera justamente no horário comercial, os pedestres que caminhavam pela calçada, em sua direção, ao se confrontarem com a performance nada convencional do tal cidadão, no meio da rua, espantavam-se, e se desviavam de suas rotas apavorados. Ele, por sua vez, mergulhado em sua devastadora visão, imaginava-se sozinho, sem dar a mínima atenção à multidão que incessantemente passava por ali.

Um dos transeuntes, ao invés de desviar como a maioria, sem temer aquilo que parecia um verdadeiro ritual macabro, aproximou-se e o abordou, dizendo:

- O que está fazendo? Está tudo bem com o senhor?

Pela ausência de resposta, mas sem desistir da abordagem, continuou:

- Talvez precise de ajuda... Quer que eu o ajude?

Novamente, silêncio total. Ele ignorava a presença da pessoa que, solícita, oferecia-lhe ajuda.

Antes de ir embora, a pessoa que insistia em se demorar por ali, ainda perguntou com quem ele estava falando. Afirmou que não havia mais ninguém conversando com ele além dela. Tentou convencê-lo que não tinha ninguém à frente dele. Mas tudo em vão. Ele não via nem ouvia a pessoa que lhe oferecia ajuda.

Ela então, percebendo ser ignorada, deu marcha ré, desviando-se dele, e seguiu seu destino. Mas ainda sem se despir de suas últimas gotas de caridade, avaliou a possibilidade de telefonar para a viatura dos bombeiros e informar-lhes que havia um homem falando sozinho diante da vitrine de uma loja em plena Avenida Nossa Senhora.


ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS

domingo, 10 de abril de 2011

Lágrimas e Suores.












Com o andar macio, ele abriu a porta da área de serviço e caminhou em direção à sala. Sua mulher assistia a um programa de televisão já quase adormecendo. Ainda de mansinho, aproximou-se da esposa. Abraçou-a por trás e beijou o seu pescoço. Por não ter ouvido nenhum barulho de alguém chegando perto, levou grande susto e soltou um grito - sendo pega desprevenida.

Ao vê-lo, ela se alegrou, mas não se satisfez em sua presença por muito tempo. Sentiu-se desprezada por ele ter demorado em voltar para casa e nem ter avisado. Durante o frenesi do susto por tal atitude inusitada, com o sabor do beijo em seu pescoço, virou-se para ele, ameaçando tirar satisfações com aquele que considera um marido indolente.

Antes de ela manifestar qualquer ressentimento, tomou-a nos braços e a beijou nos lábios com inigualável impacto emocional e uma dilacerante libido. Ela deu alguns soquinhos nas costas do marido - apenas para fingir que resistia à sedução -, mas já estava completamente entregue àquela paixão.

Após o efeito hipnótico do beijo, a mulher segurou o rosto do marido com as duas mãos, esboçou um sorriso e acariciou seu rosto. Logo depois seu semblante se alterou quase que por inteiro: Olhos saltando das órbitas, cenho franzido, dentes cerrados e lábios contraídos. Ela fechou o punho e desferiu um monumental bofetão no meio da cara do indefeso marido. O golpe o surpreendeu de tal maneira que ficou um tempo perplexo, não pela dor do soco - que não foi pouca -, mas por jamais ter imaginado que sua esposa pudesse ter uma reação tão radical.

Enquanto durou sua perplexidade - também esperando passar a paralisia de sua face pela forte bordoada que levara -, ponderou sobre o fato de ter sido aquela a primeira vez que apanhara. Sempre era ele que batia em seus coleguinhas no colégio. Em casa, quando o cinto estalava e o chinelo cortava o ar, ele já estava bem longe, pois não foi à toa que se tornara campeão de corrida nas olimpíadas juvenis.

Estavam casados há poucos meses, mas já era tempo suficiente, pelos repetidos atrasos do marido, para que ela desse espaço às dúvidas sobre suas reais intenções. A desconfiança surgiu no exato instante em que, num evento importante do casal, quando jantavam num elegante restaurante da cidade, o telefone do marido tocou e ele, suando frio, deu uma desculpa esfarrapa à esposa, alegando compromisso de trabalho, e saiu às pressas, deixando-a sozinha e sem pagar a conta.

Desde aquele dia, passou a controlar os passos do marido, descobrindo que o trabalho era o que menos consumia o seu tempo. Então, se não se dedicava a nenhuma atividade de conhecimento da esposa, era porque estava substituindo sua preciosa família com outras mulheres e jogos de azar. Ao pensar nessa hipótese - quase certeza inabalável - de traição e desperdício, arrepiava-se por inteiro e um horripilante calafrio percorria-lhe a espinha.

Logo que iniciou a vigilância contínua do marido, quis imediatamente se divorciar, talvez voltar para a casa da sua mãe - embora não soubesse se ela iria recebê-la bem por causa da separação -, mas sempre que seu marido a tomava nos braços e a beijava, não resistia aos seus encantos e amolecia o corpo todo. Foi aí que pôde compreender o significado da expressão “fazer corpo mole”. Pois ao simples toque daquele homem desgraçado e miserável que a traía com outras mulheres e desperdiçava o dinheiro em jogos ilegais, ficava totalmente derretida e dominada, perdendo qualquer reação de resistência.

Ela cedia. Sempre acabava cedendo. As amigas a apoiavam quando o assunto em questão era a ofensiva contra o canalha do marido. Mas ao confessar sua paixão por ele, as mesmas amigas a ofendiam e chamavam-na de masoquista. Será que de fato ela era isso que suas amigas a chamavam? Mas não sentia prazer em sofrer, de jeito nenhum. Essas amigas ingratas que só tem inveja de sua felicidade! - Ponderava a esposa com convicção. Mas logo declinava de sua sensibilidade, apostando novamente na maldita situação daquele marido imundo, mergulhado até a alma na lama do pecado. Exatamente nos momentos em que achava que estivesse exagerando nas acusações contra o marido, sentia-se culpada em pensar tanta besteira e tentava amenizar com sentimentos amorosos sobre seu homem.

Temia estar enlouquecendo. Será que estava se boicotando? Afinal, mesmo chegando diariamente em casa nos horários mais inadequados possíveis, ele nunca deixava de abraçá-la e de beijá-la com muita paixão. Não resistia àquilo tudo. Ela o odiava na sua ausência, pensando em suas supostas traições, elaborando as mais bárbaras vinganças, mas ao se sentir envolvida nos braços calorosos do homem que antes odiava, caía em tentação e cedia à paixão diante da maciça presença do marido. Desarmava-se e diluía qualquer plano de esganá-lo. Seu corpo tremia e novamente se entregava por inteiro.

Os frequentes tapas na cara, as resistências, os soquinhos nas costas, tudo isso fazia parte de um ritual que estava menos a serviço de uma legítima luta contra o devasso marido, do que como um ingrediente apimentado para desembocar no êxtase horizontal. Os berros, as ameaças, as lágrimas derramadas e a saliva expelida durante clímax do ódio pela traição - esbravejando o destino cruel que fez daquele casamento uma catástrofe total -, convertiam-se em gritos de prazer, sussurros de êxtase e suores abundantes que lavavam ambos os corpos na beatitude do sexo.

(...)

As desconfianças da esposa jamais foram comprovadas. E as violentas cenas de amor e de ódio, continuaram se repetindo com faíscas cada vez mais potentes. Aquela relação concentrava combustíveis altamente inflamáveis para alimentar o avassalador motor da paixão. Não perdia o fôlego em sustentar o ódio mortal que nutria pelo marido em sua ausência - imaginando as situações mais grotescas de traição -, mas que em sua presença, transformava o ódio num amor violento e furioso que se resolvia na cama, até terminar numa perene e angelical troca de carícias e juras de cumplicidade eterna.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Estilhaços de Alma














Antero tinha a alma despedaçada. Ainda jovem, espatifou-a no primeiro grito que deu ao ser cutucado por um colega em plena sala de aula. Tentou resistir, mas já era tarde. Sua alma já havia se quebrado em infinitos caquinhos.

Os estilhaços da alma perseguiam Antero como a sombra que fareja seu dono - fiel e inseparável. Às vezes, pela imantação do seu corpo ao caminhar, atraía os caquinhos que, ao retornarem às origens, reagrupavam-se em uma nova sintonia entre si. Quando voltavam, vários formatos surgiam. Podiam parecer um cão, ou uma ovelha ou mesmo uma lagartixa - assim como as nuvens que formam diversas imagens dependendo de quem as olha -, mas nunca se reuniam no formato ideal que se espera de uma alma tipicamente humana.

Sempre que a alma formava outro ser, Antero se comportava de acordo com o que o figurino mandasse. Transformava-se na criatura que a alma indicasse. Seu pior sofrimento foi quando a alma se reordenou no formato de um fixo cabide de plástico. Ficou lá, imóvel, trancado num armário, durante dias, até sua alma esfacelar novamente e persegui-lo como uma poeira espacial. Seus vizinhos ficaram preocupados. Pois demoraram para encontrá-lo.

Uma semana depois, ao vitimarem a porta - que arrombada jazia no chão -, acharam Antero estatelado dentro do seu armário. Chamaram uma ambulância para levá-lo ao hospital, mas nesse ínterim, a alma desmanchou o formato de cabide, caindo como farelos apátridas aos pés de seu dono. No instante em que a ambulância chegou, sua alma virou um protótipo de gaivota, alçando voo para além das neblinas que repousavam à janela do seu quarto, e rumou em direção ao horizonte

Naquele mesmo dia, ele foi encontrado num laguinho perto de sua casa, nadando com a placidez de um marreco selvagem. Resistiu bravamente antes de ceder à fatalidade de sua captura. Amarrado numa camisa de força, Antero foi conduzido ao hospício público. Chegando lá, aplicaram-lhe poderosos sedativos. Quanto mais se debatia, e as asas de marreco nascido na natureza - domesticado a força -, cortavam e sangravam ao rasparem nas grades da maca hospitalar, mais sua alma se esfarinhava, macerada que estava, diminuindo rapidamente até se reduzir a um pozinho imperceptível.

Logo, aquela relutância toda, indolência de alma partida, fora vencida pela eficaz química dos homens. Antero foi readquirindo sua forma humana e teve a violência de sua primitiva voz, apagada. Não mais se debatia nem fazia força para se soltar das cordas que o mantinham deitado no leito. Seu grito rebelde se silenciou. A selvageria se humanizou. Sua insubordinação converteu-se em solicitude.

A situação da alma de Antero estava tão decadente - parecendo uma farinha de vidro moído -, que os médicos tiveram que terceirizar os serviços, contando com a ajuda de um famoso artesão da cidade para recuperar aquela alma. Eles já contabilizando em seus currículos, o fracasso dos religiosos que lá estiveram para beatificarem a alma, em frangalhos, irrecuperável que estava pelas orações e exorcismos.

O artesão, munido de uma cola instantânea, de boa qualidade, e de um cinzel afiado, esculpiu a alma, devolvendo-a ao modelo humano. Alguns pedacinhos, perdidos ao longo dos passos de seu dono, aspirados por narinas alheias, ventilados em dias de tempestades ou espanados por alguma faxineira desatenta, ficaram faltando na obra final. Alguns buraquinhos, pela ausência das partes perdidas, ficariam visíveis caso alguém os olhasse bem de pertinho. Mas nada que afetasse o conjunto total da obra.

Após o término da convalescência, com muito custo, Antero se levantou. Sem o costume de se erguer com as próprias pernas, pelo tempo que ficou sedado no hospital, além de sentir o enorme peso da escultura humana que o fazia se inclinar para trás - o novelo colado que sua alma se tornou -, ele se despediu dos enfermeiros e retomou o rumo de sua vida.

Sua alma nunca mais mudou de formato. Ficou condenada ao mesmo molde, eternamente. Sem ser mais versátil, aquele fardo pesado obstruía a estranheza alheia. Talvez Antero não pudesse controlar sua alma, na época em que ela tinha livre-arbítrio de se transformar no que bem entendesse. Mas era justamente essa autonomia que permitia que ele voasse em seus sonhos. Arrastando-se em sua vida enfadonha e comum, não era mais chamado de louco ou de diabo em forma de gente. Virou um a pessoa normal. Monótona normalidade.

Além de tudo, como sua alma foi colada para que voltasse a ter o formato humano - sabendo que farelo de vidro misturado à cola vira um composto cortante: o cerol -, Antero virou um Rei Midas ao contrário. Golpe final de uma alma ferida e vingativa. Enquanto o tal rei estava condenado a que tudo ao seu redor virasse ouro, com o seu simples toque, inclusive seus sentimentos - engessados numa fria e maciça pedra dourada -, Antero fazia sangrar todos aqueles que ousassem tocá-lo.

E assim, ele seguia sozinho em sua desventura. Antes isolado por assemelhar-se a um louco, agora apartado por causar cortes profundos. Depois de afastado pelo medo de seu espírito liberto, passou a enganar. Visivelmente perfeito, não mais repelia. Atraia pela irresistível beleza esculpida pelo artesão. Mas ao se aproximar dele, ninguém saia ileso. Todos levavam consigo as cicatrizes daquele encontro.

De cães, ovelhas, lagartixas e até cabides, embalagens que continham uma variável e autêntica alma humana, embora não parecesse humano, foi moldado até se tornar homem apenas na aparência, tendo como alma, uma substância cortante e letal.

Violentado e ferido para se humanizar, passou a violentar e ferir os homens. Não poderia ser diferente do que uma bela escultura de cerol.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.