Com as mãos abarrotadas de sacolas de compras, Rebeca caminhava do centro da cidade em direção à sua casa. Para isso, precisava pagar o bilhete na estação das barcas, antecipadamente, pois estava com pressa e aquele era um meio de transporte que não ficava disponível com frequência. Como morava do outro lado da cidade, não havia alternativa de condução além das barcas para atravessar a baía que a separava do tranquilo bairro no qual residia.
O vozerio da multidão consumindo as muambas do camelódromo misturava-se aos gritos entusiastas dos anunciantes, oferecendo produtos de qualidade duvidosa. Rebeca gradativamente se afastava da balbúrdia do mercado informal em franca ascensão, e se aproximava de uma região um pouco mais vazia. O som enlaçado dos compradores e dos vendedores, ora abafando-se num desgrenhado falatório, ora ampliando-se em pandemônios fonéticos, pela distância de Rebeca, ficavam cada vez mais inaudíveis - alívio para os tímpanos condoídos.
Já distante do ápice carnavalesco dos comerciantes, afunilou ainda mais o vai e vem aturdido das pessoas na rua, filtrando o excesso da corriqueira agitação. Ao chegar à passarela - passagem mais segura para alcançar a outra margem de uma perigosa avenida -, única opção para acessar a praça da estação das barcas, Rebeca, que vinha alternando uma leve distração com as vitrines e a rotineira preocupação com os afazeres domésticos que por ela esperavam, de repente, percebeu que o lugar no qual se encontrava estava completamente deserto, silencioso, e com um odor azedo de que alguma coisa sinistra a aguardava.
- Isso é um assalto! Passe-me a aliança!
- O que é isso, meu senhor?!
- Você não ouviu? Passe-me, agora! Estou armado! Ou me dê sua aliança ou lhe arrancarei o dedo!
- Mas eu nem sou casada!
- Olhe, dona... Não me interessa se você é casada ou não... Passe-me a aliança, agora!!
- Ter este anel no mesmo dedo em que uma mulher casada põe sua aliança é mera coincidência e...
- Você quer morrer? Está de brincadeira comigo? Não tem noção do perigo?
Seu primeiro impulso foi se adequar à linguagem do bandido, incorporá-la automaticamente, mas por razões inexplicáveis, ele falava sua língua.
- O senhor tem uma voz impostada, típica de locutores de rádio. O que está fazendo aqui em vez de exercer essas abençoadas cordas vocais que Deus lhe deu?
- Atirarei em você caso não coopere comigo! É meu último aviso!
- Você é um homem instruído.
- Sim. Recebi boas instruções para roubá-la. Um comparsa localizado no comércio me passou as dicas, descrevendo-me suas feições e posição - sozinha, sem companhia.
- Não. Falo instruído no sentido de letrado. Sei que a vida é cruel, que não tem misericórdia dos que sofrem. Mas o senhor tem uma boa aparência, bem apessoado, além de utilizar a gramática como ninguém. Sua professora de português deve se orgulhar do aluno que você foi. Aliás, não estou sozinha. Estou com o senhor, aqui.
Com os olhos marejados e já meio inchados, o assaltante respondeu:
- Você foi a primeira pessoa que notou o meu português... Fiz Curso Normal. Tornei-me educador e professor no ensino fundamental. Mas os desafios com os precoces alunos da rede pública e o salário miserável que em nada compensava o esforço não permitiram que eu continuasse com meus sonhos.
- Mas o senhor ainda é muito jovem! Ainda tem muito pela frente...
- Você que é otimista... Depois que fracassei, não podendo mais enfrentar a barra que era cuidar e ensinar aquelas crianças em sala de aula, e sem ter condições para colocar comida na mesa das minhas crianças, dos meus filhos, eu então me profissionalizei no mundo do crime.
- O senhor é um rapaz muito simpático. Deve formar uma família linda com seus filhos!
Voltando à realidade daquele contexto, pois entregue a um lapso emotivo perdera o foco, o sujeito resgatou sua postura cênica - engrossou a voz e enrijeceu o semblante -, empunhando o revólver.
- Escute aqui, moça... Isso é um assalto!
Instintivamente, varando o ar, a mulher acertou a cara do assaltante com um tabefe, digno de câmera lenta, com toda a força que seus bíceps lhe permitiram. O assaltante, não prevendo tal reação, derrubou a arma e levou sua mão ao rosto, na tentativa de amenizar o impacto.
- Você estava caindo em tentação, virando novamente um bandido. Eu precisei lhe dar esse bofetão para ter certeza que em suas veias ainda pulsava alguma gota de sangue.
- Quem você pensa que é para me bater desse jeito?
- Apenas uma pessoa como você...
Nesse instante, o assaltante se impulsiona e salta na garganta de sua vítima, furioso. Rebeca dá um passo para trás e consegue se esquivar do bote quase fatal.
- Espere! Não fique irado! Desculpe-me...
Já espumando de raiva, o assaltante se abaixa para pegar o revólver, mas nada encontra.
- Cadê a minha arma? O que fez com a minha arma?
- Não fiz nada. Eu só a vi quando caiu e...
- Basta! Basta!!
O assaltante virou o braço com uma energia descomunal, tentando esmurrá-la. Ele rodopiou no vazio em um giro de trezentos e sessenta graus e desabou de joelhos no asfalto úmido por sua excessiva transpiração. Olhou atônito em seu redor e não avistou mais ninguém. Em cima de seu revólver, um anelzinho fosco de cor amarela repousava em leito póstumo. Pegou o revólver e deixou o anel rolar desprezado até tombar sobre a tampa enviesada de um bueiro.
Colocou sua arma na cintura - entre o cinto frouxo, por baixo da camisa de botão -, e novamente lançou o olhar em direção ao anel. Foi até o bueiro, agachou-se, e apanhou o anelzinho. Verificou-o suficientemente para constatar que fora produzido em latão, sem o menor valor de mercado. Deu de ombros e ameaçou jogá-lo no vácuo do esquecimento. Mas algo o deteve, revertendo sua intenção de se desfazer do artefato. Sentiu seu braço bloqueado por uma corrente de vento sobrenatural e uma vontade irresistível de examinar o anel. Ao passar o dedo na superfície interna do objeto, percebeu uma inscrição
(...)
- Juan, acorde! - Vociferou a professora.
- Você estudou a matéria? Teremos uma avaliação surpresa.
- Ahm.. O quê? Perdão, professora.
Todos os colegas caíram em gargalhada pela distração de Juan que o levou a ser chamado a atenção pela professora. Rebeca era uma professora severa, mas sua rigidez representava apenas a exclusiva dedicação que dispensava à sua turma de português instrumental. Ela sabia do potencial de Juan. Escrevia belas redações sobre sua realidade cotidiana na favela em que morava. Tinha um talento ímpar para a escrita criativa, com afinada coerência em suas narrativas e na composição de personagens. Mas para complementar o salário de seus pais, que mal dava para pagar as despesas domésticas, Juan trabalhava como guia turístico na praça histórica da estação das barcas. Por isso a sonolência do garoto durante algumas aulas, reflexo da extensão do trabalho nas épocas em que uma grande quantidade de turistas solicitava seus serviços.
Como a professora de português morava do outro lado da cidade - embora desse aulas numa escola municipal próxima à casa de Juan -, ela diariamente atravessava a baía, passando pela praça em que trabalhava seu aluno. Algumas vezes, quando Rebeca não tinha maiores compromissos que restringissem seu tempo, ambos conversavam - professora e aluno - animadamente, sempre se maravilhando com o amplo conhecimento do garoto de história e geografia. Rebeca costumava elogiar o emprego gramatical do seu aluno, tanto pelo seu modo desembaraçado e articulado de falar, quanto pela forma impecável de escrever.
Rebeca sabia do futuro brilhante que esperava por Juan, mas os seus pais discordavam das afirmações deslumbradas da professora. Eles agradeciam a insistência daquela mulher em apostar no garoto, mas não tinham a menor dúvida de que se ele não fosse capturado pelo caminho do tráfico, não assumiria posto mais alto do que servente de pedreiro.
Juan nutria um carinho especial por sua professora. Confiava em suas sábias palavras. Mesmo sofrendo pela falta da crença de seus pais em sua grande possibilidade de vencer na vida, sabia que sua professora não jogaria palavras ao vento. Ela estudou, por isso, tudo que dizia teria valor.
(...)
Nos momentos em que perdia as esperanças, ferido pelo sentimento negativo que seu meio lhe transmitia, sentava-se na praça das barcas, quando não havia turistas por perto, e esperava sua professora passar. Costumava observar seus dedos para ver se ela era casada. Mas ela nunca usava anéis, muito menos uma aliança. Para recuperar o fôlego e a alegria de estudar e trabalhar imaginava-se no altar, depois de crescido, atuando no magistério, tendo a mão de sua professora entre as suas. Ajoelhado diante dela, Juan colocava o anel de ouro legítimo em seu dedo anelar, com a felicidade de uma criança que acabara de abraçar sua mãe verdadeira.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.