terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Plácido, A Rainha.














Plácido era apicultor. Cultivava o apiário para extrair o mel, o própolis, a cera e a geléia real, comercializando-os no mercado especializado. Além disso, também era o responsável por polinizar outras culturas agrícolas, utilizando o pólen encontrado nas abelhas, sua matéria prima, para fecundar os pomares durante a floração. O apiário, para Plácido, era um símbolo máximo da origem histórica de sua família, pois foi transmitido através de gerações - de seu bisavô para o seu avô e de seu avô para o seu pai, recebendo a herança diretamente do seu pai, antes de morrer. Ele muito se orgulhava de ser o novo herdeiro das colméias, cuidando de suas abelhas africanas com um inequívoco carinho maternal.

O afeto que Plácido doava às suas abelhinhas, dividia as opiniões de vizinhos e de outros fazendeiros das redondezas. Alguns consideravam que Plácido se dedicava exageradamente à apicultura, principalmente porque sua relação com ela não se limitava ao trabalho, adentrando em sua vida íntima. Já outros, achavam que o apego àqueles bichinhos, era um sinal que o amor universal não distinguia entre raça, classe social, espécies, nem reinos - sejam eles animal, vegetal, e mineral.

Plácido exibia com satisfação uma relação harmoniosa – ou quase – com as suas dóceis, porém selvagens abelhas. Sabia o nome de todas, distinguindo-as, reconhecendo cada “filha” sua entre as milhares que rondavam suas colméias. Convivia com aquele zum zum zum dia e noite, noite e dia. Sonhava em poder domesticá-las ainda mais, até chegar ao ponto ideal de compartilhar com elas seu almoço, café da manhã, janta, e, como prioridade, compartilhar os seus lençóis na hora de dormir.

Mesmo com tantos afagos e trocas de carícias com seus insetos especiais, um acontecimento inusitado alterou o rumo de sua história como apicultor. Numa manhã bem cedo, Plácido sentou-se em sua cadeira cativa, também transmitida de gerações a gerações, herdada de seus antepassados, e já havia começado a ler seu jornal - seu hábito diário. De forma completamente inesperada, o que provocou um tapa certeiro do próprio Plácido em sua orelha direita, uma abelha, conhecida por seu “pai” como Zunininha, que havia se desgarrado do enxame, encontrou naquele orifício auricular, uma convidativa caverna para se abrigar – além de uma suculenta fonte de cera.

Aquele contato entre ouvido e abelha não teve a recepção esperada entre pai e filha. No mesmo instante em que a abelha entrou, Plácido quase desmaiou. Foi uma dor terrível, sem precedentes. Além das ferroadas, que não eram nada sutis, o tamanho avantajado do inseto e seu barulho infernal, causaram perturbação tão intensa em Plácido, que por alguns minutos não sabia mais quem era. Ficou apenas entregue às tentativas alucinadas para retirar o animal de seu ouvido.

Mesmo sem ter saído, a abelha estranhamente se acalmou lá dentro. Parecia que nem tinha entrado no ouvido de Plácido. Como consequência, o dono da orelha foi também se acalmando, até recuperar os sentidos, sentar-se novamente na cadeira e voltar a ler as notícias do seu jornal. Porém, algo de ainda mais inesperado já ensaiava para uma entrada triunfal em cena.

Um formigamento em suas papilas gustativas o retirou da leitura, repetindo pela segunda vez, a dramática interrupção da harmoniosa manhã de Plácido. Uma irresistível vontade de colher flores coloridas, foi sentida por ele. Levantou-se e, com a convicção metafísica que só filósofos socráticos possuem, duvidando da matéria, Plácido ainda em seu jardim, foi em direção à múltipla variedade de florescências. Ele colheu petúnias, margaridas, antúrios, e também flores de espirradeiras e de ervas daninhas, todas causando igual maravilha aos sentidos de Plácido.

Quando Plácido se deu conta do que estava fazendo, já mastigava as pétalas como antigamente mascava-se rapé – mas sem a cusparada no final. O sabor do néctar das flores era inigualável. Seu paladar nunca esteve tão aprimorado. Tentou colocar à prova sua depurada capacidade para sentir gostos, comendo um queijo gorgonzola que estava armazenado na dispensa já há alguns meses, mas seu paladar estava neutro, não sentia o gosto do gorgonzola, nem mesmo o característico cheiro do queijo – embora estivesse insuportavelmente fedido, como a etiqueta exige para o consumo de um bom derivado lácteo.

Testando diversos outros alimentos, selecionando os que apresentavam aromas e paladares mais fortes e marcantes, constatou definitivamente, que seu paladar e olfato estavam comprometidos, mortos e enterrados. Mas um fenômeno sobre o qual não conseguia explicar, era que apesar de não mais sentir os gostos e os cheiros das comidas que mais apreciava, adquiriu uma extraordinária sensibilidade às flores. Quando se tratava de flores, um crescente apetite se instalava, seu olfato as percebia a quilômetros de distância, seu paladar o deixava nas nuvens ao mastigar as pétalas, cada variedade de flor tendo um sabor especial, um autêntico manjar dos deuses.

Gradativamente, Plácido começou a enxergar o mundo como se tivesse cinco olhos. Via com os seus dois olhos normais, que se deslocaram da frente do crânio para as laterais, além de outros três pequenos na parte frontal da cabeça, agrupados como num triângulo, cegos para movimentos e imagens, apenas detectando a luminosidade. No topo de sua cabeça, duas estruturas semelhantes a antenas começaram a desempenhar uma magnífica sensibilidade para farejar, mesmo na escuridão, quando sua visão perdia a função.

A percepção geométrica de Plácido ganhou contornos impecáveis, com muita precisão. Um detalhe grotesco, é que cada olho via de uma maneira fragmentada, partindo as imagens em centenas de minúsculas formas hexagonais, simultaneamente. Mas em meio a tanta acuidade visual, uma cor não era mais visualizada – a cor vermelha, cor do sangue. Para compor o figurino, um par de asas fininhas e uma bunda rechonchuda com um ferrão na ponta, além de uma cor amarelada com listras negras, surgiram na incontestável força da natureza.

(...)

Na colméia, enquanto as fêmeas operárias trabalhavam com obstinação, garantindo uma regulagem exata na linha de produção, ao colherem o delicioso néctar para estocar nos favos, Plácido, a rainha, repousava tranquilamente em seu trono imperial, aproveitando o reinado. Um macho, zangão, como quem não quer nada, sobrevoava a colméia da rainha Plácido. De repente, Plácido voo em disparada, esperando que o zangão a alcançasse para tomá-la em núpcias.

Após a noite de núpcias, em que ambos se entregaram à cópula enlouquecida, a fecundação foi realizada. A partir daí, o zangão foi expulso. Mas diante de sua resistência para sair, a rainha Plácido chamou suas fiéis operárias para expulsá-lo à força.

Como o verão estava chegando ao fim, e o mel escasseando, a rainha Plácido preferiu não expulsar o seu macho, pois outro destino, não menos trágico, esperava por ele. Assim, aquele dedicado macho, obediente aos seus instintos de zangão, futuro pai das novas abelhinhas, transmissor da preciosa herança para a continuidade das gerações na colméia, foi preso e torturado. Abandonado, o futuro pai permaneceu lá, trancado, mas por pouco tempo, vindo a morrer à míngua, de fome e de frio.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

20 comentários:

Wellington disse...

Poxa Plácido amava as abelhas uma delas o tornou abelha também. Ele que poderia ter um fim feliz por amar as abelhas termina sem nada com fome por casa da rainha abelha. Que triste! ...rsrsrs...

Ótimo conto!

Abraços!

http://neowellblog.wordpress.com/

Alex Azevedo Dias disse...

Mas Plácido, era a rainha. Ele não morre de fome. Ele vive, em seu império. Quem morreu foi a abelha macho, zangão, futuro pai das novas operárias. Plácido se transformou na abelha rainha.

Anônimo disse...

Hummm, conto legal, pensante

Alex Azevedo Dias disse...

É... Muito pensante. Meu conto tem um pensamento autônomo.

Anônimo disse...

Legal seu blog... Eu estou acostumada com pequenas postagens, a sua não.. É do tipo que você para para ler e dedica um bom tempo para a atenção de um bom trabalho :)

Bacana, muito sucesso com seu blog!

Alex Azevedo Dias disse...

Pois é... Ninguém mais pára pra ler, né? Ler é cafona, brega, entediante!

Urbano disse...

KAFKA!!! KAFKA!!!
E dos bons!!!

--
Cara, um amigo é apicultor e eu já fiz a experiência de colocar o traje e ir lá enfrentar os "caças" da colméia. Vencer o zunido é uma experiência. E 10 a 0 pras abelhas, mal tirei a proteção achando que já estava seguro e levei 3 ferroadas. Consegui recuperar o corpo de uma, empalhei e hoje a cabeça enfeita minha sala ao lado da de outros troféus de animais ferozes como a mosca Brandon, um ácaro e um mosquito. Quem eles pensam que são?! só porque estão no topo da cadeia alimentar...

Unknown disse...

Alex, seus contos - todos - sempre são ricos com meadas palavras soltas e subjetivas, intensas e realistas. Uma breve semelhança com o Kafka não é estranho, como o "urbano" citou lá encima. Sua escrita sempre é bem trabalhada e mostra uma suma preocupação para com os leitores, mas acima de tudo de pôr pra fora o que não cabe mais dentro.
seguindo

David Nunes disse...

Muito legal hein

Jefferson Reis disse...

Que conto fantástico. Me lembrou MUITO o naturalismo, ou seja, pessoas-animais. Naquele tempo (do naturalismo) a ciência estava crescendo ao lado do homem em si. As pessoas acreditavam que se tirassem o cérebro de um macaco e colocassem no homem, o homem seria um homem-macaco. Se alguém comesse uma aranha ficaria inteligente, porque consideravam a aranha um animal inteligente. Minha professora de Literatura iria amar encontrar este conto. Seria um prato cheio para discussão em sala de aula.

Pedro Prado disse...

Mais um conto ótimo!

Elas usam, abusam e, algum dia, quando não precisam mais, abandonam.

Maravilhoso!


:)

kbritovb disse...

tirando o fim poderia ser o começo de um super-heroi

Gabriel Pozzi disse...

Olá Alex!!
Não conhecia seu blog ainda, e bem, como primeira impressão, só tenho elogios...
Conheço diversos blogs de crônicas e contos, escrevo também (embora não divulgue), e posso dizer que você tem uma excelente habilidade na arte de criar histórias!
Gosto muito de ler, principalmente quando a leitura flui sem paradas, sem chatices, enfim, nota dez seu conto...

Achei genial como você descrevia o apicultor e sua vida. Me deu a impressão que você vivencia isso todo dia e pode passar seu conhecimento no conto. Depois, mandou bem na fantasia, e mostrou domínio pra transformar Plácido em uma abelha, sem fazer parecer tosco ou infantil!
Vou recomendar seu blog para meus amigos, parabéns, voltarei mais aqui!!!!

abraços
http://songsweetsong.blogspot.com/

Luis Sapir disse...

Lindo e muito doida a história.

Plácido é simplesmente plácido

Anônimo disse...

Vi seu blog em uma comu do orkut e achei mt interessant.

qnd pudr, de uma pssadinha no meu?

bjoos


http://cabecafeminina.blogspot.com

Anônimo disse...

Dessa vez você abusou!
A mistura entre fantasia e realidade veio gritando sob forma de abelha que altera o cotidiano e reverte em uma possível mutação. escrita pra poucos!

Gostei muito. Aliás, só não gosta quem não lê... Ou, o que é pior, fingem que gostam...

Gabriel Pozzi disse...

Alex, se me permite o abuso, peço que me avise quando tiver crônicas novas, que infelizmente tento entrar em todos os blogs que gosto mas acabo me perdendo e esquecendo de alguns sensacionais como o seu... :(

abraço

http://songsweetsong.blogspot.com/

Victor Von Serran disse...

Kafka transforma seu personagem em barata, mas vc transforma o seu em abelha, e rainha ainda por cima....fico pensando as vezes se o seu conto e tantos outros nos levam a uma reflexão sobre a metamorfose nas pessoas como individuos pensantes em individuos que sentem, em individuos que vivem...

um trono para meu amigo Alex, mas bem longe de abelhas e proximo do mél literario que este blog proporciona !


obrigado pelo apoio e visitas constantes !

abraço

http://universovonserran.blogspot.com

Everaldo Ygor disse...

Plácido cultivava palavras, virou rainha de suas próprias linhas e flexões, do olhar e de seus novos velhos sentidos...
Enfim, belo como deve Ser...
Saudações Poéticas
Abraços

Anônimo disse...

Passando para retribuir sua visita ao 'Para que nunca me esqueça'. A temática Psicanálise me atraiu, estou estudando um pouco das idéias do Freud e bem inclinada a fazer terapia com a metodologia desenvolvida por ele.
Acho q vou voltar outras vezes.